09 Janeiro 2020
“A afirmação da não necessidade e da não suficiência da noção de transubstanciação não implica, de modo algum, uma intenção de negar a presença real, mas sim indica a tarefa de uma ‘tradução da tradição’, mediante a qual possamos permanecer fiéis ao que os pastores e os teólogos dos séculos XIII e XIV fizeram.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 07-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A já próxima entrada em uso da terceira edição do Missal Romano envolve consequências não apenas de caráter litúrgico, mas também sistemático. Uma pacata discussão sobre a linguagem teológica a propósito da eucaristia parece ainda mais urgente, visto que já nos encontramos a 50 anos da primeira edição do Novo Missal pós-conciliar.
Então, parece-me interessante considerar, de modo dialógico, uma posição clássica, expressada em um educado artigo de 10 anos atrás por Francesco Arzillo [disponível aqui, em italiano], que se refere à festa de Corpus Christi, e a resposta indireta que eu ofereço em um artigo meu de próxima publicação.
Normalmente, não se considera que as “categorias sistemáticas” da tradição latina medieval envolvem algumas questões que não são fáceis de resolver, precisamente por causa da sua forma lógica. Uma ontologia pensada em termos de substância e de acidentes/espécie custa a valorizar a dimensão simbólico-ritual. Por esse motivo, uma recepção consciente da reforma litúrgica deve ser acompanhada por uma exigente e paciente revisão das categorias sistemáticas com as quais a tradição eucarística é pensada e expressada.
No seu artigo, F. Arzillo considera que:
“Essa presença (eucarística) é verdadeira e radicalmente real por ser substancial. O recurso à noção de transubstanciação, portanto, é imprescindível: qualquer outra explicação permanece aquém da radicalidade do dom.”
Ao invés disso, eu não acredito na imprescindibilidade da categoria de transubstanciação. Eu considero que crer na presença de Cristo na celebração eucarística não implica ex necessitate uma linguagem que necessariamente utilize as categorias de substância e de espécie. Em outros termos, dizer “presença” não implica necessariamente falar de “substância/espécie”.
Para uma valorização da ação ritual e para a recepção da nova edição do missal, acredito que essa passagem para noções outras pode ser fundamental. De fato, muitas vezes as dificuldades de recepção da Reforma Litúrgica dependem das categorias inadequadas com as quais continuamos pensando e elaborando o mistério de Cristo e da Igreja.
O artigo, do qual apresento aqui apenas os dois primeiros parágrafos, será publicado em breve na revista Giornale di Bordo (III/50, 2019, pp. 46-56). Uma versão mais ampla da argumentação se encontra em A. Grillo, “Eucaristia” (Nuovo Corso di Teologia Sistematica, 8), Bréscia: Queriniana, 2019 (especialmente nas páginas 301-431).
A elaboração da noção de transubstanciação, termo técnico elaborado pela tradição católica em referência à eucaristia, ocorreu durante um complexo debate entre diversos componentes da tradição cristã medieval e, depois, foi utilizada naquele momento de difícil crise em que o catolicismo foi forçado a se defrontar com as várias formas de “protesto evangélico”.
Ela serviu, pelo menos até o século XVI, para mediar com sabedoria entre diversos excessos – realistas ou simbolistas – presentes não apenas na teologia da eucaristia, mas também, e talvez principalmente, na cristologia [1].
O conceito de transubstanciação, portanto, deve ser reconhecido, originalmente, como o fruto de uma preciosa mediação em salvaguarda da comunhão eclesial. No entanto, isso envolveu – para além das melhores intenções – uma forte transcrição da experiência cristã nas categorias de teorese filosófica, intelectualista e metafísica de derivação grega e de elaboração escolástica, determinando uma conjugação da presença real definida de acordo com a articulação do ser como “substância” e como “acidente” [2].
Esse desenvolvimento introduziu inevitavelmente uma sobrevalorização do invisível (ao qual o intelecto tem acesso ajudado pela fé) e uma subestimação do visível (considerado apenas na sua função de suporte como elemento/matéria ou como objeto da rubrica).
A intenção original pela qual a distinção entre substância e acidentes foi concebida, ou seja, a unidade do real em devir, obtém na doutrina eucarística um efeito diferente e invertido, um resultado de cisão e de separação, que, depois, será difícil remediar.
Além disso, a própria essencialização da presença apenas no momento da consagração, de fato, reduziu ad usum todo o restante da experiência de presença na Palavra, na oração eucarística e na comunhão [3].
A recuperação dessas três dimensões fundamentais da presença do Senhor na eucaristia – como evento e experiência de Palavra proclamada e escutada, como evento e experiência de oração eucarística eclesial e como evento e experiência de comunhão no único pão e no único cálice – enfraqueceu e redimensionou inevitavelmente toda pretensão de identificar a presença apenas na conversão da substância assegurada pela (única) consagração.
Um realismo temperado, que era o objetivo que orientou a elaboração da categoria doutrinal de transubstanciação com a intenção explícita de moderar tanto as pretensões do simples simbolismo quanto as do duro realismo, foi substituído por uma progressiva distração da ação ritual, da sua contingência e sensibilidade, e pela substituição dela por uma relação direta e misteriosa com a substância do sacrifício, que nada mais tem de litúrgico e de simbólico.
Se a transubstanciação, pela sua forma lógica, faz com que a eucaristia perca a sua dimensão sacramental – litúrgica e simbólica –, então essa noção reivindica uma evidência física e/ou metafísica que transcreve irremediavelmente a experiência no plano da infração a uma lei universal [4].
Ao longo dos séculos, esse deslocamento epistemológico tornou-se causa e motivo de perda da experiência litúrgica e ritual, substituindo progressivamente o processo pelo ato, a sequência pelo instante. E o coração da eucaristia se tornou um ato de contemplação, não uma ação ritual.
Por isso, não se trata de desmentir o trabalho teológico secular que elaborou e estruturou a teoria da transubstanciação em defesa de um realismo moderado. Em vez disso, trata-se de recontextualizá-lo dentro de uma experiência mais ampla e mais complexa do evento eucarístico, também de acordo com uma nova reflexão, oferecida pela atual produção filosófica, na qual o uso de termos como substância e acidentes se tornou altamente problemático. E não seria suficiente emancipar a noção de substância da terminologia filosófica, deslocando-a para o terreno da linguagem comum, porque, desse modo, se perderia o ganho que a noção clássica introduziu.
Em certo sentido, o movimento litúrgico, o movimento patrístico, o movimento bíblico e o movimento ecumênico, que caracterizaram de modo eficaz a teologia das primeiras décadas do século XX, contribuíram, cada um por sua parte, para essa recontextualização da verdade eucarística, permitindo reconhecer conclusivamente dois limites teológicos da noção de transubstanciação, ao lado daqueles ligados mais em geral à transição cultural tardo-moderna.
De fato, para dizer a presença real do sacrifício do Senhor, o recurso à linguagem da conversão de toda a substância continua sendo legítimo, possível, às vezes até recomendável, mas não é necessário em si mesmo. Não constituindo uma verdade diferente da presença real, ele constitui uma explicação de autoridade, mas não é “outra coisa” senão a afirmação da presença real do corpo e do sangue do Senhor Jesus no pão e no vinho da eucaristia. Não se trata de crer em outra coisa além da presença, mas sim de confiar em uma mediação de autoridade, cuja intenção não é o testemunho da fé, mas sim a sua explicação.
Além disso, para dizer a presença do Senhor na ceia eucarística, a noção de transubstanciação não é suficiente para restituir a integralidade da experiência cristológica e eclesial que a ação eucarística institui, estando concentrada apenas em um momento da celebração e levando em consideração apenas uma sequência limitada do processo ritual.
