05 Julho 2012
Enquanto nas economias emergentes as classes médias sobem, nas ocidentais elas descem, embora os níveis de vida e de segurança diante do futuro de umas e outras não sejam (ainda?) comparáveis.
É o resultado desigual da última fase da globalização e da crise vivida na Europa e nos EUA desde 2007-08. Mas se a ascensão das classes médias pode levar a pedir mais abertura política em suas economias emergentes, seu declínio no hemisfério norte pode ameaçar o consenso político, social e econômico que prevalecia até agora e solapar as bases sobre as quais se assentam a democracia e os sistemas políticos ocidentais, incluindo essa construção básica que é a União Europeia.
A reportagem é do jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 04-07-2012.
Como indicam Heather Boushey e Adam Hersh, do Centro para o Progresso Americano em Washington, sobre a classe média dos EUA (mas que também é válido para a Europa), "a interação e concorrência da crescente desigualdade com o colapso financeiro e a Grande Recessão colocaram novas questões sobre se uma classe média enfraquecida e a maior desigualdade devem passar a fazer parte de nossa forma de pensar sobre os motores do crescimento econômico". Com efeito, salvo exceções, esse era um assunto de sociólogos e não de economistas, embora a economia esteja sendo obrigada a entrar cada vez mais nessas questões, pois afetam diretamente seu objeto de estudo.
Uma classe média forte, segundo esses autores, promove o desenvolvimento do capital humano e de uma população educada; cria uma fonte estável de demanda de bens e serviços e de financiamento de serviços públicos através de impostos; incuba a geração seguinte de empreendedores e apoia instituições políticas e econômicas inclusivas, que por sua vez sustentam o crescimento econômico. E, cabe acrescentar, vota em opções políticas moderadas que tornam possível o arcabouço institucional que lhe dá suporte.
Já o cientista político de Stanford Francis Fukuyama preveniu recentemente em um artigo em "Foreign Affairs" que a democracia liberal no mundo ocidental poderá não sobreviver ao declínio das classes médias. Se seguir seu curso destrutivo, a crise econômica poderá levar a uma grande crise social e política. Já ocorreu nos anos 1930. Nisso Fukuyama pode estar mais certo do que com sua tese de 1989 sobre o fim da história.
Não há pleno acordo entre os especialistas sobre a definição de classe média, cujos limites são por definição ambíguos e relativos. Alguns sociólogos a circunscrevem a satisfazer as necessidades básicas, mais alguns extras: desempenhar uma ocupação qualificada nos setores industrial ou de qualificação média no setor de serviços e/ou ter uma propriedade. Outros, para comparações internacionais, utilizam a medida de um gasto diário entre US$ 10 e 100 (62 euros, em paridade de poder de compra).
Segundo o relatório sobre Tendências Globais 2030 do Instituto de Estudos de Segurança da ONU, a classe média global está crescendo. De 1,8 bilhão em 2009, chegará a 3,2 bilhões em 2020 e a 4,9 bilhões (de um total de 8,3 bilhões de habitantes ) em 2030. Indica-se 2022 como o primeiro ano em que haverá mais gente de classe média do que pobres no mundo; 85% desse crescimento social se dará na Ásia, especialmente na China, que já conta com 160 milhões de consumidores de classe média. Mas também na África ou na América Latina.
Dois terços dos brasileiros, segundo esse estudo, serão considerados de classe média em 2030. Enquanto isso, as classes médias da Europa e América do Norte passarão representar de 64% do consumo total mundial em 2009 para 30% em 20 anos.
Uma razão dessa transformação é que as ocupações das classes médias ocidentais estão tendo de competir com as novas classes médias das economias emergentes, com custos trabalhistas mais baixos e níveis educacionais cada vez mais altos. Se a globalização afetava no início os salários mais baixos e menos qualificados no Ocidente, nos últimos dez anos alcançou essas classes médias. A globalização está transformando a classe média em perdedores desse processo, indica o economista Dany Rodrik em seu livro "O Paradoxo da Globalização".
Já antes da crise, Massimo Gaggi e Edoardo Natuzzi, em um livro intitulado "O Fim da Classe Média e o Nascimento da Sociedade de Baixo Custo", descreviam a situação dos "mileuristas" [assalariados que ganham mil euros por mês], condição que a atual situação está transformando em privilégio diante do desemprego crescente e da redução salarial. No entanto, com os produtos e serviços de baixo custo e com a pirataria na Internet da oferta cultural, a classe média se adapta em certa medida.
A crise afetou a classe média na Espanha e em outros países da Europa. Mas não se deve esquecer que os mais pobres são os mais prejudicados. Com os dados disponíveis, é a eles que, na Espanha e em outros países de nosso entorno, a crise mais atingiu, pois perderam mais poder de compra e têm mais desemprego, quando, além disso, as classes baixas têm menor capacidade de mobilização e de articular suas demandas.
Nos EUA, os últimos dados da Pesquisa de Finanças do Consumo (publicados a cada três anos), em 2010, mostram que a riqueza da família média recuou junto com a crise aos níveis de 1992, isto é, que duas décadas de prosperidade acumulada foram apagadas. Essa perda de riqueza se deve, sobretudo, à depreciação da moradia, de 32% entre 2007 e 2010, cifra que se assemelha à espanhola. Há outros dados preocupantes para as classes médias. Assim, pela primeira vez nos EUA, a maioria dos desempregados passou pela universidade. Embora isto se deva mais ao aumento do número de universitários, e não a que a probabilidade de estar desempregado seja maior para os universitários do que para o resto da população.
Na Espanha, segundo o último relatório da Fundação CYD, o número de desempregados entre 25 e 64 anos de idade com diploma superior - base das classes médias - havia se multiplicado por 2,86 no final de 2011 em relação ao último trimestre de 2007. Os desempregados registrados com diploma universitário na Espanha representam 12,4% dos demitidos (contra uma média de 5,2% no conjunto da UE). Isto é, a educação superior continua sendo um elemento que favorece o status social.
Resta um tema mais de fundo que ocorreu na Espanha de forma mais recente que em outros países de nosso entorno: na Espanha, o processo de mobilidade social ascendente até os anos 1980 teve muito a ver com a mudança estrutural, ao passar uma maioria de ocupações agrícolas e industriais de baixa qualificação para outras de maior qualificação e em serviços. Como essa mudança estrutural não voltará a ocorrer nas sociedades avançadas, as expectativas de mobilidade serão consideravelmente reduzidas. Os que pertencem às classes médias aspiram hoje a não cair, e não mais a subir.
Na Espanha do Instituto Nacional de Estatística (INE), caiu de 11.120 euros em 2009 para 10.066 em 2010 (em euros constantes, base 2000), isto é, ao nível de 2005-06. Essa queda é das maiores da Europa.
Segundo o INE, a população em situação de pobreza passou de 19,6% em 2007 para 21,8% em 2010. E 40% dos usuários dos serviços da Cáritas hoje são famílias que recentemente se sentiam de classe média e acomodada. A Cáritas passou de atender 400 mil pessoas em 2007 para mais de 1 milhão em 2011.
Um estudo de 14 economias europeias publicado pela revista do Banco Central da Irlanda indica que, depois dos irlandeses, os lares espanhóis são os que na Europa mais perderam entre 2007 e 2010 em valor líquido como proporção da renda disponível, seguidos de Dinamarca, Noruega, Reino Unido e França. As exceções foram Suíça, Luxemburgo, Lituânia, Áustria, República Checa e Alemanha. Com o estouro da bolha, o patrimônio imobiliário por pessoa, segundo o INE, havia caído em 2010 para os níveis de 2003-04.
Como indica o Barômetro Social, também se registraram quedas importantes dos ativos financeiros nas mãos das classes médias. O patrimônio financeiro por pessoa chegou a seu ponto máximo (34.150 euros) em 2006, mas em 2010 havia baixado para 28.592, em um país no qual em 2009 havia 4,5 milhões de acionistas de bancos. Baixaram toda a bolsa e muitos fundos de investimentos e de pensões, com o que se evaporou uma parte das economias de amplas camadas sociais.
Quanto à renda disponível, é preciso reduzir dos dados atuais os aumentos de impostos e de taxas decididos pelo atual governo. Segundo cálculos do fiscalista Andrés Casían, um contribuinte de classe média alta, casado e com dois filhos, que recebe juros de investimentos financeiros de 4 mil euros anuais e ganha 45 mil euros brutos por ano, que consome bens e serviços taxados pelo IVA no valor de 10 mil euros anuais e que, de acordo com seus hábitos de consumo, o aumento do IVA afetou em 1,2%, o aumento do que paga em impostos seria de 475 euros em termos de renda geral no IRPF, 80 euros a mais no conceito da Rendas de Poupança e de 120 euros suplementares em aumento do IVA. Quer dizer que dispõe de 675 euros a menos por ano para gastar. A isso seria preciso somar em muitos casos uma redução do salário e um aumento das taxas municipais e universitárias de seus filhos e do custo do transporte público.
As classes médias representam a metade dos ocupados na Espanha, mas o desemprego as afeta em cheio (embora o INE não inclua mais esse dado), e poderá fazê-lo ainda mais pela persistência da crise e da aplicação da reforma trabalhista em época de recessão. A sensação de retrocesso está se acelerando. Segundo dados de Millward Brown, em dezembro de 2011, 20,1% dos indivíduos de classe média pensavam que sua renda poderia baixar durante o ano seguinte. Em fevereiro de 2012 essa porcentagem havia subido para 33,1%. A sensação de risco e de declínio social se expande em grande velocidade.
É importante salientar, segundo José Saturnino Martínez, sociólogo da Universidade de La Laguna, que as classes médias também estão sendo "atacadas" na medida em que o emprego público é um espaço natural desse grupo. As demissões de interinos e as reduções de salários de funcionários estão lhes causando danos.
Também pesa a diminuição de renda que atinge muitos lares, com as crescentes dificuldades econômicas das famílias agravadas pela expulsão mediante pré-aposentadoria ou demissão no setor privado dos assalariados maiores de 45-50 anos, até agora guarda-chuvas da crise na hora de assumir os custos dos desempregados e dos jovens. A perda de emprego nessa faixa etária da classe média e trabalhadora com a persistência da crise e as possibilidades para as empresas da nova lei trabalhista "pode desencadear um drama social", segundo o professor Juan Antonio Gómez Yáñez, da Universidade Carlos 3º.
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Classe média será maioria em 2020 graças ao sucesso econômico da Ásia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU