06 Abril 2023
Pesquisador independente, filósofo “pirata” (como ele mesmo se define), ativista e editor. Amador Fernández-Savater (Espanha, 1974) acaba de publicar, juntamente com o artista Oier Etxeberria, El eclipse de la atención (NED Ediciones), reunindo uma dezena de pensamentos e pensadores em torno de diferentes desafios do nosso tempo. Conversamos com ele, aproveitando esse momento corsário.
A entrevista é de David Lorenzo Cardiel, publicada por Ethic, 31-03-2023. A tradução é do Cepat.
Você se define como um filósofo pirata, alguém que “aborda” a filosofia de fora dela própria. Pode existir algo que esteja realmente fora do raio de ação da filosofia?
Nunca estudei filosofia a sério, embora a filosofia sempre esteve aí. Minha aproximação foi muito autodidata: artesanal, muito precária, arbitrária, movida por paixões do momento. Nunca sistemática, acadêmica, global, lógica. Uma “abordagem” a partir de algum tipo de intensidade que me tomava: uma pergunta, um acontecimento, um problema.
Esta abordagem implica também uma “desenvoltura” no uso próprio da filosofia: nada solene, rigoroso, marcado por obrigações de citação apropriada e formatos a priori como o paper. Um “servir-se” da filosofia, mas não servi-la (como instituição, monumento, castelo de saberes autorizados). Então, você nota que os “grandes filósofos”, de certa forma, também agiram assim e se sente mais legitimado. A “pirataria” é constante na história da filosofia, embora esta se encarregue de apagar suas pegadas.
É possível renunciar a dimensões humanas práticas, como a atividade política, do pensamento abstrato?
Lembro-me de uma citação do filósofo Cornelius Castoriadis que li, décadas atrás, e sempre me vem. Dizia que o militante político que se queixa das “abstrações intelectuais” e remete à “dura verdade dos fatos”, depois, distribui panfletos cheios da pior metafísica, porque “luta de classes”, “revolução” e “socialismo” são conceitos que nascem em uma determinada tradição de pensamento que, caso não pensemos, pensa-nos.
Ou seja, as palavras não se referem diretamente a coisas sólidas e concretas, há modos de pensar que ordenam e configuram realidades. Se não somos capazes de elaborar um discurso próprio, mas simplesmente repetimos o adquirido, estamos sendo pensados por outros que talvez não nos levem por onde desejamos. O pensamento é esta detenção e esta pergunta sobre os modos de pensar que constituem objetos e formas de olhar.
Em 2020, publicou “Habitar y gobernar”, um ensaio no qual defende a importância de a filosofia sair à rua. Por que tememos tanto a mudança? O desconhecido nos atemoriza? Estamos preparados para conviver com a incerteza, que é parte essencial do ato de viver?
Como já disse, para mim, não se trata de “a filosofia sair à rua”, mas de que a rua se coloque a pensar. A rua, ou seja, a vida. A vida pode recorrer a materiais e linguagens de tipos muito diferentes para pensar, incluindo a filosofia. Deve haver um problema vital para que a referência aos conceitos não seja puramente abstrata ou acadêmica. A questão é que todo pensamento próprio enfrenta limites. Limites que nos foram impostos e gravados no corpo.
Então, pensar, assim como romper limites, ativa uma angústia e um terror: de ser diferente do que somos, de deixar de ser, de nos dissolver. O filósofo argentino León Rozitchner descreveu muito bem isso. Pensar, se levado a sério, é enfrentar angústias. Não angústias abstratas, mas limites materiais inscritos no corpo pelas instâncias de poder que governam.
Para além desses limites, uma possibilidade de loucura. Quem gostaria de enlouquecer? Contudo, um toque de loucura é necessário para pensar, dar a voz ao que se rebela contra os limites que nos asfixiam e delimitam o possível.
É necessário reconstruir a filosofia, devolvê-la a um fundamento socrático? A filosofia “acadêmica” é equiparável à filosofia “livre”, natural, à do filósofo que investiga o cosmos que o cerca, despindo seus olhos de preconceitos e saberes?
Não tenho nem ideia. Já disse que não sou filósofo, nem tenho um discurso sobre a filosofia em geral ou o que a filosofia em geral deve fazer ou deixar de fazer. Não me interessa nada disso, interessa-me pensar problemas situados e concretos, que podem levar, no entanto, muito longe, a uma reavaliação do que é o próprio cosmos.
Acaba de publicar, junto com o artista Oier Etxeberria, “El eclipse de la atención”, reunindo uma dezena de pensadores em torno de diferentes desafios. Estamos enfrentando uma pandemia do déficit de atenção? Como sua perda afeta nossas vidas, tanto do ponto de vista coletivo quanto individual?
A primeira coisa é questionar os pressupostos e sair dos estereótipos. Neste caso, a ideia de uma “falta de atenção”, de um “déficit de atenção”. Nós preferimos propor que o problema é um “eclipse da atenção”, no sentido de que nossa atenção está sendo “ocultada” ou “tapada” por um poder saturador.
Está aí a famosa “economia da atenção”, que persegue a captura de nossa percepção e de nosso tempo, através de uma multiplicação das indicações de consumo. A tendência à “protocolização” da sociedade, que supõe uma delegação da atenção e de todos os tipos de automatismos que supostamente vão pensar e decidir (bem) por nós. A inflação, não das imagens em geral, mas dos clichês e estereótipos, que são sentidos empacotados e percepções pré-definidas que vêm para dizer: “as coisas são assim”. O eclipse tem todas essas formas de captura, de feitiço, de exploração da atenção.
A distração, ao contrário do que se pensa, pode ser hoje uma rebelião: desviar a atenção dos lugares que a desejam capturar e submeter, colocá-la em outros lugares imprevistos, deixá-la flutuar. Quando tudo conspira para que estejamos falando do mesmo vídeo do YouTube, ao mesmo tempo, a distração é saudável rebelião.
Ao longo do livro, são abordadas situações muito presentes e, portanto, extraordinariamente sensíveis em nossos dias. Por exemplo, o aumento do TDAH nas salas de aula. A educação está se degradando? Está sendo bem pensada? Caso contrário, em sua opinião, como deveria ser estruturada?
O trabalho de Marino Pérez Álvarez e José Ramón Ubieto, em torno do TDAH, parece-me impecável. Esse diagnóstico – abrangente, impreciso e patologizante – traz o problema de reduzir a questão da atenção a um dano cerebral a ser reparado com medicamentos. Adeus, então, a uma reflexão sobre o contexto vital da pessoa em questão (escolar, familiar etc.). Adeus também a uma resposta contextual que passe por formas de acompanhamento.
O problema é abstraído, ou seja, reduz-se sua complexidade e é situado biologicamente. Os dois autores questionam essa redução, essa lógica classificatória incapaz de escutar a singularidade de cada pessoa, esse bloqueio do pensamento sobre os fatores sociais (as formas de vida, as diferentes “velocidades” que marcam as pessoas).
Acredito que há uma reflexão geral sobre a infância e a escola. Em vez de pensá-las e medi-las segundo critérios a priori do que “deveria ser”, faríamos melhor exercitando uma escuta do que é, do que existe e do que já está sendo. Muitos problemas da escola atual têm a ver com a ideia de que as crianças precisam se adaptar a seus programas e funcionamentos, caia quem cair e custe o que custar, em vez de adotar uma plasticidade capaz de escutar e acompanhar a pluralidade das vidas singulares que constituem uma sala de aula.
Leon Tolstói, em seu ensaio “O Reino de Deus está em vós”, já previa os séculos XX e XXI: os capitalistas invadiriam os gostos, a construção familiar e a vida privada. Com as redes sociais e as novas tecnologias, esse assalto à vida privada ameaça se tornar totalitário. As tecnologias digitais são um Cavalo de Troia para nos dominar por dentro? Agora, começa a se tornar realidade a integração entre o corpo humano e estruturas mecânicas, com implantes de microchips que prometem novas terapias etc.
Considero que a denúncia da tecnologia se tornou um fetiche. Todos nós a praticamos diariamente como desabafo, mas não nos leva muito longe. Penso que, em primeiro lugar, existe uma questão de desejo: o que se torna escasso é o desejo, que não é um capricho volátil, mas força, motor, processo. Esse enfraquecimento do desejo se encaixa com a proliferação de automatismos que nos governam, entretêm e decidem por nós, mas sem nós. Contudo, o problema é do desejo, não das tecnologias.
A tecnologia, em segundo lugar, é um “campo de batalha”. O movimento hacker, por exemplo, propõe uma relação com a tecnologia (um conceito já equívoco que deveria ser dividido) através do aprendizado, do uso e do conhecimento compartilhado, mais do que da crítica. Tornar-nos capazes, em vez de “ser críticos”. Parece-me mais interessante. O domínio totalitário da tecnologia (em aliança com o mercado, porque estamos falando de tecnologias que passam pelo mercado) é possível graças à fragilidade das alternativas de desejo e saberes autônomos.
No livro, defende a prática dos cuidados, do pensamento crítico e da serenidade, em busca de exercitar a atenção contra um mundo acelerado que nos transforma em “máquinas”. Estamos caminhando para uma sociedade selvagem, impiedosa e individualista? Por que precisamos tanto defender nossa faceta humana como cuidadores uns dos outros?
A questão é que a atenção não é uma questão individual, mas coletiva. A atenção não é “minha” atenção, mas um ambiente de atenção compartilhado com outros. Uma verdadeira ecologia. É dessa trama que se deve cuidar. É muito simples de entender. Pensemos em uma simples conversa. A que estamos atentos? Só ao que eu quero dizer? Então, resultará em uma gaiola de grilos, um choque infernal de monólogos.
A boa conversa requer uma atenção alargada ao “entre”, ao que acontece entre aqueles que estão aí. Escutar, ceder a palavra, perguntar. E isso não é possível se não há boas condições de atenção. Pensemos nos profissionais da saúde, hoje, em luta. Por quê? Não possuem boas condições de atender cada pessoa que se apresenta. Não têm tempo para escutar. Existe um problema de recursos. Veem-se forçados a aplicar automatismos. Não podem atender, não porque façam mal o seu trabalho, mas por uma questão de ambiente e condições. A atenção é um problema político e coletivo.
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“A atenção é um problema político e coletivo”. Entrevista com Amador Fernández-Savater - Instituto Humanitas Unisinos - IHU