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14 Fevereiro 2012

"O caso do deputado Aguinaldo Ribeiro, novo ministro guindado ao vértice de nossas instituições republicanas, é exemplar não por sua trajetória pessoal, mas pelo significado, digamos, macroestrutural de que se investe. Nele, por inteiro, se põe em evidência o segredo de Polichinelo da modernização brasileira, que, desde sempre, de Vargas a JK, passando pelo regime militar e que ora se renova, conquanto de modo velado, nos governos Lula e Dilma Rousseff, se radica no pacto implícito - quando necessário, explicitado - entre as elites modernas e as tradicionais, no caso em tela, dos seus setores vinculados social e politicamente à história do exclusivo da terra e ao sistema de controle autocrático que ele impôs no hinterland", escreve Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 14-02-2012.

O sociólogo recorda que "o deputado Aguinaldo Ribeiro é neto do tristemente famoso usineiro Aguinaldo Velloso Borges, chefe de baraço e cutelo do agreste paraibano, acusado de mandar matar, em 1962, João Pedro Teixeira, uma das maiores lideranças dos trabalhadores do campo, então à frente da Liga Camponesa de Sapé, quando se destacou nacionalmente pela firmeza na defesa dos direitos da sua categoria social. Em 1983, o mesmo usineiro Aguinaldo foi, mais uma vez, apontado como responsável por mais um crime político, pois era disso que se tratava, com o assassinato sob encomenda de Maria Margarida Alves, símbolo das lutas feministas no País, cultuada na Marcha das Margaridas, que desde 2000, anualmente, desfila em avenidas de Brasília".

Eis o artigo.

O diabo, ouve-se dizer, mora nos detalhes. A nomeação para o Ministério das Cidades do deputado federal pela Paraíba Aguinaldo Ribeiro (PP) não se pode perder no noticiário dos faits divers da política nacional, nem tanto pela falta de credenciais do indicado para exercer os papéis na direção de uma agência estratégica como essa - cabe-lhe, como se sabe, administrar o urbano, dimensão crucial da vida contemporânea -, menos ainda por já ter respondido em seu Estado a processos por improbidade administrativa, mas, sobretudo, pela sua linhagem política, a revelar de modo contundente o que há de reacionário na forma de imposição do nosso processo de modernização.

Certamente que atos dos nossos avoengos não nos comprometem - a responsabilidade por eles é puramente individual e não se transmite às futuras gerações. Contudo a sociologia já é uma disciplina científica estabelecida e há tempos fixou como critério na investigação social operações de escrutínio dos dados referentes às origens sociais dos atores sob sua observação. Na história recente da sociologia provavelmente ninguém melhor que Pierre Bourdieu, hoje no panteão da disciplina como um dos seus maiores, contribuiu para esclarecer o lugar do chamado capital social, conceito elaborado por ele, na produção e reprodução da hierarquia social numa dada sociedade.

Na sociologia brasileira, Sergio Miceli, ex-discípulo de Bourdieu, Leôncio Martins Rodrigues e Jessé de Souza, entre tantos autores relevantes, o primeiro na sociologia da cultura, os segundos na sociologia política, têm demonstrado em seus influentes trabalhos o papel explicativo, se bem que não determinante, da origem social a fim de dotar, ou de privar, os indivíduos do capital social que lhes vai demarcar, positiva ou negativamente, seus lugares em termos de poder ou de prestígio social.

O caso do deputado Aguinaldo Ribeiro, novo ministro guindado ao vértice de nossas instituições republicanas, é exemplar não por sua trajetória pessoal, mas pelo significado, digamos, macroestrutural de que se investe. Nele, por inteiro, se põe em evidência o segredo de Polichinelo da modernização brasileira, que, desde sempre, de Vargas a JK, passando pelo regime militar e que ora se renova, conquanto de modo velado, nos governos Lula e Dilma Rousseff, se radica no pacto implícito - quando necessário, explicitado - entre as elites modernas e as tradicionais, no caso em tela, dos seus setores vinculados social e politicamente à história do exclusivo da terra e ao sistema de controle autocrático que ele impôs no hinterland.

Com efeito, o deputado Aguinaldo Ribeiro é neto - como registra oportuna matéria do jornalista Raphael Di Cunto (Valor, 3/2) - do tristemente famoso usineiro Aguinaldo Velloso Borges, chefe de baraço e cutelo do agreste paraibano, acusado de mandar matar, em 1962, João Pedro Teixeira, uma das maiores lideranças dos trabalhadores do campo, então à frente da Liga Camponesa de Sapé, quando se destacou nacionalmente pela firmeza na defesa dos direitos da sua categoria social. Em 1983, o mesmo usineiro Aguinaldo foi, mais uma vez, apontado como responsável por mais um crime político, pois era disso que se tratava, com o assassinato sob encomenda de Maria Margarida Alves, símbolo das lutas feministas no País, cultuada na Marcha das Margaridas, que desde 2000, anualmente, desfila em avenidas de Brasília.

A saga de João Pedro Teixeira e de sua família foi objeto de um documentário, Cabra Marcado Para Morrer, obra-prima de Eduardo Coutinho, na época um jovem cineasta do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), surpreendido, em meio à filmagem no sertão, pelo golpe de 1964, salvos, depois de muita correria, ele e o filme, que esperou quase 20 anos para ser finalizado.

A matéria do jornalista Di Cunto informa ainda que a mãe do deputado Aguinaldo é prefeita de Pilar, pequena cidade paraibana, e Fábio Fabrini, repórter do Estado, em circunstanciada notícia (4/2) sobre a projeção na política regional da rede familiar do novo ministro, revela que sua irmã, hoje deputada estadual, é candidata à prefeitura da importante cidade de Campina Grande, sem contar outros membros da sua parentela em posições de comando na vida local e até na prestigiosa Embrapa, ponta de lança da moderna agricultura brasileira.

Está aí a mais perfeita tradução da quasímoda articulação, no processo de modernização capitalista do País, entre o moderno e o atraso, ilustração viva do ensaio de José de Souza Martins A Aliança entre Capital e Propriedade da Terra: a Aliança do Atraso (in A Política do Brasil Lúmpen e Místico, São Paulo, Editora Contexto, 2011) e que se vem atualizando por meio da conversão do imenso estoque de capital social, econômico e político do latifúndio tradicional, que se processa no circuito da política e mediante favorecimento da ação estatal, em que seus herdeiros se reciclam para o exercício de papéis modernos. Para quem é renitente em não ver, este é o lado obscuro do nosso presidencialismo de coalizão, via escusa em que os porões da nossa História se maquiam e mudam para continuarem em suas posições de mando.

De fato, num país com as heterogeneidades sociais e regionais que nos são características, o andamento para a conquista do moderno nas relações sociais e políticas, num contexto de democracia institucionalizada, não pode deixar de consultar sua História e as forças da sua tradição, a fim de ajustar, interpretativamente, seu movimento a elas. Mas isso não se pode confundir com a reanimação - como a que acaba de ocorrer -, sem princípios e em nome de razões instrumentais, procedida por políticas de Estado, das sedimentações socialmente recessivas que recebemos do passado, com as quais é preciso romper.

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