08 Dezembro 2016
“Maria não alcançou a primogenitura na ordem do pecado; ela se manteve sempre na infância inocente da humanidade: é aquela que nunca chegou à idade do pecado. Maria ficou para trás em relação a Adão e a Eva na história do pecado, porque se antecipou a eles e os ultrapassou na plenitude da graça.”
A reflexão é do teólogo e padre italiano Michele Giulio Masciarelli, professor da Pontifícia Faculdade Marianum, em Roma, e do Istituto Teologico Abruzzese-Molisano, em Chieti, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 07-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Precedida e, talvez, preparada no Oriente pela “Concepção de Santa Ana” (9 de dezembro), uma festa inspirada no Protoevangelho de Tiago, a festa da Concepção de Maria, celebrada no século IX no sul da Itália, passou logo depois para a Inglaterra, com a denominação de “Concepção da Santa Virgem Maria” (8 de dezembro). A partir do século XII, ela é entendida no sentido de concepção “imaculada”, como especificam alguns ingleses e Eadmer no seu tratado De conceptione beatae Mariae. A festa, posteriormente, se espalhou pela Normandia. Em 1954, Pio IX proclamou solenemente o dogma da Imaculada Conceição.
A Imaculada é um dos símbolos de todo o cristianismo. Nela, conhecemos o início da história de graça (ela nos lembra Adão antes do pecado); por ela entramos no entretempo dos tempos novos (dela nasceu o Cristo, novo Adão); através dela, entrevemos o futuro da glória (ela profetiza a condição de bem-aventurança dos redimidos).
Por isso, a Imaculada Conceição não é apenas um privilégio de Maria de Nazaré, mas também o ícone da humanidade salva: ela é a imagem daquilo que Deus queria fazer do ser humano fazer antes que este pecasse em Adão; ela é a perspectiva daquilo que Deus quererá fazer do ser humano depois que este entrou no regime de redenção de Cristo.
Maria é a humaníssima filha do primeiro Adão: “Em Maria e na sua Imaculada Conceição, parece que o homem e, portanto, também nós, filhos de Adão e de Eva, pecadores, somos envolvidos pela misericórdia eterna desde o princípio, e por isso é manifesto que Deus não nos deixa sozinhos” (Karl Rahner, Maria. Meditazioni, Roma-Bréscia, 1979, p. 58).
Maria, a filha mais humana de Adão
Portanto, Deus inaugura o dom da misericórdia para toda a humanidade em uma menina, uma jovem mulher, frágil e delicada. Maria, com a Imaculada Conceição, se revela a filha mais humana de Adão. A inocência original recorda o estado no qual a humanidade foi criada, só que, nela, a inocência foi elevada a tal ponto de densidade que o pecado não pôde sobrevir. Maria é criada em Cristo e em vista d’Ele como todos os homens (cf. Co 1, 15-17), mas nela a relação com o Cristo é de tal imediaticidade que o pecado não pôde se infiltrar entre ela e o Salvador. Graças à sua imediata proximidade com Cristo, no qual e em vista do qual tudo foi criado, ela é criatura profundamente santificada, que o pecado da humanidade não consegue atingir. Por ser cheia de graça, Maria está posta no coração mais profundo da criação e, especialmente, da humanidade.
A Imaculada é Eva mais do que Eva, porque Cristo é Adão mais do que Adão
Na sua Imaculada Conceição, Maria pertence à humanidade criada na inocência e destinada ao Cristo. A sua Imaculada Conceição não a separa do resto da humanidade: a sua graça não é de separação, mas acima de tudo de plenitude. A sua graça original é, acima de tudo, graça de plenitude e não de separação. Maria é santificada não só em antecipação dos méritos futuros de Cristo, mas em razão da sua relação imediata com o seu Filho, fonte de graça, em vista do qual tudo foi criado.
Na beleza da Imaculada, é possível de se contemplar a beleza de toda a humanidade: nela, a humanidade é restituída à inocência original e à beleza primigênia, e realmente se cumpre o símbolo da “virgem terra”. Por isso, tomando a “via creationis”, nós encontramos em Maria Imaculada a humanidade íntegra, pura, boa, harmoniosa, que não falta em nada, rica e adornada com tudo. A causa dessa plenitude de humanidade santa é dada pela sua proximidade com Cristo: Maria é Eva mais do que Eva, porque Cristo é Adão mais do que Adão.
Maria é Imaculada, porque Cristo é santíssimo; é cheia de graça, porque Cristo, com a Sua redenção, é a causa de toda a santidade; é Toda Bela porque é a mãe do Rei messiânico, que é “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44, 3): “É como a lua; se o sol se apagasse, não a veríamos mais; se, em vez disso, ela está resplandecente, é porque os raios do sol batem sobre ela. Assim, se Nossa Senhora tem todas as graças, as belezas, a santidade, a virtude, ela as tem porque está unida a Cristo como nenhuma outra criatura: Cristo é a fonte de todas as belezas e as graças de que Maria refulge” (G. B. Montini, Sulla Madonna. Discursi e scritti [1955-1963], Bréscia-Roma, 1988, p. 170).
A salvação é a participação que Deus faz de Si em Cristo e no Espírito. Por isso, a Imaculada Conceição, como obra de redenção, também é o fruto de uma iniciativa trinitária: a Virgem foi alcançada, desde a sua primeira existência, pelo amor do Pai, pela graça do Filho, pelos esplendores do Espírito. Maria é Imaculada, porque esse seu estado de graça convinha à realização do plano trinitário da salvação.
A Imaculada e o Pai
Maria foi favorecida por Deus, desde o primeiro instante da sua existência, com o dom da graça santificante, e, consequentemente, ela não conheceu aquele estado que chamamos de pecado original. Ou seja, desde o início da sua existência, Maria foi envolvida pelo amor redentor e santificador do Pai, o que significa que tudo de nós está inteiramente nas suas mãos. É claro, Maria foi circundada pela caridade redentora do Pai de um modo pleno e singular; no entanto, trata-se de um privilégio com o qual nós entramos em contato: o que vale para um membro da família humana (Maria) é rico de promessas para que valha para todos os seus outros membros.
A Imaculada Conceição não é apenas o bem-aventurado início na pureza, nem só o casto esplendor da origem de uma criatura humana, mas o início de uma história de fidelidade salvífica da parte de Deus: Aquele que deu o início é fiel e conduzirá a obra a termo. Eis o que diz essa verdade da fé. Deus, de fato, constrói os Seus planos a partir do fim, Deus sempre abraça tudo; todos nós, como Maria, por isso, somos os felizes prisioneiros da fidelidade de Deus. Maria e nós estamos dentro de uma mesma história de redenção: privilegiadamente diferente é a intensidade com que a Virgem-Mãe dela participou.
A Imaculada e o Filho
Esse privilégio mostra a gratuidade de amor com que o Pai idealizou, com misericórdia e sabedoria, o plano de salvação “antes da fundação do mundo” (Ef 1, 4). Expressa, na perfeição, a redenção operada por Cristo, ponto focal do desígnio de salvação (cf. Co 1, 18-20; Ef 1, 3-14). A Imaculada Conceição não poderia ter se imposto na consciência da Igreja senão como um caso de verdadeira redenção. Percorrendo a via da redenção, nela encontramos Maria Imaculada, aquela obra-prima do Redemptor hominis. Há, por isso, um necessário ir “a Christo ad Mariam”, no sentido de que “só se pode compreender Maria partindo de Cristo” (Rahner, Saggi di cristologia e mariologia, Roma, 1965, p. 416). Maria está “associada, na descendência de Adão, a todos os homens necessitados de salvação” (Lumen gentium, n. 53) e, de fato, ela entrou no raio de ação do único salvador do gênero humano tendo sido por Ele “redimida de modo mais sublime” (Pio IX, bula Ineffabilis Deus [1854]).
A Imaculada e o Espírito
A Imaculada Conceição refere-se à obra santificadora do Espírito sobre Maria: a Virgem é “imune de toda a mancha de pecado, visto que o próprio Espírito Santo a modelou e d'Ela fez uma nova criatura, enriquecida, desde o primeiro instante da sua concepção, com os esplendores de uma santidade singular” (Lumen gentium, n. 56). A Virgem de Nazaré é bela porque o Espírito a subtraiu do domínio do pecado: por isso, ela é Toda Santa, como a Tradição oriental gosta de chamá-la, é a Tota pulchra, como prefere se expressar a liturgia romana. A luz que ela possui por dom do Espírito brota através da sua humanidade sem obstáculos nem desvios. Como Maria “está unida de modo inefável com o Espírito Santo, pelo fato de ser Sua esposa – afirma São Maximiliano Kolbe – segue-se daí que ‘Imaculada Conceição’ é o nome daquela na qual Ele vive de um amor fecundo em toda a economia sobrenatural” (Chi sei, o Immacolata?, Roma, 1982, p. 30).
A Imaculada Conceição nos convida, de um modo todo particular, a ir a Maria pela via da beleza: Maria Imaculada se oferece ao nosso olhar crente no esplendor da graça redentora de Cristo e nos atrai: “Maria é a criatura tota pulchra: é o speculum sine macula; é o ideal supremo da perfeição que, em todos os tempos, os artistas tentaram reproduzir nas suas obras; é ‘a Mulher vestida de sol’ (Ap 12, 1), na qual os raios puríssimos da beleza humana se encontram com aqueles soberanos, mas acessíveis, da beleza sobrenatural” (Paulo VI, Discurso no encerramento do VI Congresso Mariológico e no início do XIV Congresso Mariano, Roma, 16-05-1975).
A Imaculada: a beleza de Deus refletida no rosto humano
Nenhuma criatura, nem mesmo Maria, é bela por si só: é Deus “o autor da beleza” (Sb 13, 3), que cria a “beleza das criaturas” (Sb 13, 5). Deus, o Santo e o Vivente, é a Beleza suprema, e as Suas obras são “belas/boas” (Gn 1, 9.12.25.31): dentre elas, destaca-se Maria, a quem o Filho – como imagina na fé um bem-aventurado medieval – se dirige em louvor: “Tu és bela, diz-lhe: bela nos pensamentos, bela nas palavras, bela nas ações; bela desde o nascimento até a morte; bela na concepção virginal, bela no parto divino, bela na púrpura da minha paixão, bela sobretudo no esplendor da minha ressurreição” (Amadeus de Lausanne, Huit homélies mariales: Hom. VII, 234-239, in SC 72, p. 198-200).
É sobretudo a condição de graça da Imaculada Conceição que torna Maria bela. O mal está totalmente excluído de Maria, e é isso que a torna tão bela! É por esse motivo que é tão agradável contemplá-la. Ela é irradiada pela luz de Deus que transparece livremente através da sua pessoa. Maria não é um prisma que desvia a luz, mas, completamente transparente, ela não detém nada da luminosidade que traz.
A beleza redimida salvará o mundo
Mas, por acaso, somos convidados a ter uma contemplação passiva em relação à beleza de Maria Imaculada? Certamente não: ao contrário, somos convidados a imitar essa beleza. Que não pareça estranho, mas a beleza no cristianismo também é imitável: concretamente, a Tota pulchra é imitável percorrendo com responsabilidade a via pulchritudinis, que é uma via de severa ascese, que leva a fazer resplandecer a bondade e a verdade, as duas dimensões inevitáveis da beleza, buscando a vitória da verdade sobre a mentira, da unidade sobre a divisão, da paz sobre a guerra, da caridade sobre o desamor, da graça sobre o pecado. Está na memória de todos a famosa expressão de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”. É uma afirmação que o escritor russo faz em um contexto problemático, no qual afirma que “a beleza é um enigma” e que, portanto, é preciso que se entenda bem: qual beleza salvará o mundo? Só salvará o mundo a beleza redimida: aquela que surge do Espírito e é aparentada com as realidades últimas; ela opera uma coincidência entre a experiência estética e a religiosa. Assim é a beleza da Imaculada (cf. P. Evdokimov, Teologia della bellezza. L’arte dell’icona, Roma, 1991, p. 63).
Concluindo, Maria é e continua sendo anterior ao pecado original. A Imaculada nos reporta, por isso, à aurora da criação, à era da justiça original. Como afirma G. Bernanos no seu “Diário de um pároco de aldeia”, “ela é mais jovem do que o pecado, mais jovem do que a raça da qual veio”, é a “cadete do gênero humano”. Poder-se-ia dizer que Maria não alcançou a primogenitura na ordem do pecado; ela se manteve sempre na infância inocente da humanidade: é aquela que nunca chegou à idade do pecado. Maria ficou para trás em relação a Adão e a Eva na história do pecado, porque se antecipou a eles e os ultrapassou na plenitude da graça.
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Maria, a Mulher mais jovem do que o pecado. Artigo de Michele Giulio Masciarelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU