Novas tecnologias tiram da velha guarda russa o poder da mídia

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19 Dezembro 2011

Ilya Varlamov tinha pouco mais de 20 anos quando conseguiu seu primeiro contrato de US$ 3 milhões. Hoje, o jovem de 27 anos é chefe de uma companhia de tecnologia da informação em Moscou que cria modelos arquitetônicos tridimensionais complicados para seus clientes. Seu escritório tem todas as características do sucesso: um computador da Apple com um iPhone do lado e obras de arte moderna russa pendurada nas paredes brancas.

A reportagem é de Benjamin Bidder, Christian Neef e Matthias Schepp, publicada pela revista Der Spiegel e reproduzida pelo portal Uol, 19-12-2011.

Foi Varlamov que criou o futuro estádio olímpico na cidade de Sochi onde a Rússia será anfitriã dos Jogos de Inverno de 2014. Foi um contrato do governo – um dos muitos que o tornaram um homem rico. Varlamov é um dos vencedores do reinado de 11 anos de Vladimir Putin. Ele gosta de viajar para o Ocidente quando tira férias. Em entrevistas, ele evita cuidadosamente dizer qualquer coisa negativa sobre o primeiro-ministro russo Vladimir Putin ou sobre o presidente Dmitry Medvedev.

Foi a mesma história quando Medvedev, que adora posar com seu iPad para fotos, quebrou a promessa de que não haveria "censura na internet enquanto ele estivesse no Kremlin". Varlamov segurou a língua por um longo tempo, mas agora isso acabou.

A Rússia acorda

A eleição fraudulenta de 4 de dezembro parece ter chacoalhado o país para fora de seu torpor, e o povo russo parece estar superando seu medo do regime, do controle e da repressão. Agora, a nova Rússia está combatendo a velha: blogs e outras campanhas online estão expondo as mentiras propagadas na TV e a opressão proporcionada pela polícia e as agências de inteligência, enquanto os usuários do Twitter estão protestando contra os hackers que o Kremlin supostamente teria contratado para silenciar os relatos de fraude eleitoral.

Varlamov, que dá a sua equipe instruções via smart phones e computadores, recentemente contratou 20 jornalistas para comandar o site de notícias Ridus, que critica o regime. Os repórteres e editores ficam num escritório sem paredes com mesas de madeira e inúmeros laptops. Bilhetes e desenhos cobrem as paredes.

Um deles mostra o logo da estação de TV controlada pelo governo NTV sob uma pilha de excremento. Há onze anos, Putin fez com que a gigante do gás Gazprom comprasse a rede, que criticava o governo na época. Desde então, a NTV vem transmitindo propaganda sob ordens do Kremlin. A equipe de Varlamov fornece uma alternativa à linha oficial. No portal Ridus, qualquer um pode publicar notícias, opiniões e fotos.

"Eu agora só acredito no que posso ver com meus próprios olhos", diz Varlamov, acrescentando que isso o motivou a espalhar as notícias sobre a revolta contra o Kremlin e se misturar aos moscovitas que protestavam contra Putin.

Uma agência de notícias de um só homem

Mais de 57 mil pessoas seguem sua conta no Twitter. Durante os protestos, Varlamov se tornou uma espécie de agência de notícias de um homem só. "Confrontos e lutas. Gás lacrimogêneo", ele escreveu do centro de Moscou. Quando milhares de manifestantes se reuniram lá, ele transmitiu o protesto ao vivo em um de seus sites. Meio milhão de espectadores assistiu.

"Eu mostro às pessoas o que as redes de TV se recusam a mostrar", diz ele. Com suas palavras, ele toca no cerne da pior crise de legitimação na carreira política até então tranquila do ex-oficial da KGB Putin. Em quanto do que diz o primeiro-ministro as pessoas ainda acreditam? Ainda mais importante: no que elas não acreditam mais?

Os tempos mudaram. O mundo idealizado da moradia pública barata e iniciativas bem sucedidas contra a corrupção mostradas na TV agora entra em choque com uma contra-versão apresentada pelos blogueiros. Hoje, um número cada vez maior de sites de notícia revela para os 60 milhões de usuários de internet da Rússia como a eleição parlamentar foi fraudada a favor do partido Rússia Unida de Putin. Hoje em dia, deveria estar claro para todos que a eleição não reflete o clima atual no país. De acordo com os resultados oficiais, o Rússia Unida recebeu quase 50% de votos, os comunistas conseguiram 19%, e dois partidos menores ficaram com 13% e 12%, respectivamente.

Outras facções políticas não foram representadas: os nacionalistas, cujo slogan “Rússia para os russos” desfruta de um amplo apoio – e o estreito segmento da população que consiste em democratas pró-Ocidente, que são bem educados e, portanto, essenciais para a modernização deste país gigante. Há poucos meses, Putin atingiu taxas de popularidade que eram duas vezes mais altas do que as do presidente francês Nicolas Sarkozy. Parecia impossível derrotá-lo – mas isso mudou.

Seu partido perdeu 15%, mais de 12 milhões de votos, em comparação à última eleição parlamentar em 2007. Observadores eleitorais independentes acreditam que, pelo menos nas cidades maiores, uma contagem correta teria dado ao Rússia Unida de 10% a 15% menos votos do que o resultado já desapontador.

No sábado (10), dezenas de milhares de pessoas protestaram contra a fraude eleitoral por toda a Rússia nos maiores protestos anti-governo desde o fim da União Soviética. Os maiores protestos aconteceram no centro de Moscou. A polícia estimou o tamanho da multidão em 30 mil pessoas, mas os organizadores afirmaram que até 100 mil pessoas participaram. Em São Petesburgo, cerca de 7 mil pessoas foram às ruas, e protestos e manifestações aconteceram em mais de 60 outras cidades.

A polícia se conteve de forma incomum, com apenas 100 prisões em todo o país, um número baixo para os padrões russos. No domingo (11), o presidente Medvedev apareceu para responder às manifestações de sábado anunciando em sua página no Facebook que havia ordenado uma avaliação das alegações de fraude eleitoral.

Sentindo-se traído

O político machão está começando a perder força: será que este homem, que controla grandes quantidades de recursos naturais e reservas monetárias, está enfrentando algo bem pior do que uma campanha difícil para as eleições presidenciais em três meses? Será que ele poderá ser expulso do poder como um autocrata árabe?

"O czar de repente está nu", observou Victor Erofeyev, que é provavelmente o escritor vivo mais conhecido da Rússia. O ano revolucionário de 2011 com seus protestos agora chegou também na calma Rússia, diz ele. E o colega escritor russo Eduard Uspensy observou que, embora seja impossível combater a falta de escrúpulos e a insolência do partido de Putin, "podemos agora mostrar a essas pessoas que ninguém mais precisa delas". Os russos aparentemente seguiram seu conselho.

Desta vez, muitos estão irritados com as coisas que costumavam aceitar com um dar de ombros. Putin se tornou uma espécie de Brejnev eterno para muitos deles – um símbolo da estagnação que pragueja o país. O presidente Medvedev, que, pelo menos por algum tempo, encarnou as esperanças da intelligentsia liberal, foi reduzido a uma marionete, permitindo-se ser docilmente empurrado para escanteio, abrindo caminho para que Putin retomasse a presidência. A manobra tática de uma liderança conjunta com o objetivo de manter o poder não funcionou. Na verdade, ela serviu às forças de oposição e alimentou a resistência dos descontentes que agora se sentem traídos por Medvedev.

Agora, pela primeira vez desde que o general Alexander Lebed desafio o presidente Boris Yeltsin nas eleições de 1996, um rival possível entrou no cenário político, alguém que é capaz de levantar o entusiasmo de muitos russos – o advogado corporativo e blogueiro de 35 anos Alexey Navalny.

"Odeio Putin por ter saqueado o país"

O Kremlin tem medo dele desde que Navalny expôs negociações obscuras no valor de bilhões numa corporação estatal. O regime repetidamente tentou tirar o crédito do ativista, que estudou brevemente nos Estados Unidos, chamando-o de lacaio do Ocidente.

No dia da eleição parlamentar, Navalny postou mensagens no Twitter minuto a minuto para relatar sobre a fraude eleitoral, e na noite seguinte ele deu um discurso no qual falou sobre os "criminosos e ladrões" no governo. Pouco depois ele foi preso – um acontecimento que também pode ser visto no YouTube. Mesmo quando estava a caminho do tribunal, que o sentenciaria a 15 dias de prisão, ele cumprimentou seus seguidores via Twitter.

Navalny é o oposto exato dos tecnocratas dos quais Putin se cercou. Ele é um político online e, além disso tudo, um homem real – o que os russos chamam de muzhik. Ele não pertence aos liberais que são vistos como covardes na Rússia; ele é um nacionalista que não tem pudores nem de marchar pelas ruas de Moscou com os fascistas. A retórica de Navalny é beligerante. “Eu odeio Putin e seus conselheiros próximos por terem saqueado o país. Cedo ou tarde vamos puni-los”, disse à Spiegel, em seu escritório de mobília espartana antes de ser preso.

Durante os últimos anos, a liderança da Rússia ficou acostumada com a ideia de conseguir controlar e manipular o público. Os "tecnólogos políticos" de Putin lançaram campanhas de falsas acusações sempre que servia a seus propósitos; eles criaram partidos políticos que morreriam logo depois. Desgostosos ou meramente entediados com as intermináveis candidaturas do velho espetáculo político, um número cada vez maior de russos veem Navalny como o rosto pelo qual vinham ansiando. A edição russa da revista Esquire até colocou uma foto do herói em sua capa.

Não importa o quanto a Rússia tenha mudado durante as duas últimas décadas, seus políticos continuam em grande parte os mesmos – figuras geriátricas e cinzentas de antigamente. O líder comunista Gennady Zyuganov, de 67 anos, já perdeu três eleições presidenciais. O Partido Liberal Democrata de Vladimir Zhirinovsky agora não serve como nada mais do que um palco para um show de um homem só de seu líder antes temido. E no escritório do partido democrata Yabloko, que não conseguiu ultrapassar o obstáculo dos 7% para garantir cadeiras no parlamento, um pôster de 1996 ainda está pendurado na parede.

Batalha online

Um homem como Navalny seria uma figura desesperançosamente marginalizada, se não fosse por conta de uma mudança decisiva que aconteceu desde as eleições de 2007: a batalha pela opinião pública agora acontece onde o Kremlin não pode ditar as regras: na internet. Uma das maiores máquinas de repressão é impotente contra o novo mundo digital.

A agência doméstica de inteligência, a FSB, tem mais de 350 mil funcionários, enquanto o ministério de Interior têm 200 mil soldados à sua disposição. Equipados com carros e helicópteros armados, eles foram treinados para oprimir manifestações – mas não puderam evitar os relatos via internet sobre a fraude eleitoral.

Mais de 1,9 milhão de espectadores assistiram no YouTube a um representante da comissão eleitoral número 2501 que fez fileiras e fileiras de marcações, presumivelmente para o Rússia Unida. Não ajudou em nada quando os assessores de Putin anunciaram um novo começo e falaram em "Putin 2.0" como se o primeiro-ministro só precisasse de um update. "O novo software Putin não é compatível com o velho processador", disse o blogueiro e comentarista de rádio Matvei Ganapolsky. "Temos de substituir o computador inteiro."

Diante da redução de sua popularidade, Putin está reanimando velhos estereótipos de inimigos da Rússia para atrair a atenção para longe de suas próprias falhas. Isso pode ser melhor observado no território russo de Kaliningrado, que é cercado por estados-membros da UE. Kaliningrado é uma das três grandes cidades nas quais o partido governante não ganhou as eleições e foi superado nas urnas pelos comunistas. Estes venceram com 30% dos votos, enquanto o partido Rússia Unida de Putin só recebeu 25%. Depois da derrota nas eleições, o governador da região foi convocado para entregar um relatório para o Kremlin, como se o governo em Moscou não fosse responsável pelo clima no país.

Jovens irritados gritaram no centro da velha Kaliningrado: "Putin é um ladrão!" e "Nossa paciência acabou!". Na praça do centro, as notícias logo se espalharam de que as forças armadas russas haviam acabado de estacionar mísseis anti-aéreos S-400 na região de Kaliningrado. Essas armas são capazes de derrubar aeronaves e mísseis da Otan. O presidente Medvedev também ameaçou enviar mais mísseis de ataque em reação à falha das negociações com os norte-americanos quanto a um sistema europeu conjunto de defesa de mísseis. Certamente não foi uma coincidência que o chefe do exército Nikolai Makarov tenha apresentado os S-400 só três dias depois da eleição. De fato, foi um ato simbólico.

"Ainda estamos de pé"

Cerca de 100 quilômetros a leste de Kaliningrado, a retórica de Putin não parece mais funcionar com os veteranos da 2ª Guerra Mundial. Quando um grupo deles se reuniu na semana passada em Sovetsk, uma cidade na fronteira leste do território, uma nova distância do regime também pode ser observada entre os veteranos. "Nós vivemos aqui na fronteira temendo pelas nossas vidas", disse Zinaida Rutman, de 80 anos. "Este medo costumava ser instigado artificialmente pelos nossos próprios líderes – sempre que eles queriam reconquistar a lealdade das pessoas."

Enquanto isso, os ativistas pró-Kremlin lançaram uma onda de ataques de robô para acabar com as mensagens da oposição no Twitter. Na noite de sexta-feira (9), 50 mil pessoas haviam se inscrito para uma manifestação no sábado via as redes sociais Vkontakte e Facebook. O FSB pediu para que os operadores do Vkontakte fechassem os fóruns usados pela oposição.

"Por princípio, nós não fazemos nada assim", escreveu Pavel Durov, chefe do Vkontakte, pouco tempo depois. "Não sei como isso terminará para nós, mas ainda estamos de pé." Os russos estão no processo de perder o medo.

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