Uma proposta de substancialização da presença deve ser substituída por uma proposta de extensão e de articulação dela: uma lógica conceitual e estática deve ser substituída por uma lógica temporal e dinâmica. Nessa passagem, muda radicalmente o papel da exterioridade, que não pode ser relegada ao âmbito do acidental ou do aparente. As espécies e os acidentes não são apenas aparências não reais e contingências não necessárias.
A afirmação da não necessidade e da não suficiência da noção de transubstanciação – deduzida dos argumentos acima indicados – não implica, de modo algum, uma intenção de negar a presença real, mas sim indica a tarefa de uma “tradução da tradição”, mediante a qual possamos permanecer fiéis ao que os pastores e os teólogos dos séculos XIII e XIV fizeram: assim como eles traduziram na relação entre as categorias de substância e acidentes a fé eucarística na presença do Senhor – fé que, nos muitos séculos anteriores, não havia sido expressa mediante essa terminologia –, assim também hoje não deveríamos ter medo de procurar categorias novas para traduzir a mesma fé, com a intenção de restituir à experiência eucarística integral uma maior densidade de ação e uma unidade de experiência mais límpida.
Assim como para os teólogos e os pastores dos séculos passados a construção do conceito de transubstanciação foi um trabalho lento, gradual e com esforço, assim também é e será para nós a tarefa da sua revisão e do seu aprofundamento. Para delinear tal objetivo de modo menos impreciso, eu diria que a tarefa da revisão da noção de transubstanciação deverá ser capaz de fazer experiência da eucaristia não apenas com o intelecto, mas também com toda a sensibilidade e através do magistério da ação: uma compreensão da eucaristia confiada apenas à categoria de substância – e, por isso, inevitavelmente ligada ao primado do intelecto, sem coenvolvimento da sensibilidade – não pode conseguir valorizar plenamente nem a dimensão sensível da experiência da figura e da semelhança, nem as razões originais da ação em comparação apenas com a contemplação, correndo o risco, assim, de reduzir o acidente e a espécie a um elemento acidental e “especial”, enquanto as razões originais da própria formulação medieval da noção de transubstantiatio atestam bem, pelo menos teoricamente, que, na eucaristia, os acidentes nunca podem ser simplesmente acidentais.
Precisamente esse forte limite, talvez ligado mais ao desenvolvimento do conceito do que à sua intenção original, determina hoje a exigência de uma precisa revisão desse “modo conveniente e apropriado” – mas em sentido absoluto não necessário e não suficiente – de explicar o dogma fidei, que consiste na confissão da presença do dom que o Senhor faz de si mesmo à Igreja reunida em assembleia para a celebração eucarística.
[1] Cf. U. Cortoni, «Habeas corpus». Il corpo di Cristo dalla devozione alla sua umanità al culto eucaristico (sec. VIII-XV) (Studia Anselmiana, 170), Roma, 2016.
[2] É preciso lembrar que a terminologia do par “substância/espécie” ou “substância/acidentes” deriva de uma reflexão aristotélica sobre o ser, que “pollakòs légetai”, que “é dito de muitos modos”. Substância e acidentes/espécie são, justamente, dois modos diferentes do ser. Portanto, não se trata de afirmar ou de negar o ser, mas de articular o ser da eucaristia em níveis diferentes. A operação de “ajuste” da noção de “transubstanciação” deve ser compreendida nesse âmbito de uma “afirmação do ser” diferenciada.
[3] Esse segundo fenômeno se deve a um “par conceitual” diferente, o de “essentia/usus”, que permite distinguir não os níveis da realidade, mas sim a necessidade das ações. Assim, enquanto com o par “substância/espécie” se gere a relação entre visível/invisível, com o par “essência/uso” se gere a relevâncias das diversas ações, no que diz respeito às tarefas do indivíduo e à validade do ato.
[4] Cf. as belas observações de Z. Carra, “Hoc facite. Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucaristica di Cristo” (Assis: Cittadella, 2018).
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Missal novo e teologia velha? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU