18 Mai 2015
O presidente Barack Obama, juntando-se a um painel de discussão na terça-feira (12), no campus da Georgetown University, deu uma explicação de grande alcance sobre a pobreza nos EUA, que incluía a descrição de uma nova segregação por classe a qual espelha a segregação histórica por cor. O evento constituiu um cenário incomum para um presidente em exercício assim como teve um tópico nada usual para Obama, tópico que raramente é motivo de manchetes ou que quase nunca passa pela boca dos políticos americanos.
A reportagem é de Vinnie Rotondaro, publicada por National Catholic Reporter, 13-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Falando na Cúpula Católico-Evangélica para a Superação da Pobreza (“Catholic-Evangelical Summit on Overcoming Poverty”), o presidente abordou o problema do abismo, cada vez maior, de renda entre pobres e ricos bem como as tensões que envolvem a vida em família, pedindo uma abordagem do tipo “tanto uma quanto a outra”, em vez de uma abordagem do tipo “ou uma, ou outra”.
“O estereótipo é que temos pessoas na esquerda que querem apenas aplicar mais dinheiro nos programas sociais e não se preocupam, em nada, quanto às estruturas culturais, parentais ou de família, e este é um estereótipo”, disse ele. “E então temos os ‘frios de coração’, os apoiadores do livre mercado, tipos capitalistas que leem Ayn Rand e pensam que os demais são uns inúteis, que não querem trabalhar. Eu acho que a verdade é mais complexa do que isso”.
Entre outros participantes do evento, que foi moderado pelo colunista do jornal Washington Post E.J. Dionne, estiveram Robert Putnam, renomado cientista social e autor do livro “Our Kids: The American Dream in Crisis”, e Arthur Brooks, presidente do American Enterprise Institute, famoso grupo de reflexão (“think tank”) conservador.
A conversa foi um dos elementos do encontro, de três dias de duração, que reuniu líderes católicos, evangélicos e outros para discutir o rompimento do ciclo da pobreza. Foi organizado pela Iniciativa para o Pensamento Social Católico e Vida Pública, na Georgetown University, instituição jesuíta localizada em Washington, DC.
Em sua fala, Putnam discorreu sobre a “evidência do fosso crescente entre os filhos dos ricos e os filhos dos pobres”.
Brooks, que escreveu que os conservadores “precisam declarar a paz nas redes de proteção [social]”, chamou estas de “uma das maiores conquistas da livre iniciativa” e ressaltou três “princípios-chave” que acredita serem necessários para romper com o atual partidarismo político referente à questão da pobreza:
• pensar os pobres como “irmãos e irmãs” em vez de “outros”;
• limitar as redes de proteção a “pessoas que estão verdadeiramente na condição de indigentes”;
• estipular que a ajuda do governo “sempre venha com o poder dignificante do trabalho”.
Mas coube ao presidente Obama fazer frente na melhor parte do debate.
Ele fez uma distinção entre o antes e o agora, apresentando o caráter e a significação do termo genérico “desigualdade”, cada vez mais usado como um substituto para a palavra “pobreza”.
“Não podemos ter um diálogo sobre a pobreza sem falar sobre o que aconteceu com a classe média e com as janelas da oportunidade que esta classe teve”, disse ele, observando que, durante os últimos 40 anos, “a parcela de renda que ia para os 90% da parte de baixo diminuiu de cerca de 65% para cerca de 53%”.
O presidente descreveu um quadro de um passado americano não tão distante, onde havia uma maior coesão social, “em que o banqueiro vive de forma razoável, próximo à do zelador da escola”, e que “a filha do zelador pode passear com o filho do banqueiro”.
Costumava existir um “conjunto de instituições comuns”, disse, e todas elas contribuíam para a “mobilidade social e para uma sensação de possibilidade, oportunidade para todas as pessoas”.
Mas o que aconteceu com a nossa economia, continuou, “é que aqueles que estão se dando cada vez melhor – os mais habilidosos, com maior grau de instrução, os mais sortudos, tendo maiores vantagens – estão retirando as possibilidades das pessoas comuns: os filhos começam a ir para escolas particulares; começam a trabalhar fora em clubes privados em vez dos parques públicos”, conduzindo a uma “ideologia antigoverno” que “desinveste” em bens públicos e cria desigualdade.
Mais adiante, o presidente se esclareceu, dizendo que esta dinâmica restritiva, que costumava somente afetar os negros americanos e outras populações minoritárias, está afetando, cada vez mais, os americanos de todas as etnias.
“As pessoas não gostam de ser pobres”, disse ele. “É demorado. Estressante. Difícil. E assim, com o passar do tempo, as famílias se desgastam. Os homens que não conseguiram arrumar um emprego debandaram. As mães solteiras não têm condições de ler tanto quanto deveriam para os seus filhos. Então, tudo aquilo que acontecia aos afro-americanos 40 anos atrás. Hoje, o que vemos é que estas mesmas tendências se aceleraram; elas estão se espalhando para a comunidade como um todo”.
E o governo não está aí para amparar as pessoas em suas recaídas, falou o presidente: “Vemos os orçamentos estaduais, municipais e federais, e não percebemos que não se faz mais aqueles mesmos investimentos comuns que costumávamos fazer (...) há uma pressão ideológica muito específica para não fazermos estes investimentos”.
Em seguida, Obama passou a dizer: “O que costumava ser uma segregação racial agora espelha-se na segregação de classe e nesta grande ordenação que está ocorrendo”. Falou também da fúria da classe média e dos “esforços em sugerir que os pobres são parasitas, sanguessugas”, que eles “não querem trabalhar, são preguiçosos, são indignos”, esforços que “receberam impulso” e ainda “estão sendo propagados”.
Pedido para responder logo em seguida, Brooks abordou a questão dos “bens públicos” e de como o governo deveria resolver o problema suprindo-os, concentrando-se na necessidade de “cálculos de custo-benefício”.
“Porque”, disse ele, “quando não fazemos cálculos de custo-benefício, pelo menos no nível macro dos bens públicos, são os pobres que pagam”.
Brooks então falou da necessidade de “se afastar da noção de que os ricos estão roubando dos pobres (...) Por quê? Porque os ricos são o próximo, os pobres são o próximo, e todos deveriam ser o nosso próximo; todos são nossos filhos”.
Vendo de um ponto de vista amplo, Brooks disse que “o capitalismo não é nada mais do que um sistema o qual deve estar predicado sobre costumes corretos”.
Putnam destacou o que o presidente falou sobre o desinvestimento público para debater o desinvestimento em “habilidades como de cooperação e trabalho em equipe, não só a de leitura, escrita, aritmética”.
Por exemplo, disse ele, a sociedade parou de investir em atividades extracurriculares tradicionais no nível de ensino médio, em coisas como a música, grupos musicais e futebol. Diferentemente, mensalidades estão atreladas a tais atividades e, muitas vezes, os “pobres não podem pagar por elas”.
“O país inteiro estava se beneficiando do fato de que nós termos um conjunto amplo de pessoas capacidades, com habilidades desenvolvidas”, disse Putnam.
Após isso, o presidente falou: “As grandes tendências econômicas, impulsionadas pela tecnologia e a globalização, criaram uma economia do tipo em que o vencedor leva tudo”; em que os salários dos CEOs dispararam, superando os salários dos trabalhadores médios a um grau sem precedente.
Não é que os CEOs sejam “pessoas más”, disse Obama. “O fato é que eles se libertaram de um certo conjunto de restrições sociais”.
A partir daí, a conversa moveu-se para a questão espinhosa da família e raça.
O presidente respondeu a críticas de que ele prefere jovens negros enquanto deixa de lado as “mulheres da Bernard”, ou seja, uma faculdade feminina filiada à Columbia University, de Nova York.
“É verdade que, se eu estou dando uma palestra na Morehouse [faculdade masculina historicamente frequentada por negros em Atlanta, Geórgia], eu terei um diálogo com as pessoas aí sobre como assumir responsabilidades na qualidade de pai, uma conversa que eu não vou ter com as mulheres da Barnard College”, disse o presidente. “E eu não peço nenhuma desculpa por isso. E o motivo é que eu sou um negro que cresceu sem um pai e conheço o preço que paguei por isso. E eu também sei que tenho a capacidade de romper este ciclo”.
Este comentário atraiu uma salva de palmas.
Família e economia são partes de uma equação do tipo “tanto uma quanto a outra” – e não “ou uma, ou outra” –, quando se trata de discutir a pobreza, segundo o presidente.
“Sou a favor dos valores; sou a favor do caráter”, disse ele. “Mas eu também sei que aquele caráter e aqueles valores que os nossos filhos têm, que lhes permitem vencerem, com disciplina e trabalho duro – [sei] que todas estas coisas são, em parte, moldadas pelo que eles enxergam, pelos que eles veem desde muito cedo. E alguns destes nossos filhos, neste exato momento, sem eles terem culpa alguma, não receberão ajuda em casa. Eles não estarão tendo a ajuda necessária em seus lares. E então a pergunta é: Estamos comprometidos em ajudá-los?”
Como sempre, “o diabo mora detalhes”, disse Obama. “Se conversarmos com qualquer um dos meus amigos republicanos, eles dirão: 1) que se preocupam com os pobres – e eu acredito que sim; 2) que existem alguns bens públicos que precisam ser feitos – e eu também acredito que sim. Mas, quando se trata de realmente definir orçamentos, fazer escolhas, priorizar, aí é que começa o racha”.
“Os 25 maiores gestores de fundos de cobertura fizeram mais dinheiro do que todos os professores do jardim de infância no país inteiro”, disse ele. É aqui onde a “questão da compaixão e do ‘Eu sou o guardião do meu irmão’ entra em jogo”, disse ele. “E se não pudermos simplesmente pedir aos vencedores da loteria que façam estes investimentos modestos, então, realmente, este diálogo não vai levar a nada”.
A isso Brooks respondeu dizendo que “precisamos ter muito cuidado para não atacar como falsos os motivos dos conservadores”.
Disse que “abordar assim os motivos do outro lado é o obstáculo número 1 contra o progresso”, e que o entendimento, olho a olho, entre progressistas e conservadores jamais será possível enquanto os “políticos da direita e da esquerda estiverem conspirando para não tocarem nos direitos da classe média”, que representam um “caminho insustentável”.
Perto do final do debate, Dionne pediu ao presidente para que falasse sobre o papel da comunidade religiosa em chamar a atenção para a pobreza.
O presidente disse que o seu primeiro emprego era financiado pela Campanha Católica de Desenvolvimento Humano, e disse que “os grupos religiosos, em todo o país e ao redor do mundo, compreendem a centralidade e a importância deste assunto de uma forma íntima – em parte porque tais organizações religiosas interagem com pessoas que lutam para sobreviver e sabem o quanto estas pessoas são boas; tais organizações conhecem as histórias destas pessoas. Não é uma questão apenas teológica, mas sim muito concreta”.
Porém o presidente, que se desentendeu com os bispos americanos no passado com questões tais como o casamento homoafetivo e o aborto, também criticou os grupos religiosos, ao questionar a disposição deles em “apoiar com toda a força” a pobreza.
A pobreza, disse ele, é “muitas vezes vista [por grupos religiosos] como uma coisa ‘legal de se ter’”.
“Eu acho que se pode fazer mais aqui”, disse o presidente; uma “voz transformadora em torno destas questões, que possa movimentar, tocar as pessoas”.
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Em encontro sobre a pobreza, Obama descreve uma “grande ordenação” por classe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU