11 Dezembro 2017
“O Papa Francisco reconheceu oficialmente a interpretação do capítulo VIII da exortação dos bispos argentinos indica que mudanças certamente acontecem. Essa interpretação, sobre "acompanhar, discernir e integrar a fraqueza" no que se refere aos sacramentos, foi expressa em uma carta pastoral de setembro de 2016, também endereçada a Francisco. A carta inclui diretrizes observando que não há "acesso irrestrito aos sacramentos", mas que em algumas situações um processo de discernimento "possibilita” que católicos que se divorciaram e se casaram novamente recebam a comunhão”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, seu mais recente livro intitula-se “Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century” (Liturgical Press, 2017), em artigo publicado por Commonweal, 06-12-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Mudanças na lei canônica não acontecem rapidamente, como nos lembra a contínua recepção a Amoris Laetitia desde sua promulgação, em abril de 2016, até agora. Mas a notícia desta semana de que o Papa Francisco reconheceu oficialmente a interpretação do capítulo VIII da exortação dos bispos argentinos indica que mudanças certamente acontecem. Essa interpretação, sobre "acompanhar, discernir e integrar a fraqueza" no que se refere aos sacramentos, foi expressa em uma carta pastoral de setembro de 2016, também endereçada a Francisco. A carta inclui diretrizes observando que não há "acesso irrestrito aos sacramentos", mas que em algumas situações um processo de discernimento "possibilita” que católicos que se divorciaram e se casaram novamente recebam a comunhão. Ao aceitar esta interpretação, Francisco escreveu (em espanhol) ao representante da região pastoral de Buenos Aires que ela "explica integralmente o significado do capítulo VIII de Amoris Laetitia. Não há outra interpretação. E tenho certeza de que fará muito bem.”
É uma grande novidade, mas também há outros fatos interessantes a respeito. Um é que Francisco tornou pública sua aprovação desta interpretação através da publicação da comunicação epistolar no Acta Apostolicae Sedis, o jornal oficial da Santa Sé (pág. 1071-1074). Também vale observar o que aparece no final da carta de Francisco: a especificação da vontade do Papa, comunicada em uma audiência em 5 de junho de 2017, que "estes dois documentos [as cartas] fossem publicados no site do Vaticano e na Acta Apostolicae Sedis como magistério autêntico [velut Magisterium authenticum]." Isto não apenas expressa a "interpretação autêntica" de Francisco dessa passagem específica de Amoris Laetitia, mas também eleva essa interpretação ao nível de ensino oficial da Igreja. A constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium, no parágrafo 25, codifica o significado de “magistério autêntico” da seguinte forma: "Esta religiosa submissão da vontade e do entendimento é por especial razão devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex cathedra; de maneira que o seu supremo magistério seja reverentemente reconhecido, se preste sincera adesão aos ensinamentos que dele emanam, segundo o seu sentir e vontade”.
A aprovação papal das orientações argentinas certamente significa que "agora ficará mais difícil defender qualquer oposição a esta interpretação 'aberta' do capítulo VIII de Amoris Laetitia”, como escreveu Marie Malzac no La Croix International. Também é certo que haverá uma nova onda de reações dos que pensam que o ensino de Francisco sobre a família e o matrimônio não é católico, acusações que já estavam se instalando nos sínodos de 2014 e 2015, bem antes da publicação de Amoris Laetitia.
O ensino de Francisco por meio da aprovação de uma interpretação local de um documento papal ou conciliar é atípico, mas não sem precedentes. Considere as comunicações entre o Papa Pio XI, o Chanceler Otto von Bismarck e os bispos alemães em 1875, durante a Kulturkampf ("guerra cultural"), conduzida pelo Reich Alemão contra os católicos. Quando Bismarck acusou os bispos prussianos de terem se tornado "gerentes" do Papa após a declaração de primazia papal do Concílio Vaticano I, os bispos responderam defendendo sua função episcopal, e o Papa Pio IX confirmou sua interpretação da primazia papal. Esta comunicação é uma parte importante na história interpretativa do Vaticano I: ela foi registrada na famosa coleção de ensinamento da Igreja, Denzinger, e também foi citada nas notas de rodapé de Lumen Gentium, apoiando um capítulo crucial sobre o papado e a colegialidade episcopal. Em outras palavras, tornou-se parte integrante da tradição católica. Por mais paradoxal que possa parecer, nos últimos cento e cinquenta anos, o caminho da descentralização da Igreja Católica também passou pelo Vaticano I, o epítome do ultramontanismo e da "Romanização" do catolicismo.
Uma das diferenças entre 1875 e hoje é que o Kulturkampf agora está dentro da Igreja Católica. As "dubia" contra Amoris Laetitia e a campanha de parte da mídia católica para deslegitimar o Papa praticamente não tem precedentes na história do papado moderno. Mas isso não impediu Francisco. Agora, tendo perdido a batalha eclesial (no Sínodo) e a batalha teológica (poucos círculos católicos não consideram Amoris Laetitia como doutrina católica), os movimentos anti-Francisco estão atacando a encíclica de um ponto de vista mais jurídico e canônico. Eles afirmam que a carta publicada em Acta Apostolicae Sedis, em sua forma atual, não altera o Código de Direito Canônico, cânone 915: "Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.”
O Direito Canônico claramente é uma parte importante da tradição católica, e os currículos dos teólogos católicos devem incluir mais dele — como eu disse recentemente na palestra que dei na convenção anual da Sociedade de Direito Canônico dos Estados Unidos. Mas além do fato de que para os católicos o que o Papa ensina sobre a comunhão é mais relevante do que o que o cânone 915 diz, há dois fatores históricos que até mesmo uma crítica estritamente legal da decisão de Francisco deve levar em conta.
Primeiro: há muitas maneiras de mudar ou revogar uma lei na Igreja Católica. Uma delas é a ab-rogação silenciosa porque uma determinada lei caiu em desuso (desuetudo); uma lei que há muito tempo não é respeitada ou imposta não é mais lei. É fato que em muitas partes do mundo, há um bom tempo, o clero católico não decretou a aplicação do cânone 915 à comunhão de católicos divorciados e recasados.
Pela minha experiência pessoal, o foco no cânone 915 na Igreja Católica dos EUA é uma exceção. Os bispos dos Estados Unidos e do mundo todo já sabiam disso desde muito tempo antes da eleição de Francisco, que agora está abrindo espaço para práticas católicas que merecem ser reconhecidas — não simplesmente porque são "inovadoras", mas por uma intenção pastoral que aproxima a prática da Igreja de sua missão e do Evangelho.
A verdadeira questão é que há e provavelmente haverá uma situação em que a questão de permitir, em algumas circunstâncias, que pessoas que se casaram novamente após um divórcio recebam a comunhão terá diferentes tratamentos em diferentes partes do mundo — talvez até mesmo dependendo de cada país, diocese ou área da diocese.
Segundo: as leis da Igreja são as últimas que mudam. Como disse Yves Congar em True and False Reform in the Church, o papel fundamental da Igreja institucional é atrasar e desencorajar a mudança; a Igreja institucional é a autoridade que oficialmente traz sanções e apenas aceita a mudança quando (e geralmente com muito atraso) fica claro que essa mudança merece reconhecimento depois de ter sido vivenciada, de maneira extraoficial, por muito tempo e ter sido comprovada sua eficácia para a Igreja. A Igreja institucional é constitucionalmente alérgica a ultimatos, mas na verdade não é alérgica a mudanças, mesmo quando, em alguns casos, é uma mudança drástica. E este é um desses casos.
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'Tenho certeza de que fará muito bem.' Resposta de Francisco aos bispos argentinos sobre 'Amoris Laetitia' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU