03 Junho 2016
Confundir o dom, o dever e o direito, e impor o dom como um dever é o resultado distorcido de um "desmemoriamento" teológico. Justamente, esse é o "grave esquecimento" que aflige uma parte nada irrelevante da sacramentária matrimonial dos últimos 50 anos, e que a Amoris laetitia tenta corrigir.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 29-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Algumas passagens da exortação apostólica Amoris laetitia, nas quais a doutrina sacramental sobre o matrimônio é tornada objeto de uma cuidadosa reflexão, podem se tornar bastante úteis para compreender a perspectiva de leitura que o documento oferece do perfil propriamente sacramental do matrimônio.
Tentemos considerar, com um mínimo de amplitude, a questão nos seus contornos clássicos, que muitas vezes passam despercebidos.
a) Uma perspectiva abrangente sobre a "mística nupcial"
Com efeito, tentando avaliar a evolução da doutrina matrimonial das últimas décadas, não é difícil notar uma espécie de "aceleração" do pensamento sobre o matrimônio, que encontrou um bom impulso no Concílio Vaticano II, extraindo dele uma nova e poderosa correlação entre matrimônio e eucaristia.
Essa deve ser considerada como uma das características novas e promissoras da reflexão teológica do último século, que, no entanto, um bom teólogo inglês como Fergus Kerr – no seu texto de 2007 (Oxford, Blackwell) sobre os Teólogos católicos do século XX, que tem como subtítulo "Da neoescolástica à mística nupcial" – reconheceu como caracterizado por uma "mística nupcial", que condicionou fortemente todo o saber teológico, incluindo também – obviamente – o "saber matrimonial".
Certamente, não é surpreendente que uma teologia geral que assume os movimentos de uma "mística nupcial" possa estender esse seu "estilo" também ao sacramento do matrimônio. Mas, como diria outro bom teólogo do nosso tempo, não é nada evidente que o que parece "óbvio" também seja "compreendido".
Com efeito, e talvez contra as nossas melhores expectativas, descobrimos que uma acurada diferenciação entre uma "mística nupcial" e o "sacramento do matrimônio" aparece como uma das mais preciosas aquisições da tradição teológica latina, que conhece há ao menos oito séculos a irredutível complexidade da "humana generatio" e da "individua coniunctio". Tento agora examiná-la brevemente.
b) A tradição latina e o seu "gênio": como compor desejo natural, lei civil, mistério da fé
Justamente nesse nível, de fato, elaboramos, ao menos há 800 anos, um "saber teológico complexo" sobre o matrimônio, que considera ao menos três níveis da experiência, que não podem ser nem separados nem confusos: o matrimônio existe como "desejo natural" no qual, já simplesmente como "matrimônio criatural", estão presentes todos os valores e os mistérios fundamentais na sua qualidade de "sinal"; o matrimônio existe, além disso, como pacto social, como contrato, como relação civil, orientada e protegida por leis e por convenções, por culturas e por linguagens, por textos e por músicas: construção cultural e social humana, em resposta a natureza e graça; em terceiro lugar, o próprio matrimônio é relido como um grande dom de graça, realização da imagem de Deus, aliança entre Cristo e a Igreja, serviço e anúncio do Evangelho.
Tudo isso, justamente, na tradição cristã e, em particular, na tradição católica latina, foi conservado zelosamente, até o século XIX. A partir do fim de 1800, o catolicismo foi tentado por uma solução oposta: ou de reduzir tudo ao nível "normativo", ou de sintetizar tudo ao nível místico, perdendo a riqueza dessa pluralidade complicada.
Por um lado, a "lei canônica" tentou se colocar, a partir de 1917, como "lógica absoluta" – exceto pela necessidade de "concordatas" com outras autoridades competentes; por outro, a teologia tentou derivar o matrimônio imediatamente da eucaristia, sem qualquer mediação histórica, consciencial, normativa, pedagógica... O matrimônio devia simplesmente "aplicar" a relação Cristo/Igreja à lógica do casal/família. Ou, melhor, justamente mediante essa aceleração suspeita da mente especulativa – e da competência prática –, chegava-se a reivindicar que o matrimônio fosse simplesmente a "imagem completa da relação Cristo-Igreja". Dizer sacramento significava dizer "sinal perfeito" e "analogia completa".
Não faltavam, na história, os precedentes para esse "modelo interpretativo": em particular, podia-se encontrar uma linha que, há muitos séculos, tinha feito do "matrimônio" o "primeiro" entre os sacramentos, embora – como Tomás de Aquino tinha especificado – isso podia ser dito apenas nos limites da "ratione significationis", ou seja, de acordo com a lógica e a modalidade do sinal (mas não da causa!). E está aí a grande diferença que devemos agora salvaguardar: a eucaristia realiza imediatamente aquilo que significa, mas não é assim para o matrimônio (e nem mesmo para todos os outros sacramentos, exceto o batismo e a crisma, que são pressuposto eficaz da vida eucarística).
c) Amoris laetitia corrige o excesso de uma confusão sem distinção
A Amoris laetitia corrige justamente as distâncias dessa aceleração maximalista e fundamentalista na doutrina matrimonial, que pretenderia abolir a diferença entre matrimônio e eucaristia. E faz isso com uma dupla estratégia.
Por um lado, de fato, volta a pensar a "complicação da realidade conjugal", sem impor ideologicamente um modelo extrínseco a ela. Essa primeira escolhe também impõe uma conjugação menos apriorística da própria realidade sacramental em relação à experiência dos sujeitos. Tudo isso implica a redescoberta de uma acurada "mediação" – histórica, consciencial e cultural – da passagem entre o "modelo" e a "realidade". Em outras palavras: o amor gratuito e total que une Cristo e a Igreja se faz "sacramento". Esse é um ponto estabelecido da doutrina católica, que não é posto em discussão.
Mas a "correspondência" entre os diversos "graus" de o sacramento não pode ser estabelecida de modo simplista ou, pior, de modo mecânico e extrínseco em relação às vidas dos sujeitos. Portanto, não se pode proceder como se, pelo próprio fato de reconhecer o matrimônio como "sacramento", isso implicasse uma imediata coerência e correspondência dele com a lógica do "sacramento mais importante" – ou seja, a comunhão eucarística. Como se, entre matrimônio e eucaristia, houvesse simplesmente uma lógica da identidade. Como se o matrimônio fosse "sinal perfeito" e "analogia completa" da relação entre Cristo e a Sua Igreja, em plena correspondência com a eucaristia.
Aqui não é difícil encontrar uma "imperfeição" nada pequena da nossa tradição mais recente. Aqui, como dizia o grande teólogo Karl Barth, "há casos em que uma diferença sutil como um fio de cabelo deve ser salvaguardada, para não cair, da verdade, no erro". Se perdermos essa diferença e conjugarmos irresponsavelmente mística nupcial e formalismo normativo, geramos um "monstruum" sistemático, que, em nome da idealização de uma relação abstrata, agride a realidade familiar e a desfigura, além disso, em nome do Evangelho. Sinal e causa – plenamente alinhados na simbólica do sacramento da Eucaristia – não estão alinhados, de fato, na realidade existencial do matrimônio.
Confundir o dom, o dever e o direito, e impor o dom como um dever é o resultado distorcido desse "desmemoriamento" teológico. Justamente, esse é o "grave esquecimento" que aflige uma parte nada irrelevante da sacramentária matrimonial dos últimos 50 anos, e que a Amoris laetitia tenta corrigir, justamente, como veremos no próximo parágrafo.
d) Dois textos de extrema importância: AL 72-73
Justamente nesse "pináculo" da nossa reflexão – ou seja, a correlação entre sacramento da eucaristia e sacramento do matrimônio, que deve salvaguardar tanto a unidade sem confusão, quanto a distinção sem separação – o texto da Amoris laetitia fornece duas leituras de grande valor.
Eis o seu texto, que reproduzo na íntegra do capítulo III, destacando em negrito duas frases decisivas:
72. O sacramento do matrimônio não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo de um compromisso. O sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque 'a sua pertença recíproca é a representação real, através do sinal sacramental, da mesma relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar'. [1] O matrimônio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto de um discernimento vocacional.
73. 'O dom recíproco constitutivo do matrimônio sacramental está enraizado na graça do batismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a graça de Cristo, os noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à vida, e também reconhecem como elementos constitutivos do matrimônio os dons que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimônio como compromissos que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento. (...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da família inteira, que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus'. [2] O sacramento não é uma 'coisa' nem uma 'força', mas o próprio Cristo, na realidade, 'vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimônio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro'. [3] O matrimônio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos esposos. Quando se unem numa só carne, representam o esponsal do Filho de Deus com a natureza humana. Por isso, 'nas alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do Cordeiro'. [4] Embora 'a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja' seja uma 'analogia imperfeita', [5] convida a invocar o Senhor para que derrame o seu amor nas limitações das relações conjugais.
Em ambos os textos, o anúncio do Evangelho na lógica do casal e da família não cai na fácil tentação de uma leitura imediata, identificativa, institucional, objetiva, "idealizante" – e, por isso, também, inevitavelmente agressiva – da realidade relacional do matrimônio e da família.
O pior que pode acontecer à tradição matrimonial é se deixar levar e induzir a traduzir a mística em agressividade. A imperfeição do sinal e da analogia – e, portanto, o espaço reconhecido e garantido à fragilidade e à falibilidade – não deve ser adicionada como um acessório externo e estranho, mas se manifesta como parte constitutiva daquele sacramento que a grande tradição antiga, medieval e moderna pôde pensar com mais liberdade do que nós, sem sentir aquela pressão institucional que apareceu ainda com o Concílio de Trento, mas que se tornou opressora e paralisante apenas a partir do surgimento dos Estados liberais modernos.
Diante deles, a tentação da Igreja Católica foi assumir um matrimônio idealizado, imputando todas as fragilidades familiares não à complexidade da nova experiência conjugal, mas à iniquidade dos tempos.
Mas isso só foi possível apagamento da memória todos aqueles séculos anteriores, que tinham sido marcados por uma doutrina e por uma disciplina que tinha sopesados cuidadosamente os diversos níveis da experiência conjugal e familiar, sem ter necessidade nem de opô-los entre si ou de reduzi-los uns aos outros.
Tomás podia dizer, com tranquilidade, na sua Summa contra Gentiles, que a "humana generatio ordinatur ad multa": ou seja, que somos gerados, no mesmo momento, para a natureza, a cidade e a Igreja. Eis reevocada e reatualizada a maravilhosa complicação do matrimônio.
e) Uma hermenêutica da Amoris laetitia que não seja incoerente com o texto
A lição da Amoris laetitia é, também neste caso, o sinal de uma grande reviravolta, de linguagem e de concepção. E não é por acaso que hoje os tons mais estridentes nas reações e as notas que se destacam mais acima das linhas vêm precisamente de ambientes acadêmicos e de escritórios administrativos em que, d modo não raramente bastante exagerado, a redução do matrimônio ou à mística nupcial ou à forma dogmático-jurídica tinha recebido, nas últimas décadas, a promoção mais obstinada e a argumentação mais acrítica.
A Amoris laetitia reconduz todos – com elegância – a um julgamento sereno e equilibrado sobre o amor, sobre o matrimônio e sobre a família, não aceitando mais nenhuma forma de reducionismo, de maximalismo nem de fundamentalismo: agora não podemos mais nos reduzir nem ao minimalismo da forma dogmático-jurídica nem ao maximalismo da mística nupcial.
O sacramento do matrimônio nunca está apenas nem naquele mínimo formal de exterioridade devida, nem naquele máximo místico de interioridade "interiores intimo meo". Ele vive de uma exterioridade virtuosa e de uma interioridade formada que não se dão "por si sós" e que não são cobertas pelo "ex opere operato".
Essas "falsas soluções do problema" sempre acabam piorando as coisas, porque não reconhecem a sua complexidade e contingência. Em vez disso, aceitando a contingência da relação, sem demonizá-la – como fazem os ideólogos intransigentes – e sem hipostasiá-la – como fazem os funcionários zelosos – a Amoris laetitia faz uma pequena revolução.
E, de fato, não é por acaso que o texto da exortação apostólica encontra agora o desfavor coalizado de funcionários que olham apenas para o passado e de ideólogos com um pé e três quartos já imerso na solenidade novíssima do juízo final. E entre aqueles que pontificam o máximo possível, e rasgam as vestes pelo destino da Igreja, e denunciam uma confusão insuportável – como se a ordem correspondesse necessariamente à indiferença – sempre desperta uma certa impressão descobrir que é justamente o pontífice, ao contrário, que evita cuidadosamente todas essas falsas soluções.
Em meio a funcionários e a ideólogos que, sobre o matrimônio, em vez de distinguir e discernir, não sabem fazer mais nada do que pontificar, move-se um pontífice que não "pontifica", mas que exerce a autoridade no ato de reconhecer outras autoridades: aqui, a realidade – embora com todas as suas sombras e as suas rugas – é realmente superior à mais perfeita das ideias.
Notas:
1. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de novembro de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94.
2. Relatio Synodi 2014, 21.
3. Catecismo da Igreja Católica, 1.642.
4. Ibidem.
5. Francisco, Catequese (6 de maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 7/V/2015), 20.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": matrimônio como "sinal imperfeito". Fineza e grosseria de "analogias sacramentais". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU