Quando o sinal da paz se torna um ''abuso litúrgico''

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17 Outubro 2014

Esqueçam o Evenu shalom alejem. Ou o Paz, paz de Cristo. Ou qualquer outro canto que, nessas décadas, tenha acompanhado o sinal da paz durante a missa. De fato, trata-se de um "abuso litúrgico". A afirmação é da Congregação para o Culto Divino em uma circular que traz a data de Pentecostes, 8 de junho passado.

A reportagem é de Vittoria Prisciandaro, publicada na revista Jesus, de outubro de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A carta se debruça sobre a colocação e as modalidades do rito da paz, mas, mais do que dar respostas, levanta muitas perguntas. A principal preocupação parece ser impedir aqueles que são definidos como "abusos": o canto; o deslocamento dos fiéis do seu lugar; o afastamento do sacerdote do altar; o uso impróprio do gesto para expressar, em ocasiões particulares, desejos ou condolências.

Lembra-se que o "sinal da paz, em determinadas ocasiões, pode ser omitido e às vezes deve ser omitido". Mas também se fala da importância do compromisso com a paz, um dom que – está escrito – deve ser invocado, acolhido e expressado pelas Igrejas na liturgia.

"É um texto cheio de contradições. Há até um parágrafo em que se afirma uma coisa e depois o seu contrário", defende Andrea Grillo, professor do Pontificio Ateneo Sant'Anselmo de Roma e do Instituto de Liturgia Pastoral de Pádua.

O liturgista considera que é preciso "trabalhar sobre o gesto da paz", mas a circular do dicastério vaticano contesta o estilo e os conteúdos: "Não podemos partir da lista dos abusos colocando dentro dela todas as coisas feitas nos últimos 50 anos e tornando-nos nostálgicos de uma Igreja que não tinha o sinal da paz".

Mas procedamos com ordem, partindo da colocação do gesto: "Na tradição romana, o gesto da paz é antes da Comunhão, leia-se dentro da relação com o Ressuscitado. Na tradição ambrosiana, é antes da oração eucarística e tem um valor penitencial: chego à presença de Cristo tendo superado os problemas com os irmãos. A Congregação considerou que o rito da paz deve permanecer lá onde o encontramos desde sempre e recuperado depois do Concílio".

Uma contextualização histórica que, porém, a carta não faz: "Redescoberto depois do Vaticano II, tornou-se um gesto próprio da assembleia. Antes, estava presente apenas na missa solene e era reservado ao presbitério". Pois bem, segundo o liturgista, os critérios com base nos quais são avaliados os "abusos" fazem referência implicitamente ao rito pré-conciliar, não ao atual.

"Por exemplo, diz-se que não há tempo para o canto de paz, mas só é assim se pensarmos em um gesto que dure três segundos. O renovado tem uma temporalidade própria justamente porque envolve a assembleia. Certamente, se todos deram a mão a todos, não se acaba mais. Mas não acredito que uma coisa desse tipo jamais tenha acontecido."

Pode acontecer que os coroinhas atravessam a nave da igreja e deem a mão às pessoas de fora de todas as filas, ou os presbíteros, aos fiéis dos primeiros dois ou três bancos... O que torna aqueles dois minutos úteis para um canto breve.

Em suma, um gesto compartilhado e compreensível por todos os celebrantes, povo e presbíteros. E então como é que, em uma liturgia que corre o risco de comunicar cada vez menos, é "limitado" justamente um dos sinais mais imediatos? Com um texto que soa pouco em sintonia com um pontificado feito de abraços vigorosos e mãos que se apertam?

"Não sei. O papa assina uma série de textos, mas este é o fruto de uma Congregação que, desde 2001, tirou do forno alguns documentos que estão em forte tensão em relação com a reforma litúrgica. Essa carta também é expressão de uma mentalidade clerical que olha para o rito como para uma ocasião de possíveis erros. Como o sinal da paz tem a ver com o antropológico, não só se busca evitá-lo, mas também se diz que é preciso encontrar um gesto que seja diferente dos modos comuns. É evidente que a liturgia também é solenidade e nobreza, não só espontaneidade, porém, tudo faz parte do profano: caminhar, beijar o altar, comer, beber... Por trás desse posicionamento, há a ideia de que o rito é repertório sagrado, sequestrado por parte do clero. É o ritus servandus, de sabor tridentino."

Se dar-se a mão ou beijar-se é comum demais, o que será preciso fazer? "Não sei. Olhar-se nos olhos? Se quisermos pensar em um gesto que rompa com as tradições humanas, não o encontraremos e, portanto, não o faremos mais. E, se o pensarmos de modo não antropológico, não entenderemos o que se deva fazer. São coisas que, em 50 anos, começamos a superar: o Vaticano II teria que ter ensinado, também aos oficiais da Cúria, que é prioritário recuperar os usos, não definir e condenar os abusos. A primeira atitude vem da coragem; o segundo, do medo. Com essa circular, a Congregação parece apegada a uma compreensão defensiva e puramente reguladora da liturgia. Coisa de outros tempos. Uma página feia, que deve ser arquivada com pressa."