Família e Matrimônio. Reflexões a propósito do Sínodo

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Por: Jonas | 05 Outubro 2014

Refletindo sobre os desafios a ser enfrentados pelo Sínodo sobre a Família, o teólogo José María Castillo considera que “uma vez destravada a “cinta dogmática” que poderia nos impedir ou dificultar a busca, em liberdade, da resposta que hoje tantos crentes católicos (ou simplesmente cristãos) necessitam, tendo em conta que as questões que se apresentam no Sínodo são, tanto cientificamente como teologicamente, “quaestiones disputatae” (“questões discutidas”), a resposta evangélica e cristã mais coerente e certeira será a resposta que mais humanize a nós todos na bondade, no respeito, na tolerância e na busca da felicidade para os que se debatem na dúvida, em busca do bem e do amor a todos e para todos”. O artigo é publicado em seu blog Teología Sin Censura, 03-10-2014. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Nas vésperas da celebração do Sínodo sobre a Família, se é que, efetivamente, segundo o que parece, as questões mais urgentes serão de ordem moral, no mencionado Sínodo, é possível – mais ainda, provável – que as reflexões seguintes sejam de alguma utilidade.

1. Uma questão prévia, que poderia ser de enorme importância, é que a Hierarquia da Igreja questione a razão de seus ensinamentos estarem em âmbitos tão distintos quando enfrentam problemas relacionados ao dinheiro ou problemas relacionados ao amor entre os seres humanos. É muito comum que quando a Hierarquia eclesiástica e a Teologia católica se referem a assuntos cujas temáticas determinantes são o direito de propriedade, o dinheiro, o capital, o lucro e a acumulação de bens, os ensinamentos teológicos e magisteriais costumem ficar no âmbito do especulativo, do genérico e do meramente exortativo, ao passo que quando a Hierarquia e a Teologia pensam e pretendem resolver os problemas e as situações que afetam a relação amorosa entre as pessoas, a resposta magisterial e teológica vá diretamente ao campo das decisões, ou seja, não se limita à especulação doutrinal, nem sequer à exortação, mas, sim, aterrissa logo na decisão, que se traduz em norma, em lei, que proíbe ou impõe, inclusive com severas punições aos que não se atêm a um presumível “direito natural”, que, ao se colocar como constitutivo da mesma natureza criada e querida por Deus, não admite discussão e, menos ainda, qualquer forma de rejeição.

Este desacordo – inclusive esta incoerência – entre o “magistério sobre o dinheiro” e o “magistério sobre o amor” é algo que resulta, antes de qualquer coisa, tão patente e, por outro lado, tão inexplicável, que o efeito de tudo isso, na opinião pública, costuma ser o escândalo.

E o conseguinte desprestígio para a Igreja, que desse modo perde credibilidade e autoridade para falar de dois assuntos tão determinantes para a vida dos cidadãos, como é o caso das convicções que estes devem assumir diante dos problemas que a economia e a família nos apresentam. Porque ao nos deparar com dois problemas tão grandes, como são o dinheiro e o amor, nunca deveríamos esquecer que estes dois âmbitos da vida, o da economia e o da família, estão tão intimamente ligados um ao outro que, como em seguida veremos, na prática são inseparáveis.

Com isso, quero dizer que: ou ambos são resolvidos juntamente, com a mesma contundência e a mesma linguagem; ou produzem o efeito contrário, que consiste em que, ao pretender (inconscientemente) separar dois âmbitos da vida e da sociedade, que não podem se separar, o que se consegue é perder a credibilidade, tanto no que a Igreja diz (ou se cala) sobre o dinheiro e o capital, como o que a Igreja diz (ou se cala) sobre a experiência determinante do amor entre os seres humanos.

Os exemplos e as perguntas sobre o problema que acabo de apontar se amontoam e se acentuam de dia para dia. Por que a Igreja é tão exigente no que se refere ao aborto (eu não sou abortista), defendendo a vida do embrião e do feto, e não igualmente comprometida e exigente nos intermináveis problemas que apresenta a espantosa questão do tráfico de crianças, o uso e abuso das crianças nos trabalhos forçados, em guerras, na compra e venda de órgãos, etc., etc.? Por que a Igreja impõe a excomunhão “latae sententiae” para aqueles que procuram o aborto, e não usa da mesma censura para com aqueles que obrigam as crianças a ir à guerra como soldados ou a trabalhar até doze horas diárias por uma diária de miséria? Por que a Igreja (na qual há tantos crentes exemplares) vê um perigo tão grave para a família no matrimônio homossexual e não vê um perigo tão grave – ou maior ainda – nas condições econômicas que as famílias precisam suportar, destroçadas pelo desemprego, diárias de fome, insegurança sanitária e trabalhista, péssimas condições para a educação dos filhos, etc., etc.?

2. Nos problemas relativos à família, a Igreja deveria ter sempre presente que, ao menos até o século IV, os cristãos seguiram os mesmos condicionamentos e usos, no que concerne ao casamento, que o ambiente pagão (J. DUSS-VON-WERDT, em Myst. Sal., vol. IV/2, 411). Isso quer dizer que os cristãos dos primeiros séculos não tinham consciência que a revelação cristã trouxe algo novo e específico ao fato cultural do matrimônio em si. De qualquer modo, é certo que o casamento diante de um sacerdote, como exigência obrigatória, apareceu pela primeira vez em 845, nos direitos pseudo-isidorianos e se justificava por razões de direito civil, não por argumentos teológicos (J. G. LE BRAS, Histoire des collections canoniques en Occident depuis les Fausses Décrëtales jusqu’à Gratien, Paris, 1931. Cf. J. DUSS-VON-WERDT, ou c., 414). Somente em fins do século XII, em 1184, é que se fala formalmente, e pela primeira vez, do matrimônio como sacramento, no Concílio de Verona (DENZINGER-HÜNERMANN, El Magisterio de la Iglesia, n. 761). No mais, em todo este assunto é básico saber que até os séculos XII e XIII, tempo em que se sistematizou a teologia cristã como saber organizado, a Igreja não apenas foi regida pelo Direito romano, como também – como se sabe muito bem – a custódia da tradição jurídica romana recaiu fundamentalmente sobre ela. Como instituição, o Direito próprio da Igreja em toda Europa foi o Direito romano. Como se dizia na Lei ripuária dos francos (61(58) 1), “a Igreja vive conforme o Direito romano”. É verdade que a Igreja ia construindo seu próprio Direito. Porém, também é certo que na medida em que os problemas que a Igreja precisava enfrentar cresciam em complexidade, as referências ao Direito romano eram incrementados. O material romano relevante para a Igreja foi reunido em coleções específicas, tais como a Lex Romana Canonice Compta, realizada no século IX. O fato é que, como disseram os especialistas nestas questões, “a Igreja não reduz seus ensinamentos ao Evangelho” (PETER G. STEIN, El Derecho romano en la historia de Europa, Madrid, Siglo XXI, 2001, 57). Todo o sistema organizativo e legal da Igreja foi sendo gestado sobre a base, não tanto do Evangelho, mas, sim, do Direito romano, a lex mundialis, como o denominou o Concílio de Sevilla, de 619, presidido por Santo Isidoro (Conc. Hispalense II. Cth. 5. 5. 2. ENNIO CORTESE, Le Grandi linee della Storia Giuridica Medievale, Roma, 2008, 48).

Portanto, se a Igreja não viveu dificuldade alguma para se adaptar às leis civis e laicas dos povos e culturas nos quais foi crescendo, ajustando-se sem colocar oposição ou resistência, qual é a razão de agora, quando o cristianismo já não é uma instituição de âmbito europeu, mas, sim, global, rejeitarmos que a Igreja aceite e integre em sua vida os usos e costumes, as tradições e normas de conduta, que a cada momento e em cada país sejam vistos como mais convenientes?

3. Se ao acima exposto, acrescentamos agora o ponto de vista dos mais competentes sociólogos de nosso tempo, teremos elementos de avaliação suficientes para poder nos situar diante dos problemas que se apresentam e as soluções que a família necessita no momento atual, já nesse terceiro milênio. Antes de qualquer coisa, convém levar em conta que a família tradicional era, sobretudo, uma unidade econômica. A transmissão da propriedade era a base principal do matrimônio. Por outro lado, na Europa medieval o matrimônio não era construído sobre a base do amor sexual, nem era considerado um espaço onde o amor devia florescer. E a tudo isto é preciso acrescentar a desigualdade entre homens e mulheres como elemento constitutivo da família tradicional (cf. ANTHONY GIDDENS, Un mundo desbocado, Los efectos de la globalización en nuestras vidas. Madri, Taurus, 2000, 65-79). Agora, é evidente que a renovação da família e do matrimônio é preciso ser construída sobre a base de um fato fundamental, a saber: a família já não é uma unidade econômica, como também, em todo caso, deve ser construída sobre o fundamento do amor sexual. E, sobretudo, é fundamental ter presente, em todo caso, que a igualdade de direitos entre homem e mulher e a liberdade na tomada de decisões de ambos são os pilares sobre os quais é possível renovar e reconstruir a família e o matrimônio, neste momento.

Portanto, as soluções que possam ser dadas aos problemas apresentados ao Sínodo, concretamente a problemática do divórcio, a aceitação por parte da Igreja das uniões entre pessoas do mesmo sexo ou o uso de anticoncepcionais, são questões de suma importância para centenas de milhares de pessoas, e que podem ser resolvidas sem se atentar, nem colocar em questão a teologia cristã do matrimônio. A Igreja pode hoje resolver estes problemas mudando a atual legislação canônica e sem trair em nada sua fé e sua tradição.

4. Do ponto de vista da teologia dogmática, resta responder uma pergunta fundamental: o ensinamento tradicional da Igreja sobre os sacramentos, portanto, também sobre o sacramento do matrimônio, não é doutrina de fé? Considerando uma série de dados históricos, que neste breve estudo não é possível resumir, e caso nos prendamos à conclusão que podemos e devemos defender sobre este assunto fundamental, é possível e se deve afirmar que não resta dúvida que o conceito de fé e, consequentemente, também o conceito de heresia, utilizados pelos teólogos e bispos de Trento, eram algo muito diferente do que agora se entende a partir desses conceitos. Isto é certo, ao menos no que diz respeito à Sessão VII do concílio tridentino (DENZINGER-HÜNERMANN, nn. 1600-1613). Portanto, é possível afirmar, com toda a certeza, que a doutrina que foi definida em Trento sobre os sacramentos não é uma doutrina de fé no sentido de um conjunto de verdades de fé divina e católica. Nem, consequentemente, a negação ou o questionamento das verdades que foram enunciadas na mencionada Sessão VII comporta incorrer em heresia (JOSÉ M. CASTILLO, Símbolos de libertad. Teología de los sacramentos. Salamanca, Sígueme, 1981, 340-34; P. F. FRANSEN, Réflexions sur l’anathème au concilie de Trente: ETL 29 (1953) 670; A. LANG, Der Bedeutungswandel der Begriffe “fides” und “haeresis” und die dogmatische Wertung der Konzilsentscheidungen von Viene und Trient: MTZ 4 (1953) 133-146). Sendo assim, é claro que as formulações clássicas da teologia sacramental podem e devem ser repensadas a partir de uma nova perspectiva. E, portanto, tais formulações clássicas podem e devem ser pensadas e apregoadas a partir dos problemas que hoje vemos e vivemos sobre os sacramentos. E com o objetivo de dar a devida solução a tais problemas.

Sendo assim, uma vez destravada a “cinta dogmática” que poderia nos impedir ou dificultar a busca, em liberdade, da resposta que hoje tantos crentes católicos (ou simplesmente cristãos) necessitam, tendo em conta que as questões que se apresentam no Sínodo são, tanto cientificamente como teologicamente, “quaestiones disputatae” (“questões discutidas”), a resposta evangélica e cristã mais coerente e certeira será a resposta que mais humanize a nós todos na bondade, no respeito, na tolerância e na busca da felicidade para aqueles que se debatem na dúvida, em busca do bem e do amor a todos e para todos.

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