A verdade sobre o amor. Artigo de Eugenio Scalfari

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18 Setembro 2013

Se o meu diálogo com o Papa Francisco continuar, acredito que este poderia ser o tema: fazer crescer o amor pelos outros ao menos no mesmo nível do amor próprio. Jesus de Nazaré foi martirizado e crucificado por ter querido testemunhar o desaparecimento do amor por si mesmo. Isto é, ele quis ir além da natureza da fera pensante que o Criador havia criado.

A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 15-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Entre os tantos artigos que foram escritos sobre a carta endereçada a mim pelo Papa Francisco, há um de Vito Mancuso, publicado na sexta-feira passada no nosso jornal. Cito-o porque ele coloca um problema que merece ser aprofundado: quem são os não crentes, aqueles que, na linguagem corrente, são definidos como ateus?

Mancuso não é um ateu, ao contrário, é um fino teólogo crente, mas a sua fé é muito particular, e ele a descreve assim:

"Acredito na luz do homem interior que há em mim, onde resplandece à minha alma aquilo que não é limitado pelo espaço, e ressoa aquilo que não é pressionado pelo tempo. Essa luz nos permite superar a nós mesmos e nos libertar da escuridão do ego, daquela fera que certamente faz parte da condição humana, mas não é nem a origem de onde viemos, nem o fim para onde vamos. A fé em Deus liga a origem do ser humano à luz do Bem, orientando o ser humano para a justiça e a solidariedade."

Em suma, Mancuso acredita no Pensamento que conduz ao Bem. Esse Pensamento é Deus e inspira solidariedade e justiça.

Acho sugestivo esse seu modo de pensar e de sentir. A fé, de fato, é um sentimento que provém de dentro do ser humano, do seu "eu" e irrompe para a mente onde o pensamento e a razão têm sua sede. São muitas as pessoas que, rejeitando as Sagradas Escrituras, a doutrina da Igreja e a sua liturgia, acreditam "em alguma coisa" que, em parte, está dentro de nós e, em parte, está fora. Para uma metade, são crentes, para a outra metade, não são.

A secularização da sociedade moderna viaja em grande parte sobre esse comprimento de onda. Aconteceu-me várias vezes perguntar a amigos aos quais estou ligado por simpatia, frequentação, comunidade de projetos e de trabalho: você crê? Muitas vezes, a resposta é afirmativa, mas, se eu ainda pergunto: em quê?, a resposta é justamente "em qualquer coisa".

É uma hipótese consolatória, um além incógnito que, mesmo assim, promete uma continuação da vida "fora do espaço e do tempo", como escreve Mancuso, ou é um esboço de pensamento que não é aprofundado porque as necessidades e os interesses cotidianos, a concretude dos fatos e dos encontros perseguem e enjaulam o espaço-tempo que não pode ser facilmente encurralado?

A fera pensante é exatamente isto: instintos animais que a mente reflexiva faz fermentar. O ser é, dizia Parmênides; o ser se torna, dizia Heráclito; o ser é formado pelos elementos da natureza, dizia Empédocles. Algum tempo depois veio Platão e a sua planície da verdade, os seus arquétipos, modelos transcendentes, pontos de referência da fera pensante.

Se fera pensante não agrada, podemos enobrecê-la chamando-a de "homo sapiens", ou dar-lhe um nome mitológico que a enobreça ainda mais. Eu a chamo de Eros, não o pajem alado que acompanha Vênus-Afrodite e lança as flechas para inflamar os corações, mas sim uma força originária do cosmos, senhor de todas as vontades e de todos os desejos. A nossa espécie, antes ainda de ser uma espécie pensante, é desejante. Objetar-se-á que todas as espécies vivas desejam, e é verdade, mas os desejos do animal são coagidos e repetitivos; os da nossa espécie, ao invés, são evolutivos, e, de um desejo satisfeito, imediatamente nasce outro. Por isso, nós somos uma espécie desejante porque desejamos desejar, e Eros é a força da vida e mede a sua intensidade.

* * *

Há um poema de Auden que, em certo ponto, invoca: "A verdade, peço-vos, sobre o amor". Mas, das várias espécies de amor, falam também, e muito, La Rochefoucauld, Pascal, Leopardi, Baudelaire, cada um a seu modo.

Há o primeiro entre os primeiros, o amor por si mesmo. La Rochefoucauld o chamou de amor próprio; a mitologia o chamou de Narciso, o jovem que, admirando-se nas águas de um lago, se apaixonou por si mesmo. O amor por si mesmo é o fundamento da nossa vida, porque nós vivemos com nós mesmos 24 horas por dia. Se nos odiássemos, seríamos vítimas de um distúrbio mental que poderia chegar ao "tedium vitae" e até ao suicídio.

Mas se o narcisismo ultrapassa o limite fisiológico a ponto de excluir qualquer outra espécie de amor, então se torna egolatria, autoidolatria. É uma patologia bastante difundida e muito perigosa para a sociedade.

Depois, há o amor pelo outro, o casal de apaixonados, também este com muitas subespécies, o espelhamento recíproco, a atração sexual pelo outro sexo ou pelo mesmo, o amor platônico, a amizade amorosa, a afinidade eletiva.

Enfim, a outra e grandiosa forma de amor, a pelos outros, vistos como "próximo", isto é, o amor pela espécie, a fraternidade dos sentimentos, a família. Lembra o ditado evangélico: "Ama o teu próximo como a ti mesmo"?

Portanto, Jesus não excluía o amor por si mesmo; e como poderia excluí-lo, visto que ele era um homem, fosse ou não filho de Deus? O milagre que ele se propunha realizar era igualar o amor pelo próximo ao amor por si mesmo, mas depois, quando pensou (ou revelou) ser o filho de Deus, então a haste do milagre tornou-se muito mais alta: ele não queria apenas elevar o amor por si mesmo e o amor pelo próximo ao mesmo nível de intensidade, mas pensou que deveria abolir inteiramente o amor próprio e concentrar no próximo todo o sentimento amoroso de que cada um dispõe.

Ele conseguiu esse milagre? Eu diria que não; ou, melhor, depois de dois milênios desde a sua vinda, o amor próprio tornou-se mais intenso, e amor pelos outros diminuiu fortemente.

Se o meu diálogo com o Papa Francisco continuar, como eu espero ardentemente que aconteça, acredito que este poderia ser o tema: fazer crescer o amor pelos outros ao menos no mesmo nível do amor próprio. Jesus de Nazaré foi martirizado e crucificado por ter querido testemunhar o desaparecimento do amor por si mesmo. Isto é, ele quis ir além da natureza da fera pensante que o Criador havia criado.

O milagre fracassou, mas o incentivo permaneceu e foi acolhida pelos seus discípulos, pelos seus apóstolos, pelos seus fiéis e também pelos homens de boa vontade. Sejam eles crentes no Abbá, no Deus mosaico, em Alá, ou em "alguma coisa", ou ateus, mas conscientes.

Por isso, continuo pensando que o verdadeiro cume do cristianismo não é a ressurreição de Cristo, mas sim a crucificação de Jesus, não a confirmação da existência de um além, mas o exemplo e o incentivo ao amor pelo próximo, à justiça e à liberdade responsável no aquém.

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