A tecnologia evolui, mas traz novas formas de desconforto social

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29 Fevereiro 2012

Iludimo-nos que a tecnologia seria capaz de dar respostas às nossas exigências de relações. Uma expectativa pela qual pagamos um preço alto. Porque, juntamente com o crescimento da complexidade tecnológica, difundiu-se também uma cultura da economia emotiva que gerou novas formas de desconforto social ligadas à solidão, à apatia, à melancolia.

A análise é do sociólogo e cientista político italiano Carlo Buttaroni, presidente do instituto de pesquisa Tecnè e diretor do T-Mag, jornal online sobre comunicação e novas mídias, em artigo publicado no jornal L'Unità, 27-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Como podemos definir a nossa época? Seja qual for a definição que se queria dar, devemos necessariamente levar em conta as contradições que a caracterizam e que, nos últimos anos, se acentuaram dramaticamente. Basta pensar na diferença de riqueza entre Norte e Sul do mundo, no conflito entre globalização e identidades individuais, no cruzamento da organização tecnológica com o nomadismo humano de sobrevivência, ou na tensão cada vez mais profunda entre o nível das descobertas científicas e a sua efetiva utilização para a melhoria das condições de vida dos indivíduos.

Entre todas as definições, a que provavelmente melhor sintetiza o conjunto de tensões que caracterizam a nossa época é "pós-modernidade". Uma definição que não expressa um perfil e significado próprios, mas sim uma distância das características daquela que foi a cultura nascida com o Renascimento dos séculos XV e XVI, reforçada pela passagem do pensamento iluminista do século XVIII, para chegar, enfim, à ciência e à tecnologia do século XX.

Iludimo-nos que a tecnologia seria capaz de dar respostas às nossas exigências de relações. Uma expectativa pela qual pagamos um preço alto. Porque, juntamente com o crescimento da complexidade tecnológica, difundiu-se também uma cultura da economia emotiva que gerou novas formas de desconforto social ligadas à solidão, à apatia, à melancolia.

Multiplicaram-se os instrumentos e as ocasiões para entrar em relação, mas os conteúdos se tornaram mais pobres, mais sintéticos. O alfabeto das palavras, capazes de transmitir emoções, se tornou mais curto e repetitivo. E também nisso a tecnologia procurou dar respostas: nasceram sites que propõem frases já escritas para fazer amizades, outros que sugerem métodos infalíveis para conquistar novos parceiros hipotéticos.

E, se não tivermos ninguém para dizer certas frases, podemos sempre recorrer às novas agências de socialização virtual, que propõem encontros às cegas, com perfeitos desconhecidos, atentamente selecionados a partir de hipotéticas semelhanças físicas e de caráter.

A solidão do eu-global nasce do fato de ter se acreditado que meios poderosos nos poupariam o esforço da busca interior e da relação com o outro, do fato de ter pensado que seria suficiente multiplicar os "botões" para multiplicar as ocasiões, os saberes, as relações. Não foi assim. E não porque a tecnologia não se evoluiu e aperfeiçoou o suficiente, mas sim porque a tecnologia pode apenas "funcionar".

Ela não tem fins verdadeiros, mas simplesmente efeitos, inspirados na busca contínua de um aumento da eficiência. No máximo, a perda do fim humanista dentro do universo tecnológico, onde o meio se torna fim, que deu corpo a um sentimento de inadequação e de não conformidade, juntamente com o temor de antigos hábitos e relações que foram perdidos para sempre.

Um processo que, de fato, mudou a linha de demarcação que, de Freud em diante, havia separado o o normal do anormal, gerando ansiedades, medos, juntamente com verdadeiras psicoses. Eis também porque, hoje, percebe-se um novo interesse pelo problema do inconsciente, o motivo pelo qual se discute sobre a questão do significado do tempo e se assiste a uma modificação radical das bases de discussão social.

O mundo consertado pela tecnologia produziu, na percepção dos indivíduos, uma perda das relações de vida e do lugares de encontro, fazendo crescer o temor de não pertencer mais a um território emotiva e fisicamente definido. Um temor que se uniu à destemporalização da existência diária. Assim como não podemos mais nos reconhecer na sofrida geografia dos nossos pais, assim também não conseguimos mais viver a experiência do tempo como um presente que antecipa o futuro.

Tudo isso tem implicações na capacidade de perceber os eventos da vida como uma trama dotada de sentido, enquanto se afirmam experiências de vida que, a todo instante, são autônomas, separadas do mundo, com momentos que não se ligam àqueles que os precederam e àqueles que lhes seguirão. A vida é percebida como uma série de muitas experiências paralelas, que não se cruzam e não se ligam, que não constituem uma narrativa.

Um processo em que a coerência não é mais vista como um valor, porque o que conta é viver cada momento da vida de modo funcional, adequado às exigências que esse momento exige. Tudo isso coloca em crise a dimensão da identidade dos indivíduos e a possibilidade de desenvolver projetos de vida, porque projetar significa selecionar no presente o que é coerente com o passado e principalmente com as expectativas e os objetivos futuros.

E essa seleção não pode ocorrer em uma concepção do tempo em que só tem sentido aquilo que o presente e um determinado contexto oferecem, onde tudo toma forma em um universo funcional e estabilizado, onde cresce, segundo Bauman, "a solidão do cidadão global", a sua insegurança diante das novas incertezas.

E é paradoxal encontrar-se constantemente exposto ao risco da perda de si mesmo e do sentido da vida, no mesmo instante em que o pensamento científico busca a imortalidade.

Sem o conhecimento do desalinhamento entre a existência interior e a existência exterior, é difícil compreender os motivos pelos quais é tão forte, mais do que em quaisquer outras épocas, a necessidade de refletir e de investigar os fins do nosso ser indivíduos em um mundo tecnologicamente domesticado, mas não menos enigmático.

Nesse sentido, o eu-global não é só a conjunção entre o próximo e o distante, mas também entre o interior e o exterior, entre o "fim" do homem e o "fim" do mundo no qual ele vive.

É é justamente daí, do sentir-se movido por um peso tão pouco sustentável, que aflora um sentimento diferente por uma mudança de vida e de perspectiva com relação a uma nova ordem de valores e de referências. Sente-se a necessidade de palavras que expliquem a vida que vem pela frente, a solidão e o sofrimento do outro, em uma visão que restitua significado à vida e ao estar juntos.

Há uma parte importante da sociedade, de voz inaudível, que exprime um anseio de renovação e de redenção, mas que precisa de instrumentos reais para criar as ideias, para buscar novos lugares para se encontrar. Cresce a demanda por um novo pacto que permita se conhecer, se entender, colaborar, se integrar reciprocamente e sem homologações, sem perdas de identidade.

Um "novo início", onde o sentido do projeto não esteja apenas nas regras escritas, mas também no sentir comum de um pertencimento, que obtenha força do desejo de se dirigir não só ao lucro, mas também ao bem da comunidade.

É justamente a partir dessas culturas que pode ser recuperado o eu-solidário. Por esses motivos, a política continua definindo um traço específico da natureza humana, que não perdeu a sua natureza social, mas, ao contrário, está em busca de uma nova dimensão do estar juntos, onde a liberdade do indivíduo aumente e se reforce em um sistema de valores e de solidariedade inteligente.

Se o ser humano continua sendo um animal político é porque a tecnologia não o torna capaz, contudo, de ser suficiente a si mesmo, e só pode sobreviver se se unir aos seus semelhantes dentro de um projeto e de uma trama dotada de sentido, que é precisamente a história.

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