30 Mai 2018
"A subida de Abraão àquele monte é um marco na árdua jornada de nossa espécie da barbárie à humanidade. Um caminho, aliás, muitas vezes - mesmo em períodos de alegada civilização, humanidade e progresso - interrompido e subvertido por um feroz retorno à gana de barbárie e sangue."
A opinião é do escritor italiano Claudio Magris, ex-senador da Itália, ex-professor das universidade de Turim e de Trieste, e prêmio Príncipe de Astúrias de Letras de 2004. O artigo foi publicado por Corriere della Sera, 27-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Duas histórias, disse Borges, sempre foram e sempre serão contadas: aquela de um homem pregado a uma cruz e a de um homem que após dez anos de guerra e a destruição de uma cidade, passou muito tempo no mar, enfrentando prodígios, monstros, feitiços e tempestades até voltar para casa. Há também outras, que sempre renascem, e que sempre colocam de forma nova e densa de significados os questionamentos essenciais da vida. Um sábio que promete a alma ao diabo se ele lhe possibilitar viver o momento supremo da felicidade e do conhecimento; um sedutor nunca satisfeito e implacável em busca do infinito no amor e no sexo; uma pecadora redimida pelo próprio Deus por ter amado demais, e tantas outras.
Uma das maiores dessas histórias cheias de significado é a história bíblica do sacrifício de Isaque, um terrível embate a três entre Deus, Abraão cujo Deus ordena-lhes ir até o monte e sacrificar seu filho Isaque, e este último. O absoluto e desumano comando ofereceu durante séculos assunto para o debate, a polêmica e a releitura. As maiores páginas, ainda ardentes, são as de Kierkegaard, segundo as quais o episódio bíblico é a parábola de um insolúvel, trágico e culposo conflito entre fé e moral. Deus ordena a Abraão de realizar uma ação moralmente horrível que violaria as próprias leis ditadas por Ele. Abraão, do ponto de vista da moral, deveria dizer não, mas do ponto de vista da fé, deveria dizer sim, porque Deus é o Absoluto, incompreensível para os critérios humanos de juízo e não sujeito a qualquer decálogo moral. Abraão está prestes a lhe obedecer, subindo com seu filho no monte onde o sacrifício deveria ocorrer, e é o próprio Deus, que colocou à prova a sua fé, que o interrompe e salva Isaque.
Muitos podem ser os significados dessa tremenda história de fundação total da fé. Por acaso, incentivado por um interessante e amplo ensaio de Carmelo Aliberti - poeta e crítico a quem devemos muitos ensaios sobre a literatura italiana e, em especial, mas não exclusivamente, aquela originária do sul - eu li o livro talvez mais belo de Carlo Sgorlon, vigoroso contador de histórias épicas de quem inclusive eu não compartilhava a ressentida e ideológica polêmica contra a literatura contemporânea, I Racconti della terra di Canaan (Os Contos da terra de Canaã).
Em um destes, quem imperiosamente pede o sacrifício de Isaque não é Deus, mas um apelo atávico que sobe das profundezas, sendo acolhido como se fosse a voz de Deus. Uma voz que ordena de restaurar o antigo sacrifício dos primogênitos praticado por muitos povos no período arcaico, um mandamento inconsciente para regredir aos costumes tribais do passado, com um sentimento de culpa por ter transgredido o antigo modo de ser e de exorcizar o medo das trevas. É um ídolo que lhe exige o sacrifício de sangue, mas outra voz no coração de Abraão o libera, a voz de algo a que Abrão dá o nome de Deus, aquele Deus que, como está escrito, disse: "Não criarás ídolos", nem mesmo quando eles possam assumir a aparência de uma lei divina, fundando assim uma premissa radical de liberdade, talvez o maior dom que o judaísmo tenha dado ao mundo.
A subida de Abraão àquele monte é um marco na árdua jornada de nossa espécie da barbárie à humanidade. Um caminho, aliás, muitas vezes - mesmo em períodos de alegada civilização, humanidade e progresso - interrompido e subvertido por um feroz retorno à gana de barbárie e sangue.
Há uma contradição crescente. O progresso tecnológico certamente comporta também aspectos inquietantes, por sua velocidade e seus usos por vezes desumanos, que induzem os indivíduos a se sentir às vezes sobreviventes em um mundo incompreensível. Esse progresso também oferece grandes possibilidades de melhorar a qualidade de vida, como as possibilidades técnicas até ontem desconhecidas para salvar vidas humanas. Além disso, dignidade e igualdade de direitos foram reconhecidos a categorias humanas antes ignoradas, desprezadas e oprimidas sem que sequer houvesse consciência disso. Foram reconhecidos direitos civis a pessoas, culturas, comunidades, minorias até agora - e ainda hoje – barbaramente pisoteadas. Mas também cresceu a multidão daqueles que se acham na impossibilidade de satisfazer as necessidades básicas de existência e vivem, quando não morrem, como animais perdidos e exaustos.
Além disso, aumentam cada vez mais no mundo, os massacres em grande escala, incontáveis Isaques sacrificados e abatidos sem que ninguém interrompa ou realmente queira parar seu extermínio.
O caminho da civilização é árduo e contraditório, avança e regride. Talvez se possa dizer que é um caminho que recomeça a cada geração, a cada homem, sem segurança alguma de que prevaleça – hoje, como ontem e como amanhã – a humanidade. Estamos subindo o monte, da mesma forma que aqueles dois cujo destino, durante a subida, ainda estava incerto e não sabemos, no que nos diz respeito, como terminará.
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Todos nós no monte com Abraão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU