06 Outubro 2017
"Proprietários de armas estadunidenses adoram suas armas porque se sentem ameaçados. Mas, entre dois tipos de ameaça - uma ameaça específica de ataque ou 'uma ameaça difusa de um mundo perigoso' -, mostram-se esmagadoramente motivados pelo último. Em uma palavra, medo", escreve Gregory Orfalea, escritor norte-americano e autor, entre outros, de Journey to the Sun: Junípero Serra's Dream and the Founding of California (Hardcover, 2014), em artigo publicado por Commonweal, 05-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Para o atirador do estádio de beisebol onde os congressistas jogaram, que feriu diversas pessoas antes de se matar, foi mais fácil comprar um rifle semiautomático do que altas doses de vitamina D. Certamente, foi mais fácil do que conseguir analgésicos. Não precisa de receita médica para conseguir uma arma. Só se precisa de vontade, uma carteira e duas mãos. Na verdade, nem precisa de duas mãos: as armas hoje disparam tão rápido que uma já é suficiente. Não precisa nem de dois olhos. Pode-se fazer o estrago que quiser com os olhos fechados.
Penso que isso deve ser chover no molhado para a maioria de nós. Para mim, é. Mas tem algo sobre o tiroteio de 14 de junho de 2017, em um campo de beisebol em Alexandria, na Virgínia, que feriu gravemente duas pessoas - incluindo o deputado Steve Scalise, da Louisiana -, que violou minhas defesas bem construídas e meu cinismo sobre violência nos Estados Unidos.
Conheço as estatísticas - a cada dois anos, mais estadunidenses são mortos por armas de fogo do que durante os 14 anos da Guerra do Vietnã. Conheço esse tipo de oposição do presidente Obama, entre outros, depois de Orlando, Sandy Hook, San Bernardino e Santa Barbara: "A vida é trágica". Aprendi isso em 2 de agosto de 1985. Foi o dia em que minha irmã, ensandecida, tirou a vida do nosso pai, de 65 anos, e depois a sua própria. Portanto, eu sei que a vida é trágica, e nunca mais não saberei, todos os dias da minha vida.
Antes desse desastre familiar, eu tinha certa familiaridade com armas. Caçava pássaros quando era adolescente. Usei um M-1 no treinamento do exército. Morei no Alasca por dois anos, um em uma cabana a 12 milhas de Fairbanks, sem água corrente e com um colega de quarto que atirava em lebres-americanas da porta da frente de casa enquanto os cartuchos caíam na minha máquina de escrever. Sei como é degustar um enorme e suculento bife de alce de um amigo na estrada. Um amigo meu, o escritor John Hildebrand, que mora em Wisconsin, tem um rifle de caça ou dois e já teve uma pistola no Alasca, país dos ursos, onde nós dois construímos sua cabana. Depois, ela foi tomada pela mata.
Conheço a natureza e o coração do homem. E sei que sem carinho e sem amor o coração fica muito sombrio. Mas não podemos eliminar a raiva da existência por decreto ou proibi-la legalmente do coração humano. Nem podemos criminalizar a doença mental. Faz parte do mistério do agitado cérebro humano - que é um ponto em que discordo do Criador. Não tenho explicação, nem mesmo na minha fé, para o suicídio da minha irmã, nem para a tortura esquizofrênica dos 10 anos que o precederam. Como diz Edgar sobre seu mestre louco na granja, em Rei Lear, "Quem sofre sozinho, sofre principalmente na alma".
E, por fim, não podemos legislar sobre a bondade. Sim, podemos e devemos impor leis contra crimes de ódio, para incentivar a justiça social, política, racial e de gênero. Mas não se pode aprovar uma lei que obrigue as pessoas a segurar uma porta para uma idosa.
Portanto, o que podemos fazer com um homem irritado, emocionalmente instável e rude, que atira em membros do congresso enquanto eles jogam? A resposta deve ser dolorosamente clara, mesmo - ou talvez principalmente -, para os próprios representantes políticos, perplexos, intoxicados pelo dinheiro, como animais assustados. Jogue fora o dispositivo de morte rápida! Caso contrário, congressista, o senhor está destruindo seu próprio jogo. E a nossa vida civil junto.
"Absolutamente ninguém é responsável por este ato, exceto o indivíduo que o realizou", escreveu Charles Lane, no Washington Post , no dia seguinte ao tiroteio. Ele está equivocado. O fato é que cada congressista que não deu aos Estados Unidos o que a grande maioria queria - importantes novos controles sobre o dispositivo de morte fácil e, com isso, a chance para uma pausa no terror - tem alguma responsabilidade por esse tiroteio. E isso inclui, com uma terrível ironia, o próprio Scalise, que esteve à frente da ideia de flexibilizar as leis sobre armas - apoiando, em 1999, um projeto de lei na Louisiana que protegia os fabricantes de armas e os proprietários de lojas de armas de ações judiciais, bem como a legislação federal de 2011 que permitia que pessoas com porte oculto de armas atravessassem as fronteiras entre estados em todo o país. Será que ele vai abominar o dia em que conquistou classificação A+ na Associação Nacional dos Rifles dos EUA (NRA - National Rifle Association)?
Muito se fez a partir da necessidade de maior segurança do Congresso após o tiroteio de Alexandria, e houve elogios aos guardas armados que atuaram na cena. Mas pode-se chegar a uma conclusão diferente, mais preocupante, embora quase ninguém a tenha notado. Os únicos agentes de segurança no local eram os de Scalise e eles claramente e tragicamente não o protegeram. A razão é simples: quando um atirador usa uma arma militar de disparo rápido, as balas são velozes demais. O atirador trouxe à tona esse fato básico em questão de segundos. No processo, ele assustou uma república em que respira - em um estádio de beisebol, onde os representantes eleitos da nossa querida democracia foram expostos como crianças. Trata-se de violação de um espaço cultural sagrado estadunidense - do home plate às cercas -, um lugar de alegria e comunhão. Estávamos todos abalados, mais do que o normal.
Assisti cada vez mais incrédulo à violência tomando a vida estadunidense desde que perdemos a minha irmã e meu pai em poucos segundos naquela manhã quente de agosto, 32 anos atrás. Depois disso, a nossa família fez tudo o que pôde para promover leis de armamento mais sensatas. Minha mãe se encontrou com um congressista, o deputado Anthony Beilenson, da Califórnia, que deu um voto-chave na proibição de armas de ataque em 1996. Nós processamos a loja que vendeu a arma à minha irmã, sem escrúpulos evidentes, durante um visível surto psicótico. Embora o caso tenha sido descartado pela decisão desdenhosa e desprezível de um juiz, o comportamento imprudente da loja acabou tendo participação (uma mãe implorou pessoalmente à loja para não vender uma arma à sua filha, que tinha ideação suicida; eles venderam mesmo assim, e a menina se matou). Felizmente, a loja fechou. Mas outras lojas como essa estão prosperando, e as armas passam facilmente pelos e-mails e pela internet com ainda menos escrutínio. Clique em "Arma", adicione ao carrinho. Por que isso continua sendo tolerado?
Ao longo dos anos, os mitos cínicos e enganosos sobre as armas, a segurança pelas armas e a Segunda Emenda foram expostos habitual e profundamente. A maioria dos estudos respeitáveis e apartidários (como o marco de 1993, da Revista de Medicina New England Journal of Medicine) mostram que ter uma arma em casa é simplesmente uma aposta ruim - a chance de a arma na gaveta da cômoda salvá-lo de danos de um invasor estranho é mínima, enquanto a posse de uma arma de fogo dobra ou até quadruplica as chances de sofrer um disparo (veja também o estudo de Charles Branas, de 2009, no American Journal for Public Health). É muito mais provável que a arma seja usada contra você, utilizada por um suicida impulsivo, roubada ou disparada em uma discussão doméstica ou, acidentalmente, por crianças. Simplificando: o porte de arma em casa coloca você e seus entes queridos em maior risco. (David Hemenway, de Harvard, descobriu, em uma pesquisa de 2015 com 150 cientistas que pesquisaram o uso de armas de fogo, que uma maioria significativa, 64%, havia chegado à conclusão de que a arma torna a casa mais perigosa, contra apenas 5% que dizem que torna mais segura. Um total de 72% concluiu que ter uma arma em casa por "segurança" aumentava o risco de uma mulher ser vítima de homicídio.) Quanto ao cenário absurdo de pessoas armadas no cinema, disparando como loucos para parar um cruel homem armado: de 160 incidentes com tiroteios entre 2000 e 2013, em apenas um deles um civil armado conseguiu desarmar o atirador, de acordo com o site Armed with Reason.
Além disso, há o grande falso argumento de que os criminosos vão sempre conseguir armas, independentemente das leis aprovadas. Mesmo que seja verdade, não é essa a questão. O fato é que a grande maioria dos que atiraram e mataram as 93 pessoas que morrem nos Estados Unidos por dia (e mais de 200 são mais gravemente feridas) não eram criminosos antes de atirar. O atirador de Alexandria, James Hodgkinson, não era um criminoso. Adam Lanza, que matou 20 crianças e seis adultos na Escola Sandy Hook, não era um criminoso. Dylann Roof, que matou nove pessoas negras que estavam estudando a Bíblia na igreja de Charleston, na Carolina do Sul, não era um criminoso. E assim por diante. O dispositivo de disparo rápido cria um criminoso, e não o contrário. Sem ele, seria apenas uma pessoa irritada, deprimida ou solitária, racista ou psicótica. Mas não catastroficamente letal.
Duzentos e vinte anos de decisões judiciais deixaram claro que a Segunda Emenda não garante o direito de carregar armas antes do caso Columbia vs. Heller, em 2008, ser empurrado pelo NRA por suas muitas vitórias - Heller venceu a causa por apenas um voto. Não preciso dizer aos católicos que têm suas questões morais com o aborto que qualquer Supremo Tribunal pode ter um entendimento errado. Certamente, os estadunidenses japoneses conhecem na mesma proporção a decisão do caso Korematsu, de 1944. Qualquer um que saiba um pouco de sintaxe percebe que a oração "o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido", da Segunda Emenda, é introduzida e qualificada pela oração subordinada, "sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada". A Segunda Emenda está claramente falando da formação de uma Guarda Nacional logo no início da república e não tem nada que ver com a compra de armas de Fulano, Ciclano e Beltrano. Temos uma Guarda Nacional e uma força policial. Vamos deixá-las trabalhar.
Se tudo isso for verdade, se os mitos caíram, por que estamos em posição de perigo? Por que as coisas chegaram ao ponto de termos medo de ir ao cinema, ao shopping, a uma manifestação política e - Deus proíba - a um campo de beisebol? Por que quem tenta discutir o assunto das armas é desmerecido, enquanto a NRA e outros continuam prejudicando nossa segurança dia após dia, a ponto de haver muitos estados em que uma pessoa pode portar uma pistola ao ar livre, como se o país inteiro fosse Dodge City? Os alunos podem agora portar armas em muitos campi universitários - nas salas de aula. (Apenas 16 estados atualmente proíbem armas ocultas nas faculdades.) Qual é o próximo passo? Armas com casquinha de sorvete?
É surpreendente e interessante saber que a maioria dos próprios proprietários de armas não estão confortáveis com leis menos rígidas de porte de armas. O especialista em violência armada, Matt Valentine, sugere que mesmo os membros da NRA não estão tão entusiasmados com as medidas extremistas que os lobistas estão promovendo ("A NRA quer políticas que a maioria dos proprietários de arma não quer", Washington Post, 18 de julho). Pesquisas mostram que, mesmo em estados conservadores como o Texas e Utah, a maioria dos habitantes se opõe ao porte aberto de armas e ao porte de armas em campi universitários.
Claramente, os milhões de dólares que os fabricantes de armas - dos quais muitos são estrangeiros - colocam em lobby da NRA conseguiram comprar os votos do Congresso. É suborno do mais covarde.
"Vou dizer uma coisa sobre a atividade de caça, especialmente se você faz o abate e a evisceração da própria caça", diz Hildebrand. "Você entende o efeito de uma bala quando entra no corpo e destrói ossos, músculos e órgãos pelo caminho. A ferida da saída é sempre muito maior do que a da entrada. Como o sangue congelado e os fragmentos de ossos estragam a carne, sempre tenho que cortar bastante. Imagino que é isso que um cirurgião tem que fazer com alguém que levou um tiro em uma emergência. As pessoas que compram armas de ataque militares geralmente não têm ideia do que acontece com um alvo vivo."
A atitude frouxa do Congresso em relação às armas está na mira. Mas o que o Congresso dá, também pode tirar. Os legisladores ainda podem deixar este país mais seguro - e ficar mais seguros também. Há apenas duas maneiras de lidar com a crescente violência em nossa sociedade: mais ou menos armas. A abordagem anterior exercia maior controle durante o governo apático de Obama e o governo de George W. Bush, que deixou a proibição de armas de ataque cair em 2006. Mas aumentar a proliferação de armas não funciona. Várias vezes, provou-se que dificultar o acesso às armas - e não facilitar - reduz a violência. Apenas para dar um exemplo recente, um estudo de 2013 da JAMA Internal Medicine revelou que maiores verificações de antecedentes criminais reduziram o número de policiais mortos a tiros em serviço em 53% e de mulheres baleadas por seus companheiros em 47%.
Portanto, pensando em uma emergência nacional em saúde, seguem oito sugestões de senso comum, dentre as quais algumas já demonstraram ser efetivas, concentrando-se e baseando-se no preâmbulo do apelo da Constituição para o Congresso "assegurar a Tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral":
Finalmente, esta sugestão dirige-se especificamente à minha comunidade católica (embora seja aberta a todas as comunidades com mentalidade semelhante), dedicados como devemos ser, por força das injunções de Cristo, pacificadores e nos opor à violência e à vingança: organizar uma série de manifestações pacíficas (como aconteceu recentemente em Chicago) na frente das lojas de armas em todo o país.
Vale notar que esforços razoáveis para conter a violência armada através de um gerenciamento responsável de armas geram um consenso consideravelmente mais amplo do que muitos imaginam. O consenso reflete um acordo implícito sobre as atitudes diárias que a maioria dos estadunidenses espera que os outros cidadãos tomem uns com os outros. A colunista conservadora Kathleen Parker, amiga do republicano libertário Rand Paul, expressou essa esperança ao reagir de forma visceral ao tiroteio no estádio de beisebol. "Não podemos desenlouquecer os loucos, mas cada um de nós pode tentar impedir a loucura", escreveu, no Washington Post ("Our New Life in the Dugout" [Nossa Nova Vida no Dugout], em 17 de junho). "Começa com um simples cuidado: sair do celular e olhar nos olhos; perguntar ao vendedor sobre seu dia; agradecer ao lixeiro; fazer favores sem pedir nada em troca; doar dinheiro porque alguém precisa mais do que você. Às vezes, um pequeno gesto de bondade pode mudar o dia - ou a vida - de alguém." Concordo plenamente. Minha mãe disse uma vez que um sorriso é o melhor e mais simples presente que se pode dar.
A importância dessas prioridades humanas é reforçada por um estudo recente feito na Holanda, na Universidade de Groningen. Como esperado, o estudo concluiu que proprietários de armas estadunidenses adoram suas armas porque se sentem ameaçados. Mas, entre dois tipos de ameaça - uma ameaça específica de ataque ou "uma ameaça difusa de um mundo perigoso" -, mostram-se esmagadoramente motivados pelo último. Em uma palavra, medo. Que o medo é corrosivo para a alma humana, muitos filósofos e escritores já afirmaram, como a romancista ganhadora do prêmio Pulitzer e pensadora cristã Marilynne Robinson, que disse em seu livro de 2015, The Givenness of Things: "O medo não é uma disposição cristã".
É verdade. Onde o medo fecha, o cristianismo abre. O medo vive em suspeita e olha as pessoas de longe; o cristianismo é próximo e vive por atos de amor (e de oração, também). Cristo nos ensinou que não há outro jeito que não seja o amor - e o amor, como qualquer pessoa que ama sabe, requer vulnerabilidade. A postura defensiva do medo versus o abraço aberto do amor: são duas coisas muito diferentes. Talvez, entre os estadunidenses, Franklin Roosevelt explique melhor, e na agonia da Segunda Guerra Mundial, nada menos do que "A única coisa que devemos temer é o próprio medo".
Como comentei, não tenho problemas com quem caça, e sempre gostei de viver com a companhia e amizade de pessoas do meio rural que usam armas para esse fim. Entendo profundamente o impulso por maior segurança; entendo por que alguém possa pensar que esconder uma pistola debaixo do travesseiro pode ajudar. Mas vivi muito debaixo desse céu na minha vida e assisti a muitas pessoas por todos os Estados Unidos levarem a si mesmo para as sombras - seus entes queridos cobertos de sangue em lugares onde estavam fazendo compras, dançando ou jogando bola. Estamos em guerra conosco mesmos. E temos de encontrar uma maneira de parar essa guerra, antes que a nossa vida comum entre em completo colapso.
E não é nada impossível. Não se resolve esse problema proibindo a raiva ou a doença mental, nem tornando a bondade obrigatória.
É preciso jogar fora o dispositivo, e é preciso fazê-lo agora.
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É hora de falar sério sobre o controle de armas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU