As antigas diáconas voltam à cena, apesar de São Paulo

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19 Agosto 2016

"Até aqui, a evidência histórica. Mas o trabalho da Comissão criada por Francisco poderia não limitar-se a uma revisão de fontes históricas. Na verdade, existem reiteradas instâncias para a admissão de mulheres ao diaconato permanente, restaurado, depois de vários séculos de abandono, após o Concílio Vaticano II. E muitas vezes, o medo de que uma eventual restauração do diaconato feminino poderia ser numa espécie de "cavalo de Tróia" para a ordenação sacerdotal de mulheres, impediu uma análise serena da questão."

O comentário é do historiador italiano Andrea Nicolotti, professor na Università Degli Studi di Torino, em artigo publicado por Corriere della Sera, 14-08-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.

Eis o artigo.

Papa Francisco acaba de criar uma Comissão de estudo para examinar a questão do diaconato feminino, “sobretudo em relação aos primeiros tempos da Igreja".

O tema, na verdade, já foi muitas vezes minuciosamente investigado. Os primeiros registros remontam à passagem da Carta de Paulo aos Romanos, onde, certa Febe é mencionada, "diaconisa da Igreja que está em Cencréia".

Por volta do ano 112, então, Plínio, o Jovem, detecta na Bitínia a existência de mulheres que, apesar de extração social baixa, exerciam nas comunidades cristãs o papel de ministrae (em grego, diáconas). Deste estes testemunhos, no entanto, apresenta-se a dificuldade de compreender em que consistia, na teoria e na prática, este serviço de diakonia feminina, num período em que a organização hierárquica e ministerial das diversas Igrejas era desorganizada, e em processo de formação.

De acordo com a “Didascália dos Apóstolos”, escrito siríaco do ano 230 aproximadamente, as diáconas são representações do Espírito Santo, e têm a tarefa de ajudar outras mulheres que se desnudam para a imersão e a unção batismal, devem instruí-las, visitá-las quando estão doentes, e impor suas mãos. Não podem, porém, batizar ou ensinar de forma indiscriminada. O Concílio de Niceia, em 325, fala explicitamente de determinadas diáconas, que, porém, "não receberam qualquer imposição das mãos"; por outro lado, cinquenta anos mais tarde, em Antioquia, as Constituições Apostólicas trazem o texto da oração para sua ordenação, com a imposição das mãos do Bispo; e também o Concílio de Calcedônia, em 451, confirmará que a ordenação ocorria por meio da imposição das mãos.

O que dizer sobre estas discrepâncias? Deve-se lembrar que ao longo dos séculos II e III houve um forte debate sobre o tema dos ministérios das mulheres, com resultados contraditórios: havia quem negasse às mulheres até mesmo a possibilidade de fazer o que era lícito para homens não ordenados, quem retocasse textos bíblicos em visa de diminuir a abertura às mulheres, e quem patrocinasse seu papel inclusive no governo das comunidades. Epifânio de Salamina, nos últimos anos do IV século, admitia, a contragosto, a existência de uma “ordem de diáconas” e limitava rigorosamente suas funções "a serviço das mulheres por motivo de decência", invocando a proibição, contida nas cartas de Paulo, de ensinar, falar ou do exercício da autoridade pelas mulheres; enquanto, naqueles mesmos anos, algumas diáconas manifestavam-se à atenção das comunidades, como Olímpia de Nicomedia, amiga de João Crisóstomo.

Do ponto de vista litúrgico, em algumas Igrejas, a cerimônia de ordenação de diáconas (ou diaconisas) era equivalente aquela dos diáconos masculinos. Assim era para o ritual bizantino, exceto para certas peculiaridades que serviam para lembrar às mulheres a impossibilidade de acesso, no futuro, ao sacerdócio.

O Ocidente, no entanto, nos cinco primeiros séculos, não conheceu o diaconato feminino. Na verdade, o condenou: as primeiras diaconisas aparecem apenas em torno do século VI. Não há uma prática compartilhada, no entanto, mas situações diferentes em épocas e lugares.

Para resumir, é certo que, na antiguidade cristã, comunidades do Oriente conheceram mulheres com o título de "diácono", embora nem sempre seja claro o alcance exato deste papel. Seja como for, o ministério reconhecido às mulheres foi gradualmente diminuído até desaparecer, mesmo no Oriente.

Até aqui, a evidência histórica. Mas o trabalho da Comissão criada por Francisco poderia não limitar-se a uma revisão de fontes históricas. Na verdade, existem reiteradas instâncias para a admissão de mulheres ao diaconato permanente, restaurado, depois de vários séculos de abandono, após o Concílio Vaticano II. E muitas vezes, o medo de que uma eventual restauração do diaconato feminino poderia ser numa espécie de "cavalo de Tróia" para a ordenação sacerdotal de mulheres, impediu uma análise serena da questão. É por isso que, não poucos estudiosos, preocupados mais com o presente do que com o passado, preferem insistir nas fontes antigas que se prestam a uma representação das mulheres diáconos como meras coadjuvantes dos homens; outros, no entanto, desejam valorizar os resultados que parecem colocar os dois sexos no mesmo nível.

Para todos, no entanto, há um perigo à espreita, o anacronismo: a estrutura eclesiástica atual, organizada na tríade descendente bispo-padre-diácono, com este último no primeiro degrau de acesso ao ministério sacerdotal, não é sobreponível à organização testemunhada desde o cristianismo das origens, em todas as Igrejas; mas, acima de tudo, os conceitos teológicos que hoje acompanham palavras como "ministério", "diácono" e "ordenação", não são os mesmos das fontes antigas, escritas numa época em que as categorias teológicas eram outras.

É normal que a Igreja olhe o passado para justificar e interpretar o seu agir no presente: mas, neste caso particular, seria inútil ir à procura do que "em todos os lugares, sempre e por todos foi acreditado", como convidava a fazer no século V, um pouco ingenuamente, um padre da Igreja, Vicente de Lerins, porque sobre o diaconato feminino, uma longa tradição unitária nunca houve.

É claro que a posição das mulheres no cristianismo não se configurou somente por razões teológicas. É inegável que a relação com o judaísmo antigo condicionou fortemente, em comparação com o mundo greco-romano, que garantia à mulher uma maior emancipação. É fato também que a introdução do diaconato feminino institucionalizado, hoje, seria interpretado pelo mundo ortodoxo como mais um obstáculo ao diálogo ecumênico, ainda que as mulheres já desempenhem nas comunidades católicas diversas funções (catequese, em primeiro lugar), mas com pouco poder decisional. Evidentemente o Papa quer que a Igreja se interrogue sobre a forma de requalificar a posição das mulheres dentro dela, em que medida e sob qual denominação: se esta é a intenção, o olhar a história é importante, mas toda decisão, qualquer que seja, deverá ser tomada com o olhar no presente e no futuro, mais do que no passado. Que a comissão de Francisco seja constituída por metade de mulheres já é, em si, uma novidade.

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