De Lisboa a Fukushima: o que resta do progresso?

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09 Mai 2011

No Japão, foi atingida a presunção da tecnologia que se considerava infalível.

A análise é do historiador italiano Massimo L. Salvadori, professor emérito da Universidade de Turim, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 09-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No dia 1º de novembro de 1755, um terrível terremoto destruiu grande parte de Lisboa. Os mortos chegaram a várias dezenas de milhares. Diante de tal catástrofe, a emoção na Europa daquele tempo foi enorme, e não se limitou à piedade pelas vítimas inocentes e à lamentação pelas destruições materiais. A catástrofe, de fato, levantou interrogações inquietantes à cultura europeia, em que, no contexto do Iluminismo, estava aberto o debate sobre as condições da vida humana e sobre a capacidade de percorrer as vias de um progresso moral, civil e político cada vez maior.

Dentro das correntes filosóficas, aqueles que invocavam o direito das luzes da razão para se erguer como guias do caminho dos homens e da sociedade se contrapunham aos que consideravam que uma tal pretensão era uma manifestação perigosa de orgulho.

Pouco depois, os proponentes e os ideólogos do progresso encontraram nas maravilhas da revolução industrial iniciada na Inglaterra, nas novas invenções e nas novas máquinas um outro poderoso motivo para acreditar nos "magnífico e progressivos destinos" abertos pela união da ciência, da técnica e do incremente produtivo. Parecia que espírito e matéria, ciências morais e ciências naturais se dessem a mão na abertura do primeiro capítulo da história da ideia moderna de progresso.

Entre aqueles que ficaram comovidos com o terramoto de 1755 estava o grande Voltaire, que, em dezembro do mesmo ano, começou a fazer a argumentação do seu Poema sobre o desastre de Lisboa e, depois, voltou ao tema no Cândido ou Otimismo, publicado em 1759. Voltaire acreditava convictamente no progresso, na possibilidade de os homens melhorarem a si mesmos e às suas vidas, mas detestava os beatos otimistas, que imaginavam o mundo como o melhor entre os possíveis.

Para ele, a razão era um instrumento tão importante quanto delicado, não, porém, como um bem garantido, e as luzes que vinham de um uso oportuno dela deviam ser constantemente protegidos contra as potenciais ameaças. Assim, o progresso se apresentava como incerto e só possível. Em um verso do poema, ele disse que considerar que "tudo está bem hoje em dia" constituía uma mera "ilusão ". E no Cândido, ainda em referência ao terremoto, ele satirizou Pangloss, que repetia que, em última análise, tudo está destinado a se resolver pelo melhor.

A ideia problemática que os iluministas tinham do progresso foi literalmente virada de cabeça para baixo pelo cientismo tanto positivista quanto marxista, que, na presunção de ter dominado as leis do desenvolvimento humano, pregou que o progresso, que se tornou necessário e irresistível, permitia o planejamento do futuras do homem. A encarnação extrema e última dessas correntes ideológicas foi o mundo comunista, que caiu no final do século passado.

Mas, caído o mito de que o conhecimento das leis da sociedade dava à política os meios para criar finalmente o "mundo novo", havia sobrevivido a outra componente da ideologia do progresso necessário e irresistível: a do desenvolvimento sem pausa, produzido pela união feliz entre ciência e tecnologia. E, de fato, nesse campo, os resultados foram surpreendentes, até gerar uma sensação de onipotência. O desastre de Chernobyl foi uma tragédia gigantesca, mas não abalou a confiança dominante, porque foi arquivado como o resultado de uma tecnologia inadequada culpada.

Mas eis-nos diante da tocha nuclear de Fukushima. Eu acredito que a catástrofe que atingiu o Japão tem um significado simbólico comparável ao do terremoto de Lisboa de 1755. Naquele momento, este teve o valor de advertência acerca da fragilidade inerente à existência humana, sujeita a ser a todo momento atingida pela presença e pelos efeitos de um mal inevitável com o qual todo homem era obrigado a fazer as contas.

Hoje, a advertência que vem do Japão ainda tem esse significado, mas unido a outro: o colapso do mito da onipotência científico-tecnológica, dizimado por um terremoto combinado com um tsunami. Na véspera do imenso desastre que o colocou de joelhos, humilhado e jogado como presa do medo, o Japão, um dos países avançados do mundo, apresentava suas próprias centrais nucleares como as mais avançadas e absolutamente seguras e, enquanto tais, as oferecia no mercado mundial. Mas o imaginável bateu bruscamente na porta.

A natureza continua sendo aquela que Voltaire via e temia, e a presunção de uma tecnologia que acreditava poder resistir a todo desafio foi atingida como nunca antes. A tal ponto que o governo japonês, assustado com as diversas centrais que povoam o seu país, pronunciou as palavras que jamais havia pensado poder e ter que pronunciar: é preciso continuar e sem retorno no caminho da energia limpa, isto é, o caminho do progresso, mas aquele que não ameaça a vida humana, aquele do uso prudente e cauto dos recursos oferecidos pela razão. Pois, como dizia Voltaire, nem "tudo está bem": nem quando oferecido pela marcha triunfal da ciência e da tecnologia.

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