Por: André | 28 Novembro 2013
Intitula-se Evangelii Gaudium, a alegria do Evangelho. É quilométrica e enciclopédica, mas com uma escala precisa das prioridades. Na sequência, apresentamos os parágrafos chaves, com uma passagem referida ao aborto.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 26-11-2013. A tradução é de André Langer.
“Uma pastoral missionária não deve ficar obcecada com a transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir”.
Fonte: http://bit.ly/1eqlYlJ |
Isto foi dito pelo Papa Francisco na entrevista concedida à revista La Civiltà Cattolica em agosto passado.
Repetiu estas mesmas palavras, literalmente, na imponente Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, promulgada no dia 24 de novembro, verdadeira e propriamente a “regra pastoral” do seu pontificado.
Mas com uma diferença importante.
Enquanto na entrevista publicada na La Civiltà Cattolica o expeditivo do enunciado havia dado a impressão de uma mudança brusca de linha do atual Papa em relação aos seus predecessores sobre questões capitais, como o aborto e o casamento homossexual, na Evangelii Gaudium, pelo contrário, Francisco desenvolve a argumentação em seis parágrafos, com a evidente vontade de desfazer qualquer equívoco. E mais adiante dedica outros dois parágrafos esclarecedores especificamente ao tema do aborto.
Comparando os dois textos, estes assumem hoje o aspecto de um esboço, no primeiro caso, e de uma argumentação completa, no segundo caso.
Na entrevista concedida à La Civiltà Cattolica o Papa Jorge Mario Bergoglio havia se expressado deste modo:
“Não podemos seguir insistindo apenas em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível. Eu falei muito sobre estas questões e recebi reprovações por isso. Mas quando se fala destas coisas é preciso fazê-lo em um contexto. Além disso, já conhecemos a opinião da Igreja e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário estar falando destas coisas sem cessar. Os ensinamentos da Igreja, sejam dogmáticos ou morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não deve ficar obcecada para transmitir de modo desarticulado um conjunto de doutrinas para impô-las insistentemente. O anúncio missionário se concentra no essencial, no necessário, que, por outro lado, é o que mais apaixona e atrai, o que mais faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Temos, portanto, que encontrar um novo equilíbrio, porque de outra maneira o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder o frescor e o perfume do Evangelho.”
E na sequência está o modo como se expressou na Evangelii Gaudium.
3. A partir do coração do Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso se aplica também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não deve ficar obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que existe uma ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, a fé que age pelo amor (Gl 5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor. Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência.
38. É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não deve ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter o perfume do Evangelho.
[...]
213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predileção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridicularizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e, no entanto, esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou modernizações. Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?
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A “regra pastoral” de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU