11 Julho 2023
Salas e corredores estavam mais diversos e coloridos que nunca, comemora Sonia Fleury. Mas ela abre uma polêmica necessária: a substituição da noção de igualdade pela equidade não pode desbancar a universalização, sob o risco de deformar o direito à saúde.
O artigo é de Sonia Fleury, doutora em Ciência Política e pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ, publicado por Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz, 06-07-2023.
A 17ª Conferência Nacional de Saúde (17ª CNS) foi encerrada nesta semana, com grandes debates sobre o tema Garantir Direitos, Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã Será outro Dia. Primeira CNS realizada depois da pandemia e do governo negacionista de corte populista autoritário, representou a retomada do curso democrático e participativo da trajetória da reforma sanitária que culminou com a criação e construção do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado mundialmente como sendo o maior sistema universal de saúde. Não faltavam razões para o congraçamento e alegria do encontro das diferentes forças e atores sociais comprometidos com a saúde da democracia e a democratização da saúde, convertendo o slogan da convocatória em sua positivação na afirmativa O Amanhã já é Hoje.
A presença de mais de 4 mil delegados eleitos em conferências em âmbito subnacional e em conferências temáticas livres, além de outros milhares de convidados, tornou a reunião um fenômeno em dimensões e em diversidade, colorindo corredores e salas com cocares, vestimentas afro-religiosas, profissionais e conselheiros envoltos em bandeiras de estados e municípios, além da expressiva participação de pessoas com deficiência, travestis e transgêneros. Sem dúvida, a 17ª será reconhecida como a conferência da diversidade, espelhando o momento atual, no qual as lutas identitárias ganham força e visibilidade na sociedade brasileira.
Nos dias que antecederam a CNS, no entanto, o SUS foi ameaçado pelas pressões dos partidos de direita que iniciaram forte ofensiva contra a demora na liberação de verbas pelo Ministério da Saúde, tendo como objetivo desestabilizar a gestão da ministra Nísia Trindade e exigir sua substituição por um político, sem compromissos com o SUS. A fala da ministra no encerramento da CNS afirmando que o “o Ministério da Saúde é o Ministério do SUS” se contrapõe à do ex-ministro Ricardo Barros, político de direita, que, ao ser perguntado sobre o SUS, afirmou “não ser ministro do SUS, mas da Saúde”, deixando claro seu comprometimento com o clientelismo político e com o setor privado da área de saúde.
A defesa do SUS e da gestão de Nísia Trindade no Ministério da Saúde se tornou o grande aglutinador de todas as forças sociais que lutam pelo direito à saúde – pública, universal e de qualidade – considerando o que já foi feito nos últimos seis meses no sentido de resgatar e amplificar os programas e políticas que haviam sido desmantelados pela incompetência, má gestão e orientação negacionista do governo anterior. Nesse período, foram realizadas ações de socorro aos Yanomamis, vítimas da tentativa de genocídio, o Movimento Nacional pela Vacinação, medidas para redução das filas para procedimentos eletivos, o relançamento do Programa Mais Médicos e do Farmácia Popular, a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial, o fortalecimento da participação social e a recriação do Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. A ministra foi abraçada e ovacionada pelos participantes da CNS, em uma emocionante manifestação de apoio à sua gestão e de defesa incondicional do SUS. A fala do presidente Lula no encerramento da CNS, afirmando que Nísia Fica, slogan defendido pelos participantes, assegurando seu comprometimento com a defesa do SUS, coroou a luta dos profissionais e movimentos sociais.
No entanto, ainda restam muitas dúvidas sobre questões centrais para o avanço das políticas sociais e de saúde, como os julgamentos no STF sobre o piso salarial da enfermagem e o uso da canabis medicinal, os efeitos negativos da aprovação do arcabouço fiscal sobre a possibilidade de recuperar o financiamento do SUS, o impacto da possível aprovação da Reforma Tributária sobre o Orçamento da Seguridade Social e a preservação da regressividade fiscal. Os enormes constrangimentos econômicos e políticos que estão sendo impostos pelas forças conservadoras aumentam os riscos de frustrar as expectativas populares em relação aos avanços necessários para democratizar a democracia e reduzir as desigualdades e exclusões sociais.
As conferências nacionais de saúde sempre foram um espelho da sociedade, expressando a pujança das forças sociais que, em cada momento, formam a base social de defesa do SUS, mas que também são aquelas que impõem demandas que precisam ser incorporadas pela orientação da política governamental. Acadêmicos, sindicalistas, gestores, profissionais e movimentos sociais, sempre estiveram presentes em todas as conferências, com distintos protagonismos em cada uma delas. Podemos dizer que na 17ª os movimentos sociais protagonizaram o ator mais importante, na defesa da diversidade e representatividade, do combate ao preconceito e às desigualdades, propugnando por um SUS mais inclusivo.
A Conferência foi organizada em quatro eixos sob a seguintes temáticas: I – O Brasil que temos, o Brasil que queremos; II – O papel do controle social e dos movimentos sociais; III – Garantir Direitos e defender o SUS, a vida e a democracia; IV – amanhã será outro dia para todos, todas e todes. Além das propostas votadas terem sido agregadas sob esses eixos, as mesas redondas com os grandes debates também discutiram esses temas. A composição das mesas refletiu a escolha feita pelo Conselho Nacional de Saúde de privilegiar a representação de movimentos sociais. As questões identitárias assumiram a centralidade nas discussões, só quebradas nas falas das sessões de abertura e de encerramento.
Ainda que as proposições a serem votadas tenham contemplado uma variedade maior de temas, que também estiveram presentes nas atividades autogestionadas, a ausência nos grandes debates de alguns temas centrais para a área de saúde e para a própria redução das desigualdades devem ser apontadas. É surpreendente que a pandemia, suas causas, suas consequências e as novas ameaças não tenha sido um tema presente nas discussões. É como se a sociedade estivesse em um processo coletivo de negação do trauma sofrido, uma amnésia geral que pode, em termos freudianos, reaparecer como sintoma, tanto individual, como coletivo e institucional. Outra questão crucial para a superação das deficiências e desigualdades no SUS é o enorme desfinanciamento sofrido ao longo dos últimos anos, cuja recuperação se vê ameaçada pelos limites impostos pela austeridade fiscal que ainda domina a política econômica.
A privatização por dentro do SUS, com a destinação da gestão e dos recursos públicos para entes privados, ainda que mencionada, não foi um tema central nos debates, embora a mercantilização possa comprometer a saúde e a privatização debilite a capacidade da gestão pública. Considerando a importância crescente do uso da Inteligência Artificial na área de saúde, os possíveis benefícios e os riscos associados à sua utilização sem uma regulação pública efetiva, esse debate é crucial para o amanhã que já é hoje. Todos esses temas, apontados como ausentes dos grandes debates, estiveram, no entanto, presentes nas pré-conferências, nas conferências livres e aparecem nas proposições que foram votadas.
Uma outra característica que singularizou a 17ª foi, sem dúvida, a organização de quase uma centena de Conferências Livres que a precederam, auto-organizadas pelos interessados em temas específicos ou gerais por organizações e movimentos sociais da saúde, com direito a eleição de delegados para a CNS. Além de democratizar a convocação das conferências, permitiu o debate mais aprofundado sobre temas específicos e mostrou a pujança da sociedade civil organizada no campo da saúde e sua presença como sujeito político que já não pode ser mais ignorada. Certamente, essa inovação veio para ficar e, talvez, tenha impactos na organização das futuras conferências, incrementado o uso de tecnologias que aumentem a possibilidade de debates mais profícuos, eliminando os desgastes do processo de votação nos grupos. Um primeiro passo já foi dado com o lançamento, na sessão de enceramento, do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde pelo Ministério da Saúde.
Uma marca que ficou patente em todo o processo de construção da CNS é a incrível capacidade de renovação das lideranças que consegue manter vivo o movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Essa característica que não é frequente em outros países e movimentos, tem sido responsável pela continuidade da reforma e sua fidelidade aos princípios doutrinários entronizados na Constituição Federal de 1988 e nas leis orgânicas da Saúde, bem como pela capacidade de inovação, com a introdução de novas problemáticas que orientam a definição da política de saúde. Tomo como exemplos o consenso estabelecido em relação ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde, como possibilidade de construção de um modelo de desenvolvimento soberano, que associe política econômica e social. Enquanto tal proposta foi fortemente influenciada pelo papel da Fiocruz, na sua construção e difusão, vemos um outro exemplo, a demanda por uma política de cuidados paliativos, que alcançou também o consenso suficiente para ser incluída na agenda pública, mesmo sendo um trabalho de formiguinhas, em redes de profissionais e familiares.
A predominância do debate sobre pautas identitárias trouxe consigo reflexões teórico-políticas ao problematizar a noção de igualdade e propor sua substituição pela de equidade, argumentando que a diversidade requer tratamentos diferenciados e não homogêneos.
Essa suposição remete a outra, ocorrida nos anos 1990, na qual, sob orientação dos organismos financeiros internacionais, propunha-se substituir a universalização pela focalização, sob a alegação de que a universalização terminava privilegiando no acesso aos serviços públicos os grupos corporativamente organizados, em detrimento dos que mais necessitavam e continuavam excluídos. A experiência do SUS no enfrentamento dessa falsa polarização deve ser relembrada, pois tem muito a nos ensinar. Enquanto o modelo de atenção se manteve como essencialmente curativo, é certo que os setores populacionais mais carentes não se beneficiaram igualmente dos serviços de saúde. No entanto, em vez de substituir a universalização pela focalização o que foi feito foi a promoção do modelo de atenção preventivo, com ênfase na Atenção Primária de Saúde, com a atuação de Agentes Comunitários de Saúde e das Equipes de Saúde da Família. Ao invés de reservar o setor público apenas para os pobres, discriminando-os, o que se buscou foi articular ações focalizadas dentro de um sistema universal, desfazendo falsas contradições.
Assumir a equidade como substituta da noção de igualdade, porque toma em conta a diversidade e as desigualdades, implica graves problemas teóricos e políticos. A igualdade é um valor intrínseco à noção de direito, que é o esteio de uma sociedade democrática. É falaciosa a substituição do direito à saúde pela cobertura universal da saúde, defendida atualmente pela OMS/OPS, exatamente porque a universalidade de coberturas com distintos pacotes de serviços nega a igualdade pressuposta na noção de direito à saúde (Fleury et al, 2013)[1].
A necessidade de ter em conta as diferenças é fundamental para a superação das iniquidades, já que políticas e programas uniformes e homogêneos terminam por favorecer os grupos populacionais que já estão mais aquinhoados na sociedade. No entanto, medidas que promovem a equidade, como, por exemplo, o sistema de cotas, não são um fim em si mesmas. São instrumentos que visam à superação das diferenças, ou contemplam a diversidade das demandas, tendo como objetivo a promoção da igualdade. O conceito igualitário da cidadania serviu para encobrir a exclusão e inviabilizar as diferenças, enquanto a homogeneidade do tratamento por meio da administração impessoal e burocrática dos serviços do Estado de Bem-Estar Social terminou por normalizar a sociedade, ambos atuando como impedimento à expansão da cidadania (Fleury,2003)[2].
A teoria da cidadania tem buscado enfrentar essas questões sem renunciar à noção de igualdade, tratando-a como igualdade complexa (Walzer, 1993)[3], o que leva a uma noção de cidadania diferenciada (Young,1989)[4]. No caso brasileiro, uma das sociedades mais desiguais do mundo, a busca da igualdade inserida na CF de 1988 e que tem no sistema de saúde a sua expressão política e institucional mais concreta, pode ser considerada como uma reforma não reformista porque pode transformar o mundo já que, como ensina Gorz[5], “tem em conta as necessidades e exigência humanas, sendo determinada não em termos do que pode ser, mas do que deve ser”.
Outra questão que emerge do debate centrado nas lutas identitárias diz respeito à capacidade de que demandas fragmentadas sejam incorporadas em uma luta comum. Não há dúvidas sobre o impacto que tais lutas têm promovido nas transformações sociais e culturais recentes e na virulência do conservadorismo que tenta, de forma vã, impedir o prosseguimento inexorável de tais mudanças. No entanto, muitas vezes, deixam de articular as discriminações e preconceitos sofridos por diferentes setores da população com a exploração econômica e a dominação de classe. Se bem não seja possível reduzir todas as formas de dominação à exploração econômica, também seria muito equivocado tratar as discriminações de forma descontextualizada de sua função de promover a superexploração por meio da difusão de preconceitos e estereótipos.
A construção de uma sociedade solidária, a força das estratégias e lutas que promovem o Comum e o Bem Viver são poderosos dispositivos na desconstrução da ideologia neoliberal assentada na difusão de valores da meritocracia e do individualismo competitivo do empreendedorismo. Só assim poderemos construir um sistema de proteção social universal, equânime e integral. Na perspectiva da construção do socialismo, não basta apenas o reconhecimento, é preciso lutar pela redistribuição, nos ensina Fraser (2001)[6].
[1] Fleury, Sonia et al. Disponível aqui.
2. Fleury, S La expansión de la Ciudadanía. Disponível aqui.
3. Walzer, Michael – Las Esferas de la Justicia – Una defensa del Pluralismo y de la Igualdad. FCE, México,1993
4.Young, Marion – Polity and Group difference: A Critique of the Ideal of Universal Citizenship, Ethics, nº99, p.250-274.
[5] Disponível aqui.
[6] Fraser, Nancy. Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da Justiça na era pós- socialista in Jessé Souza (org.) Democracia Hoje – novos desafios para a teoria democrática contemporânea. UNB, Brasília, 2001 pp. 245-282
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Construir o Amanhã hoje – Desafios enfrentados pela 17ª Conferência Nacional de Saúde. Artigo de Sonia Fleury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU