18 Agosto 2014
O legado dos mártires coreanos deve inspirar-nos a trabalhar em harmonia "para uma sociedade mais justa, livre e reconciliada", disse o Papa Francisco a centenas de milhares de coreanos que lotaram o centro de Seul para a missa de beatificação de 124 mártires coreanos no sábado.
A reportagem é de Thomas C. Fox, publicada no sítio National Catholic Report, 15-08-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Segurando rosários e vestindo cores designadas por suas paróquias, homens e mulheres, jovens e velhos, começaram a se reunir ao amanhecer, engrossando as fileiras enquanto a manhã avançava. A polícia isolou quarteirões do centro de Seul, parando todo o tráfego e exigindo cartões especiais de identificacão para os participantes da missa para que pudessem passar pelas barreiras de segurança.
Algumas estimativas da multidão presente colocaram os números em até 2 milhões de pessoas.
Os fiéis coreanos esperavam pacificamente, sentados em fileiras e em locais pré-estabelecidos. Eles cantaram e aplaudiram durante toda a manhã enquanto a música tocava em alto-falantes. Telas gigantes de TV estavam alinhadas na avenida que leva até a praça onde o papa celebrou a missa.
Um ponto alto aconteceu logo no início quando o papa chegou em seu papamóvel branco, com as laterais abertas. Assim começou uma lenta e longa jornada de mais ou menos um quilômetro ao longo de uma estrada que leva à Praça de Gwanghwamun, onde um grande altar havia sido construído.
Enquanto Francisco se movimentava, milhares de coreanos, em cada quarteirão, aplaudiam e acenavam, segurando seus celulares para registrar o momento. O veículo de Francisco parava de vez em quando, permitindo-lhe dar um beijo na testa de crianças pequenas que eram levadas até ele. Ele acenava de volta com os dois braços estendidos e um sorriso agradecido.
A cerimônia matinal de beatificação, que durou duas horas e meia, foi, ao mesmo tempo, solene e alegre. Foi considerada um dos pontos altos da viagem de cinco dias de Francisco à Coreia e, provavelmente, foi o encontro que atraiu o maior número de pessoas de sua jornada.
Muito possivelmente, a maior parte dos 10,4 milhões de católicos coreanos teve um vislumbre de seu pontífice, em algum momento durante a sua viagem.
No momento da beatificação oficial, fortes aplausos ecoaram por toda a cidade.
Francisco estava vestido de vermelho, a cor dos mártires. Na hora da comunhão, ele parecia aliviado por se sentar e, enquanto isso, observava alguns dos 1.900 padres que participaram da missa distribuir a Eucaristia.
Os organizadores disseram que 100 bispos da Coreia e do exterior participaram da missa, a maior parte vinda de outras nações asiáticas. Cerca de 170.000 paroquianos em caravanas também receberam assentos na praça.
Estima-se que 400 familiares da tragédia da balsa Sewol foram convidados como convidados especiais. Atendendo a um pedido pessoal especial de última hora, o Papa Francisco concordou em batizar um pai que perdeu um filho no desastre de abril, que tirou a vida de 306 pessoas, a maioria delas adolescentes.
Outro homem, pai de uma menina de 17 anos que morreu no naufrágio e que estava jejuando há 34 dias para chamar a atenção às demandas das "famílias" das vítimas para que o governo aprove uma legislação para a abertura de uma investigação oficial sobre o desastre, teve seu desejo atendido no sábado: ele se reuniu brevemente com o Papa Francisco para pedir o seu apoio aos esforços da família.
O Papa Francisco fez sua homilia em italiano, parando a cada minuto ou dois para que a tradução em coreano pudesse ser lida para os participantes da missa.
"Hoje, muitas vezes, experimentamos que a nossa fé é posta à prova pelo mundo, sendo-nos pedido de muitíssimas maneiras para condescender no referente à fé, diluir as exigências radicais do Evangelho e conformar-nos com o espírito do tempo", disse Francisco. "Mas os mártires chamam-nos a colocar Cristo acima de tudo, considerando todas as demais coisas neste mundo em relação a Ele e ao seu Reino eterno. Os mártires levam-nos a perguntar se há algo pelo qual estamos dispostos a morrer".
O Papa Francisco aprovou a beatificação de Paulo Yun Ji-chung e 123 outros mártires em fevereiro passado. A notícia veio 30 anos depois que outros 103 mártires coreanos foram canonizados por João Paulo II, que visitou a Coreia naquela época.
Na manhã de sábado, foi relatado que na sexta-feira, pouco depois das 20 horas, Francisco fez uma visita não-oficial à residência de seus confrades jesuítas, que está localizada dentro do campus da Universidade Sogang. Para o papa jesuíta, o objetivo dessa visita foi para passar um "tempo comum de recreação com a comunidade e relaxar com seus companheiros jesuítas".
Seus comentários finais aos jesuítas foram: "Sejam jesuítas que dão consolo para as pessoas e rezem por mim com frequencia". Ele saiu pouco depois das 21h para descansar na residência da nunciatura papal.
Publicamos a seguir o texto completo da homilia do Papa Francisco na missa de beatificação dos mártires coreanos.
Eis o texto.
«Quem nos separará do amor de Cristo?» (Rm 8, 35). Com estas palavras, São Paulo fala-nos da glória da nossa fé em Jesus: Cristo não só ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu, mas uniu-nos a Si mesmo, tornando-nos participantes da sua vida eterna. Cristo é vitorioso e a sua vitória é nossa!
Hoje celebramos esta vitória em Paulo Yun Ji-chung e nos seus 123 companheiros. Os seus nomes vêm juntar-se aos dos Santos Mártires André Kim Taegon, Paulo Chong Hasang e companheiros, aos quais pouco antes prestei homenagem. Todos viveram e morreram por Cristo e agora reinam com Ele na alegria e na glória. Com São Paulo, dizem-nos que Deus, na morte e ressurreição de seu Filho, nos deu a maior de todas as vitórias.
De fato, «nem a morte, nem a vida, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor» (Rm 8, 38-39).
A vitória dos mártires, o testemunho por eles prestado à força do amor de Deus, continua ainda hoje a dar frutos na Coreia, na Igreja que recebe incentivo do seu sacrifício. A celebração do Beato Paulo e dos seus companheiros nos dá oportunidade de voltar aos primeiros momentos, aos alvores da Igreja na Coreia. Convido-vos, católicos coreanos, a lembrar as grandes coisas que Deus realizou nesta terra e a guardar, como um tesouro, o legado de fé e caridade que vos foi confiado pelos vossos antepassados.
Na providência misteriosa de Deus, a fé cristã não chegou às costas da Coreia por intermédio de missionários; mas entrou através dos corações e das mentes do próprio povo coreano. Este foi estimulado à fé pela curiosidade intelectual, pela busca da verdade religiosa. Foi através de um encontro inicial com o Evangelho que os primeiros cristãos coreanos abriram as suas mentes a Jesus. Queriam saber mais sobre este Cristo que sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos; e este aprender algo sobre Jesus bem depressa levou a um encontro com o próprio Senhor, aos primeiros batismos, ao desejo duma vida sacramental e eclesial plena e ao início de um compromisso missionário. Além disso, frutificou em comunidades que se inspiravam na Igreja primitiva, onde os fiéis formavam verdadeiramente um só coração e uma só alma, sem olhar às diferenças sociais tradicionais, e possuíam tudo em comum (cf. Act 4, 32).
Esta história é muito elucidativa sobre a importância, a dignidade e a beleza da vocação dos leigos. Dirijo a minha saudação a tantos fiéis leigos aqui presentes, especialmente às famílias cristãs que diariamente, com o seu exemplo, educam os jovens para a fé e o amor reconciliador de Cristo. De modo especial, saúdo os inúmeros sacerdotes aqui presentes: através do seu ministério generoso, transmitem o rico patrimônio de fé cultivado pelas passadas gerações de católicos coreanos.
O Evangelho de hoje contém uma mensagem importante para todos nós. Jesus pede ao Pai que nos consagre na verdade e nos guarde do mundo.
Antes de mais nada, é significativo que Jesus, ao pedir ao Pai que nos consagre e guarde, não Lhe pede para nos tirar do mundo. Sabemos que envia os seus discípulos para serem fermento de santidade e verdade no mundo: o sal da terra e a luz do mundo. Nisto, os mártires mostram-nos o caminho.
Algum tempo depois que as primeiras sementes de fé foram lançadas nesta terra, os mártires e a comunidade cristã tiveram que escolher entre seguir Jesus ou o mundo. Tinham escutado a advertência do Senhor, ou seja, que o mundo os odiaria por causa d'Ele (cf. Jo 17, 14); sabiam qual era o preço de ser discípulo. Para muitos, isso significou a perseguição e, mais tarde, a fuga para as montanhas, onde formaram aldeias católicas. Estavam dispostos a grandes sacrifícios e a deixar-se despojar de tudo o que pudesse afastá-los de Cristo: os bens e a terra, o prestígio e a honra, porque sabiam que somente Cristo era o seu verdadeiro tesouro.
Hoje, muitas vezes, experimentamos que a nossa fé é posta à prova pelo mundo, sendo-nos pedido de muitíssimas maneiras para condescender no referente à fé, diluir as exigências radicais do Evangelho e conformar-nos com o espírito do tempo. Mas os mártires chamam-nos a colocar Cristo acima de tudo, considerando todas as demais coisas neste mundo em relação a Ele e ao seu Reino eterno. Os mártires levam-nos a perguntar se há algo pelo qual estamos dispostos a morrer.
Além disso, o exemplo dos mártires ensina-nos a importância da caridade na vida de fé. Foi a pureza do seu testemunho de Cristo, manifestada na aceitação da igual dignidade de todos os batizados, que os levou a uma forma de vida fraterna que desafiava as rígidas estruturas sociais do seu tempo. Foi a sua recusa de separar o duplo mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo que os levou a tão grande solicitude pelas necessidades dos irmãos. O seu exemplo tem muito a dizer a nós que vivemos numa sociedade onde, ao lado de imensas riquezas, cresce silenciosamente a pobreza mais abjeta; onde raramente se escuta o grito dos pobres; e onde Cristo continua a chamar, pedindo-nos que O amemos e sirvamos, estendendo a mão aos nossos irmãos e irmãs necessitados.
Se seguirmos o exemplo dos mártires e acreditarmos na palavra do Senhor, então compreenderemos a sublime liberdade e a alegria com que eles foram ao encontro da morte. Além disso, veremos que a celebração de hoje abraça os inúmeros mártires anônimos, neste país e no resto do mundo, que, especialmente no século passado, ofereceram a sua própria vida por Cristo ou sofreram duras perseguições por causa do seu nome.
Hoje é um dia de grande alegria para todos os coreanos. O legado do Beato Paulo Yun Ji-chung e dos seus Companheiros – a sua retidão na busca da verdade, a sua fidelidade aos supremos princípios da religião que tinham escolhido abraçar, bem como o seu testemunho de caridade e solidariedade para com todos – tudo isso faz parte da rica história do povo coreano. O legado dos mártires pode inspirar todos os homens e mulheres de boa vontade a trabalharem harmoniosamente por uma sociedade mais justa, livre e reconciliada, contribuindo assim para a paz e a defesa dos valores autenticamente humanos neste país e no mundo inteiro.
Possam as orações de todos os mártires coreanos, em união com as de Nossa Senhora, Mãe da Igreja, obter-nos a graça de perseverar na fé e em toda a boa obra, na santidade e pureza de coração e no zelo apostólico de testemunhar Jesus nesta amada Nação, em toda a Ásia e até aos confins da terra. Amém.
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Beatificações coreanas: mistura de alegria e solenidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU