04 Outubro 2022
“O resultado eleitoral da coalizão civilizadora organizada para deter o aviltamento da política e da própria sociedade deixou um gosto amargo. Sua votação, que tem muito de reivindicação pessoal, foi o resultado da capacidade do ex-presidente [Lula] em tecer acordos, com o pragmatismo que já o acompanhava em seus dois mandatos anteriores, e de sua vontade de se mostrar absolvido pela História. Contudo, o bolsonarismo mostrou que também é uma força subterrânea”, escreve Pablo Stefanoni, jornalista e historiador, em artigo publicado por Nueva Sociedad, outubro/2022. A tradução é do Cepat.
Jair Messias Bolsonaro não pôde ser retirado da cadeira presidencial e do Palácio do Planalto no primeiro turno pela rebelião eleitoral contra seu governo prevista pelas pesquisas. O resultado de Luiz Inácio Lula da Silva ficou dentro do esperado, com mais de 48,4% dos votos, mas o atual presidente superou todas as previsões e obteve 43,2% e mostrou que o bolsonarismo é um osso duro de roer.
A “frente democrática” formada pelo o ex-presidente e que abarcou do Movimento Sem Terra e o Partido Comunista aos setores da elite econômica e judiciária, vista no exterior como uma espécie de “candidatura do bem”, chocou-se com uma persistente corrente de votos para o atual presidente, que incluiu os tópicos da extrema-direita global na campanha e voltou a encarnar o antipetismo. Contudo, também mostrou flexibilidade ideológica para se afastar do ultraliberalismo de seu ministro da Economia e manter certas políticas sociais, abrandou seus discursos de mão dura, manteve suas conexões com as redes locais de poder, legais e ilegais, e lutou sem tréguas nas redes sociais.
Além disso, como destacou o jornal Folha de S.Paulo, foi importante o desempenho de vários candidatos bolsonaristas: a ex-ministra da Mulher, Damares Alves, uma das espadachins evangélicas ultraconservadoras que concorreu com o apoio da primeira-dama Michelle Bolsonaro, foi eleita senadora pelo Distrito Federal, e o ex-ministro Tarcísio Gomes de Freitas ficou em primeiro para disputar o governo de São Paulo contra o ex-candidato presidencial petista Fernando Haddad, com amplas chances de vitória.
O ex-juiz Sergio Moro, que prendeu Lula e hoje está afastado de Bolsonaro, foi eleito senador pelo Paraná e o vice-presidente Hamilton Mourão conquistou uma vaga pelo Rio Grande do Sul. Até figuras controvertidas, como o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e o do Meio Ambiente, Ricardo Salles, amplamente questionados por suas políticas, foram eleitos (Pazuello foi o mais votado no Rio). O Partido Liberal de Bolsonaro somava a maior bancada partidária individual no Senado e em deputados com uma divisão geográfica muito acentuada, com o centro-oeste como bastião da direita.
Ao contrário de quatro anos atrás, quando poderia haver alguma dúvida sobre Bolsonaro, agora, seus eleitores apoiaram, de forma aberta ou “envergonhada”, sua gestão e seu estilo, que se conecta com diversas “rebeldias de direita” pelo Ocidente. E embora Lula esteja mais bem posicionado para o segundo turno, não houve algo parecido a uma contraonda de esquerda. Alguns oásis, como as deputadas trans e as parlamentares indígenas eleitas, mostram alguns acúmulos político-culturais sob o bolsonarato.
A eleição esteve longe de ser uma batalha entre povo versus elite. O New York Times destacou que o Supremo Tribunal do Brasil ampliou de forma drástica seu poder para resistir às posições antidemocráticas de Bolsonaro e seus apoiadores. Por exemplo, em agosto, por ordem do juiz do STF, Alexandre de Moraes, as forças policiais fizeram buscas nas casas de empresários bolsonaristas que comentaram em um grupo de WhatsApp que um golpe de Estado era preferível à volta do Partido dos Trabalhadores ao poder.
O caso brasileiro reproduz em parte o dos Estados Unidos, em que Donald Trump, apesar de supostamente ser um governo conservador da “lei e ordem”, acabou encarnando uma direita inorgânica que enfrentou grande parte das instituições por dentro. Por isso, Joe Biden e Lula da Silva se apresentaram como candidatos da “normalização” contra dois populistas de direita que parecem confortáveis em seu papel de “deploráveis” (conforme Hillary Clinton chamou os eleitores do empresário do ramo imobiliário).
Lula da Silva foi condenado a 12 anos de prisão por corrupção, mas foi o mesmo tribunal que inicialmente avalizou a condenação - que ajudou na vitória de Bolsonaro - que finalmente, após 580 dias de prisão, a anulou por razões de forma, e assim o ex-operário metalúrgico ficou habilitado para voltar ao poder. Contudo, o que desarmou a conspiração judicial que colocou Lula de volta na corrida não foi tanto a mobilização social, mas o jogo de poder interno em um Poder Judiciário que, antes e agora, joga no limite (entre ser um defensor e uma ameaça à democracia). Desta vez, é Bolsonaro que ataca a Corte como “lulista”.
Mais do que um regime autoritário (como aquele que, por exemplo, Nicolás Maduro conseguiu terminar de construir na Venezuela), Bolsonaro produziu uma brutal degradação da vida cívica, alimentou vários grupos lumpen-mafiosos, instaurou discursos negacionistas sobre a pandemia e as mudanças climáticas e enfraqueceu o lugar do Brasil no concerto das nações.
A estética grosseira das armas e os achaques de Bolsonaro projetaram uma imagem de sordidez política e intelectual. Mas seu caráter briguento também o conectou com grande parte do país, que encontrou nele uma identidade (é chamado de “Mito”) e a possibilidade de um voto de protesto que pode ser tão poderoso quanto impreciso em seus destinatários.
Além disso, manteve sua aliança com o poderoso mundo do agronegócio e a ex-ministra Tereza Cristina Corrêa. A “musa do veneno” conquistou uma cadeira no Senado pelo Mato Grosso do Sul, após derrotar outro ex-ministro de Bolsonaro. Também com empresários que ainda veem o PT como o mal absoluto, além das milícias do Rio de Janeiro.
A bizarra tomada do Capitólio foi justamente uma constatação de incompetência estratégica, mas ao mesmo tempo é a dimensão antissistêmica que atrai parte dos apoiadores de Trump e alimenta a ilusão de estar contra o status quo. E algo semelhante aconteceu com Bolsonaro.
Essa realidade degradada foi, mais do que seu programa, o combustível da ressurreição de Lula e da ressignificação de sua figura, associada pelo antipetismo à corrupção: Bolsonaro o chama de ex-presidiário. Sua campanha se baseou na necessidade de reconstrução institucional e moral do país, apelando a símbolos de amor e esperança e de retorno da felicidade para o povo. Inclusive, pelo que parece, por sugestão de sua nova esposa Rosângela, que teve um peso crescente em seu meio, lançou-se uma nova versão de Lula lá (Lula lá, no Planalto), o jingle dos anos 1980, a distante época do candidato operário.
A presidência de Bolsonaro acabou tendo um resultado paradoxal em escala regional: em vez de fortalecer as direitas radicais, em grande medida as enfraqueceu (poucos quiseram aparecer ao lado dele). Mas isso pode mudar: sua capacidade de resistência pode alimentar expressões de direita dura que foram emergindo neste tempo, em uma região onde as extremas direitas estão longe dos resultados eleitorais europeus. Por isso, este resultado é desconfortável para as direitas moderadas da América do Sul.
Neste tempo, o progressismo latino-americano vem ganhando uma eleição atrás de outra (em parte porque os governos em exercício vêm perdendo). Inclusive, a Aliança do Pacífico deixou de existir como contraface ideológica liberal-conservadora do populismo “atlântico”, após os triunfos de Andrés Manuel López Obrador, Pedro Castillo, Gabriel Boric e Gustavo Petro. No entanto, as esquerdas parecem hoje ser mais eficazes para vencer do que governar, e enfrentam diversos obstáculos, internos e externos, que reduzem sua eficácia político-ideológica.
O caráter rizomático da nebulosa da neorreação atual permite que os pontos de conexão sejam múltiplos e que discursos das extremas direitas globais ressoem no Sul e produzam curiosas formas de recepção e ressignificação dessas ideias, como o caso dos libertários de direita na Argentina. Os governos progressistas enfrentam, então, um cenário diferente ao do “primeiro ciclo” da maré rosa, em que as guerras culturais do Norte penetram de diversas formas a opinião pública e contribuem para delinear uma linguagem inconformista transversal a diferentes setores sociais. As rebeldias de direita parecem ter chegado para ficar.
Aí assentam alguns paradoxos desta vitória relativa de Lula. O resultado eleitoral da coalizão civilizadora organizada para deter o aviltamento da política e da própria sociedade deixou um gosto amargo. Sua votação, que tem muito de reivindicação pessoal, foi o resultado da capacidade do ex-presidente em tecer acordos, com o pragmatismo que já o acompanhava em seus dois mandatos anteriores, e de sua vontade de se mostrar absolvido pela História. Contudo, o bolsonarismo mostrou que também é uma força subterrânea.
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Lula lá? Vitória progressista e direita subterrânea. Artigo de Pablo Stefanoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU