30 Agosto 2011
Um entrecruzamento de tempos e de conjunturas nacionais e internacionais aproximou dois sujeitos históricos importantes no contexto brasileiro da década de 1960: o presidente João Goulart e o catolicismo. Foi essa a temática abordada pela historiadora Lucília de Almeida Neves Delgado, professora da graduação e da pós-graduação da Universidade de Brasília – UNB, na noite desta terça-feira, em sua palestra O catolicismo e a conjuntura do governo João Goulart: Interações políticas e sociais. O debate faz parte do Seminário 50 Anos da Campanha da Legalidade: Memória da Democracia Brasileira, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Lucília, que também é doutora em Ciências Humanas/Ciência Política pela Universidade de São Paulo, começou relatando o seu interesse pela aproximação entre trabalhismo e catolicismo. Foi benjamina da Ação Católica e militou na Juventude Estudantil Católica (JEC) e na Juventude Universitária Católica (JUC), além de ter lecionado na PUC Minas e pesquisado sobre catolicismo e sociedade no Brasil contemporâneo.
Além disso, também agradeceu o convite para estar na Unisinos. A historiadora comentou que essa "aproximação profunda e significativa" com a universidade também se deu depois que o Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ, reitor da Unisinos, havia colaborado com Lucília na preparação de seu livro sobre outra grande figura do catolicismo brasileiro, Edgar de Godoi da Mata Machado: Fé, Cultura e Liberdade (Ed. Loyola, 1993), obra que foi finalista do Prêmio Jabuti de 1994.
Segundo Lucília, para compreender as interações políticas e sociais entre o catolicismo e a figura de Jango, é preciso repassar alguns conceitos de tempo na história, entrecruzando especialmente três tempos, que foram por ela analisados: a conjuntura internacional do mundo pós-Segunda Guerra; a conjuntura do Brasil; e o catolicismo da década de 1960.
E para analisar esses "tempos", afirmou, é necessário levar em consideração que a história trabalha com "tempos múltiplos", ou seja, entrecruzados e interconectados. Por outro lado, há um "tempo lento" e um "tempo abrupto", isto é, quando surgem momentos revolucionários nos tempos conjunturais, como, por exemplo, a Revolução Francesa, o ano de 1968, a Revolução Russa de 1917, o movimento modernista no campo da cultura de 1922. Assim, é possível o nascimento de um "templo emblemático", que fica nas representações da sociedade e que vai sendo passado de geração para geração, tornando-se universais. Para compreendê-los, explicou, é preciso perceber a inter-relação entre "tempo e experiências", já que a memória é constituída por experiências (individual, coletiva, de grupos), que vão se consolidando como marcos da história. Já as "temporalidades" se dão entre movimentos que lutam pela conservação ou mudança de determinados elementos históricos.
A partir desses breves pressupostos teóricos, Lucília repassou alguns grandes blocos históricos até chegar ao catolicismo no governo de João Goulart. Primeiro, ela abordou aspectos do mundo pós-Segunda Guerra, a chamada Era de Ouro do século XX, como afirma Eric Hobsbawm. Em suma, afirmou, o que ocorreu nesse tempo foi uma nova configuração das linhas de força na política internacional, a partir da cisão entre os aliados da Segunda Guerra entre socialistas e capitalistas, a bipolaridade característica da Guerra Fria. Segundo Lucília, 1/3 dos países do mundo nessa época adotou o regime socialista.
Por outro lado, disse, "houve uma grande mobilização de movimentos de independência nacional na Ásia e na África, em países que viviam em extrema miséria". E a Revolução Cubana fez com que o socialismo chegasse "com muita força ao continente latino-americano, batendo às portas do império norte-americano".
Já no Brasil pós-Segunda Guerra, vivia-se o tempo do nacional desenvolvimentismo. A crença era de que, se o país se industrializasse, seria possível superar o subdesenvolvimentismo. Assim, explicou Lucília, ocorreu o crescimento das cidades, mas sem planejamento e sem programas para receber os migrantes internos.
A década de 1960 e o período de João Goulart no poder foram marcados por um grande endividamento provindo do governo de Juscelino Kubitschek e de seus "50 anos em 5", além de uma alta inflação. Como na conjuntura mundial, o país vivia uma fase efervescente e polarizado entre projetos distintos para o futuro do brasileiro, com o crescimento dos movimentos organizados da sociedade civil nas cidades e no campo (como a União Nacional dos Estudantes, as ligas camponesas, o movimento sindical, o movimento de educação de base, a bossa nova que incorporou temas sociais, o Cinema Novo etc.).
Jango e o catolicismo
Sem entrar em detalhes da Campanha da Legalidade, Lucília apontou que Jango não era considerado pelos ministros militares como um político preparado para assumir a presidência. E tomou posse como presidente em um regime parlamentarista, mas que não acalmou os ânimos do país. Nessa fase, ele precisou buscar o apoio de setores tradicionais, como o catolicismo. Já em uma segunda fase, presidencialista, ocorreu uma radicalização das reivindicações sociais, com uma polarização ideológica e o medo do comunismo por parte da classe média e de setores conservadores da Igreja.
Foi a partir desse amplo cenário que Lucília analisou o catolicismo na década de 1960: na interseção das conjunturas nacional e internacional. De um lado, afirmou, esse tempo foi marcado por profundas transformações no catolicismo. Já desde a década de 1930, com a Ação Católica, buscava-se uma maior atuação do movimento leigo, que ganhou corpo especialmente com as encíclicas de João XXIII e de Paulo VI, e com o Concílio Vaticano II, que fomentou movimentos de renovação católica e de diálogo ecumênico.
Com o Concílio Vaticano II, surgiu, segundo Lucília, esse "espírito novo no seio do catolicismo", marcado por um movimento de renovação litúrgica e da difusão do ecumenismo, além da renovação da consciência do ser católico, com uma forte preocupação social. O Vaticano II, afirmou, fomentou uma "maior sensibilidade para as diversidades culturais e para os problemas sociais do mundo", além de uma "nova maneira de pensar a fé em uma sociedade modernizada" e uma "relação renovada entre o catolicismo e a sociedade na qual a Igreja estava atuando".
Sua convocação é feita pelo Papa João XXIII, um papa "carismático e renovador, que inaugura um novo jeito de ser papa, mais próximo da realidade, sem intransigência e sem dogmatismos", afirmou Lucília. E o chamamento ao Concílio é contemporâneo à Revolução Cubana e se dá às vésperas do processo de crise da renúncia de Jânio Quadros. Por isso, explicou Lucília, "o catolicismo estava entrando em uma época mais arejada, enquanto o Brasil entrava no tempo negro da ditadura".
Por isso, o governo João Goulart conviveu com uma Igreja bastante seccionada. Embora com uma forte presença política dos bispos e religiosos brasileiros – na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), na Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos (CLAR) –, os movimentos católicos leigos se dividiam entre o apoio aos movimentos sociais do campo, da Igreja popular e das campanhas de alfabetização e os que resistiam ao reformismo de Jango, marcados por um catolicismo mais conservador.
"Foi o forte humanismo cristão que motivou a mudança do catolicismo da década de 1960, um catolicismo que se renovava. A década de 1960 colocou o Brasil na mão do autoritarismo, enquanto o catolicismo ia rumo à abertura e a um humanismo mais inclusivo", concluiu Lucília.
(Por Moisés Sbardelotto)
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Jango e o catolicismo: bipolaridade política e eclesial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU