O perdão, um escândalo necessário. Artigo de Laura Boella

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20 Agosto 2013

Perdoar significa manter o respeito pelo humano no indivíduo, pela sua capacidade, apesar de tudo, de ser livre.

A opinião é da filósofa italiana Laura Boella, professora da Università degli Studi di Milano. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, dos bispos italianos, 11-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Desde a sua etimologia, o perdão é atravessado pelo contraste entre a lógica da pena e da reparação própria da justiça e a lógica da gratuidade do amor. A raiz da palavra latina "per-doar" remete a um dom em excesso.

Um excedente, um a mais que não tem valor de acréscimo ou de incremente, ao contrário, é um resto de nada, porque o perdão não dá nada, ou dá sem dar nada, ou seja, restitui o que pertence a um outro, a liberdade de agir, no limite a inocência ao culpado, a quem ofendeu. Per-doar (e com maior evidência o termo alemão vergeben e o inglês forgive) é uma espécie de negativo do dom, pois é constituído pela renúncia e pela rejeição (a recorrer ao direito, à vingança e ao rancor), pelo não dar (curso à justiça) até beirar o ato de perda, inútil, de puro dispêndio (o amor en perdos dos trovadores provençais).

Essa singular negatividade de um excesso levou Jacques Derrida a romper a simetria ou a analogia entre dom e perdão, sustentando que o perdão vem antes do dom. Cada dom deve fazer com que se perdoe a impossibilidade de ser puro e incondicional, alheio a qualquer economia da troca e da restituição. O perdão resume exemplarmente os dilemas da vida moral hoje.

Herança de um século pontilhado de cenários apocalípticos do mal, a atualidade desse tema, em nível individual e coletivo, encerra em si uma forte ansiedade de regeneração e de renascimento espiritual. Quem decide perdoar e quem se recusa a fazê-lo põe em jogo uma dimensão emocional, uma experiência concreta e íntima da culpa, do sofrimento sofrido.

Ao mesmo tempo, com o perdão, decide-se também pela memória histórica, pela paz social, pela sobrevivência e pela identidade de indivíduos e grupos, pela dilaceração e pela recomposição do vínculo social. Demonstraram isso as inúmeras ocasiões em que chefes de Estado, papas, ex-comunistas e terroristas pediram perdão pelo antissemitismo, pelas violências perpetradas em nome da pertença étnica, pela opressão infligida a sociedades inteiras, pela morte de vítimas inocentes.

Esses gestos de reparação, muitas vezes realizados em nome das vítimas por um representante simbólico dos culpados, correm o risco de ocultar a qualidade material da ofensa, a relação entre sofrimento e crime, feita de aniquilação, terror e solidão, e, ao mesmo tempo, de comprometer, com as suas finalidades políticas e pedagógicas, a gratuidade da misericórdia e do amor.

O perdão é uma figura moral na fronteira, de um lado, com a história, a política, o direito e a justiça, e, de outro, com a transcendência espiritual e religiosa. Às vezes, essas fronteiras se misturam, e não é raro que o perdão seja identificado com procedimentos jurídicos como a anistia, o indulto ou a prescrição, com virtudes como a clemência ou com necessidades psicológicas e sociais de conciliação e de pacificação, ou ainda com a inegável usura temporal que aplaina o caminho para o esquecimento.

O próprio conceito de perdão parece ter se esgotado depois dos crimes inexpiáveis e imprescritíveis do Holocausto e do totalitarismo. Trata-se, portanto, de um conceito a ser reaprendido, a se tirar fora de uma tradição que afunda suas raízes na herança judaico-cristã e que deve ser redescoberta e reatualizada em condições novas.

O perdão representa um dos desafios mais urgentes para o pensamento, justamente pelo fato de que ele não vem ao nosso encontro em uma pureza abstrata, mas sim imerso no entrelaçamento de uma herança cultural que, todas as vezes, deve ser reinterpretada. O autêntico significado do perdão, com efeito, deve se destrincar das implicações múltiplas e às vezes contraditórias de uma noção dramaticamente presa nas malhas do rancor e do esquecimento, do desejo de vingança e da fácil liquidação ou da renúncia dos próprios direitos.

Uma noção que, além disso, parece ser dificilmente isolável de outros núcleos temáticos, ligados a conceitos de ordem espiritual e religiosa, como a expiação, a redenção, a remissão dos pecados, a absolvição, a piedade, o amor.

Nascem, assim, muitas perguntas: perdoa-se a inconsciência (ele não sabia o que fazia) ou a maldade? A ação ou o agente? Para reconstruir, recomeçar, compreender, converter ou simplesmente para esquecer? Geralmente, interpreta-se o perdão como um gesto sublime capaz de livrar o culpado do peso de um passado doloroso. Pensa-se assim no contexto do evangélico "amai os vossos inimigos" e da sua capacidade de romper a lógica das relações de força que dominam a vida humana.

O perdão também pode ser outra coisa. A enésima prova de uma presunção de verdade por parte da vítima, uma ocasião para se comprazer com o próprio comportamento generoso, uma estratégia de luta e de defesa, uma expressão de fraqueza e de renúncia à resistência.

O que contribui para complicar as coisas é a urgência do apelo que o mal moral continua dirigindo à ação: o que fazer para impedir outros sofrimentos causados pela maldade? Qual é o imperativo prioritário: a caridade cristã ou a resistência contra o mal? Dar a outra face ou restabelecer a justiça violada?

Não é por acaso que os pensadores que se ocuparam do perdão – Hannah Arendt, Vladimir Jankélévitch, Paul Ricoeur, Jacques Derrida, Emmanuel Levinas – são aqueles nos quais todos reconhecem uma destacada sensibilidade para os problemas do nosso tempo e a coragem de enfrentar as zonas mais arriscadas da ética, sem ceder a nenhum atalho moralista. A sua inquietação vital os levou a se ocupar do perdão como via para resgatar a ação humana dos seus "erros", conscientes de enfrentar um tecido muito denso de conflitos e de paradoxos que põe radicalmente em causa a consciência de cada um, abala as convicções mais sólidas e põe em questão os juízos mais certos.

O pensamento do perdão é um pensamento inquietante, ao menos na versão de Jankélévitch, radicalizada ainda mais por Derrida: perdoa-se apenas o imperdoável, o coração do perdão autêntico é o que o torna impossível, o que exclui a compreensão dos motivos (comprendre c’est pardonner), a inexorável função balsâmica do tempo, e faz dele uma loucura, um escândalo sobrenatural, um ato gratuito e incondicional que dispensa o culpado da pena, antes de qualquer expiação e arrependimento, e só pode ocorrer no face a face, no segredo da relação única e irrepetível entre a vítima e o ofensor.

Tese extrema e paradoxal, que requer infinitas e complicadas argumentações, mas que tem um fundo muito simples: perdoar significa responder ao mal com o bem, interromper a propagação do mal. No coração do perdão está, portanto, uma contradição que não pode ser abolida, mas deve ser posta em movimento, ou seja, tornar-se uma possibilidade para o agir. A impossibilidade (o imperdoável) do perdão não tem nada do bloqueio à ação, mas alude ao situar-se do perdão em um plano totalmente diferente do da lei, do direito e da justiça.

Justamente porque o perdão autêntico se subtrai de "razões" e "medidas", e toca o limite das capacidades humanas, Jankélévitch convida a perdoar rapidamente, logo, com urgência, a experimentar infinitamente um gesto cuja pureza não é deste mundo, mas que ao menos deve-se querer realizar, ao qual se pode dar início.

Embora ninguém, desde que o mundo é mundo, nunca tenha perdoado sem reservas ou pensamentos ocultos, sem restrições mentais, sem uma dose infinitesimal de ressentimento, basta que a possibilidade de um perdão puro seja concebível. Mesmo que ele nunca seja realmente alcançado, o limite do perdão puro nos indicaria ainda o nosso dever, regularia e orientaria os nossos esforços, forneceria um critério para nos permitir distinguir o puro do impuro, daria uma unidade de medida para a avaliação e um sentido à caridade. Quem nunca alcança o ideal (sendo o ideal feito justamente para nunca ser alcançado) pode se aproximar do infinito.

Considerar o perdão como uma dimensão do agir significa reagir à lei do tempo, ao "o que está feito, está feito", implica afirmar a sua força ética: o perdão não abandona a ação ao fluxo do tempo, mas o interrompe, o faz recomeçar. O perdão é o oposto da vingança e do rancor, além da fácil liquidação do mal cometido. O esquecimento é dar tempo ao tempo, outra forma de automatismo e de passividade. O perdão é atividade, porque se subtrai da aquiescência, elimina deliberadamente o nó que o devir ainda não conseguiu desfazer. O perdão ensina a agir no sentido da mudança e da interrupção.

O "poder de perdoar", segundo a expressão de Hannah Arendt, é uma potencialidade da ação que remedia o bloqueio do agir resultante da irrevogabilidade do passado.

Considerar o perdão como uma forma de ação introduz muitos elementos de novidade na constelação tradicional do perdão. O perdão prolonga a ação em uma direção diferente da que foi tomada, mas isso ocorre desencadeando uma dinâmica gratuita e dispendiosa do deixar ir. É impossível revogar a história, fazer com que as ações não tenham acontecido, mas pode-se continuar agindo caminhando por outra direção. Não se pode ser perseguido pelas próprias ações. O passado não pode esmagar o presente sob o seu peso. O perdão, livrando o agente do fardo da ação cometida, tem o mesmo poder inovador da ação humana.

Nesse sentido, é um dom de liberdade para aquele que corre o risco de ser esmagado pelas consequências da própria ação. O perdão "faz época", escrevia Jankelevitch, porque inaugura uma era nova para o ofendido e para o ofensor. A rocha do ocorrido não obstrui apenas o de quem agiu mal, mas também daquele ou daquela que vê o mundo se esvaziar, quando não pode mais se entender com o outro. É claro que essa ideia de perdão não tem nada de consolador, ao contrário, deixa aberta a contradição entre bem e mal, entre graça e culpa, e o correspondente abismo da liberdade.

Ao reconstruir uma relação interpessoal interrompida depois de uma ofensa, o perdão realiza o milagre de amor de reabrir ao outro os jogos da vida, de considerá-lo irredutível aos seus fracassos e inaptidões. Como se se fizesse referência em vida à possibilidade de uma liberdade autenticamente humana, mesmo naqueles que erraram, naqueles que devem enfrentar todo o abismo que a liberdade humana pode escancarar.

Perdoar significa manter o respeito pelo humano no indivíduo, pela sua capacidade, apesar de tudo, de ser livre.

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