06 Fevereiro 2015
As manifestações na cidade natal do piloto queimado foram muito violentas, e a recusa do Estado Islâmico alcançou um nível nunca registrado antes. Como demonstrado pelas reações de condenação na Jordânia, esse relançamento à barbárie pode se revelar perigoso, senão fatal, para os islamitas, mesmo com uma população em que os simpatizantes às suas causas são numerosos.
A opinião é do cientista político francês Gilles Kepel, especialista em Islã e no mundo árabe contemporâneo, professor do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 05-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O terrorismo islâmico é forçado a se renovar no horror, com uma inventividade permanente da abominação. As crucificações, as decapitações e, agora, a cremação de um ser vivo servem, acima de tudo, para captar a atenção da rede.
Mas a guerra de propaganda pode ser uma faca de dois gumes, e esse horror levado ao extremo, até limites que parecem avançar a cada vídeo, pode se tornar uma armadilha.
Os jihadistas sempre correm o risco de ultrapassar o aceitável, como aconteceu no dia 3 de fevereiro, quando queimaram vivo, em uma gaiola de aço, um piloto jordaniano, executando uma sentença que não tem nenhum precedente conhecido na história das civilizações muçulmanas e que não repousa sobre nenhum texto sagrado, ao contrário da degola, sobre a qual, ao contrário, abundam os exemplos e as citações.
O último vídeo do Estado Islâmico foi divulgado no dia em que o rei da Jordânia estava em visita a Washington para celebrar a aliança entre os dois países. Mais uma vez, o sentido do oportunismo político do chamado califado se demonstrou vencedor, porque o rei hashemita foi forçado a interromper a sua visita à América e a voltar para a Jordânia com pressa e fúria.
Os jihadistas novamente atingiram o seu objetivo com um sábio uso da extraordinária força das redes sociais. É assim que, até agora, conseguiram se impôr aos Estados e aos seus aparatos militares.
A tradição islâmica proíbe a cremação de seres vivos, porém, na sua mente, os islamitas queriam impor ao piloto jordaniano uma morte tão infame que justificaram com a busca de uma vingança exemplar. A pena que lhe foi infligida lembra de degola teatralizada dos pilotos da aviação de Damasco que, há dois meses, chocou o mundo inteiro.
O Estado Islâmico pensou que, para aqueles que são bombardeados com barris carregados de TNT, essas mortes deviam aparecer como um castigo merecido, porque nada é mais atroz do que ver os próprios filhos queimarem entre as chamas e a própria casa destruída pelo explosivo. É o mesmo raciocínio usado desta vez: o fogo que queima o piloto é a resposta para o fogo dos incêndios que os bombardeios aéreos desencadeiam.
Mas, para além do oportunismo político e da lei do talião que passam através da rede, podemos nos perguntar se o Estado Islâmico não cometeu um grave erro na sua contínua busca de atrair grupos de simpatizantes cada vez mais numerosos. Este último crime como que desencadeou o efeito contrário ao esperado e inverteu a tendência que era do alistamento voluntário e maciço entre as suas fileiras.
As chamas que lambem o piloto antes de carbonizá-lo despertaram nas massas do mundo muçulmano um sentimento de horror. No seu conjunto, a comunidade islâmica rejeitou em bloco uma seita que, aos seus olhos, já é vítima daquilo que os árabes chamam de gholu, ou seja, exagero. E, nesse caso, o exagero é um crime, porque tanto horror provoca nojo e raiva, e coloca a comunidade dos fiéis muçulmanos em situação de fraqueza em relação aos seus potenciais inimigos.
As manifestações na cidade natal do piloto queimado foram muito violentas, e a recusa do Estado Islâmico alcançou um nível nunca registrado antes.
No entanto, ao lado dessas manifestações populares de indignação, há o medo desencadeado nos países árabes que participam das invasões da coalizão internacional, a tal ponto que ao menos um deles, os Emirados Árabes Unidos, decidiu não enviar mais os seus pilotos para bombardear os territórios conquistados pelo Estado Islâmico para evitar eventuais consequências à sua captura.
Como demonstrado pelas reações de condenação na Jordânia, esse relançamento à barbárie pode se revelar perigoso, senão fatal, para os islamitas, mesmo com uma população em que os simpatizantes às suas causas são numerosos. Agora, é provável que mesmo os banlieues de Paris ou de Marselha vivam a mesma repulsa contra a última atrocidade jihadista, e que, nas próximas semanas, menos jovens partirão para combater na Síria e no Iraque. Agora, os muçulmanos, em vez de se solidarizarem com os jihadistas, poderiam tomar distância das suas ações e dos seus crimes.
Isso ocorre também entre os islâmicos mais moderados da França e da Europa. Um mês depois dos atentados em Paris, são muitos os muçulmanos que fazem um exame de consciência, incluindo aqueles para os quais os desenhistas do Charlie Hebdo, culpados de blasfêmia com as caricaturas do Profeta, tinha "procurado" o fim que tiveram.
Todos se perguntam, por primeira coisa, de que modo a convivência ainda é possível com o restante da sociedade francesa e se não é melhor condenar muito mais radicalmente de uma vez por todas esses jihadistas que "exageram".
Enquanto isso, in loco, deteve-se aquele avanço do Estado Islâmico que, até poucos meses atrás, parecia irrefreável: enquanto as forças curdas apoiadas pelo Ocidente se preparam para a ofensiva da primavera contra as periferias de Mosul, Kobane foi retomada, assim como uma parte dos territórios yazidis ao redor de Sinjar.
É por isso também que o Estado Islâmico quer, a todo o custo, aumentar os seus efetivos. Mas o que ele fez no início do ano parece ter provocado o efeito oposto.
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A armadilha do horror. Artigo de Gilles Kepel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU