Por: Cesar Sanson | 25 Janeiro 2016
"Não consigo deixar de pensar no absurdo que é uma dona de casa não ser considerada útil num sistema econômico. É como se os grandes executivos e tomadores de decisões não precisassem nunca de alguém a lhes garantir uma casa organizada, a olhar pelas crianças e idosos". O comentário é de Amélia Gonzales em artigo no G1, 24-01-2016.
Eis o artigo.
Números nunca foram o meu forte. Servem para atrair a atenção dos leitores, eu sei. Mas também afastam qualquer possibilidade de singularizar aquilo que se quer descrever. Começo este texto compartilhando com vocês, amigos leitores, essa minha esquisitice com os numerais, mas vou me render a eles nesse instante para refletir sobre um dos maiores desatinos que nossa civilização enfrenta, a crise dos refugiados. A cada dia eles são em maior número, e fico angustiada porque é claro que por trás de cada um desses números há uma história que nada fica a dever à do pequeno Aylan, menino sírio que em setembro do ano passado morreu na travessia do mar Egeu entre Turquia e Grécia, cuja foto abalou o mundo.
Somente nesta sexta-feira (22), segundo reportagem do jornal The Guardian, pelo menos 40 pessoas, incluindo 17 crianças, morreram depois de seus barcos afundarem perto de duas ilhas gregas. O registro do jornal diz que a guarda costeira recolheu 34 corpos e resgatou 26 pessoas com vida. Ainda não se sabe quantas desapareceram, mas há notícia de que pelo menos cem pessoas estavam em dois barcos.
E lá vêm os números: nas últimas 24 horas, segundo a Organização Internacional para a Migração, 113 pessoas já morreram dessa maneira no Mar Mediterrâneo, e este mês já está sendo chamado de “janeiro mortal” pela instituição. Essa mania que se tem também de não só colecionar números como apelidar os fenômenos para que fiquem de mais fácil entendimento ao senso comum. Um caos mais organizado.
Enquanto isso, no Fórum Econômico Mundial, evento que está reunindo 2500 participantes de 99 países na cidade suíça de Davos para discutir sobre negócios, a questão dos refugiados está recebendo atenção. Não exatamente como questão humanitária somente. Porque esses migrantes, ao serem obrigados a se deslocar de seus territórios, quer porque não suportam mais viver sob regime de guerra constante, sob comando de ditadores cruéis, quer seja porque foram excluídos do sistema econômico onde vivem e vão tentar mais sorte em outras praças, elas também carregam consigo problemas que os países para onde se movem não estavam contando. Nesta sexta-feira, no jornal Valor Econômico, o economista norte-americano Robert J. Shiller, Prêmio Nobel de 2013, conta que, como presidente da Associação Americana de Economia para 2016, está pesquisando a questão dos refugiados também sob o aspecto econômico.
Pois não é que, diferentemente do que se tem ouvido a respeito do impacto dos refugiados sobre o fluxo econômico das regiões, um pesquisador do Banco Central da Turquia, Semih Tumen, apresentou um estudo provando que a entrada de pessoas num país pode estimular a economia? Shiller também ouviu sugestões, como a de Susan Martin, da Universidade de Georgetown, que defende um marco de proteção para os refugiados.
Mas foi o economista Jeffrey Sachs, conselheiro das Nações Unidas, que em março do ano passado esteve no Brasil lançando a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável que me fez puxar da memória um dos depoimentos mais contundentes que ouvi num documentário. Já explico. Sachs se preocupa com a maneira pela qual as normas de um novo sistema para gerir a questão dos refugiados possam moldar as economias mundiais a longo prazo. Em outras palavras: se os países passarem a abrir as portas apenas para refugiados que tenham cérebros brilhantes, as de baixa qualificação, desesperadas para se verem livres de uma situação de exclusão, não terão para onde correr.
No documentário Climate Refugees, de 2010 (veja o trailer aqui), quando os refugiados pelas mudanças do clima já se contavam em 25 milhões, uma mulher de 45 anos dá um depoimento à equipe de filmagem que nunca mais me saiu da cabeça. Ela mora em Tuvalu, uma das nações-ilha do Pacífico fadada a desaparecer caso o mar avance ainda mais e que hoje já enfrenta privações porque uma parte de seu país não serve para a agricultura já que a água do mar se misturou à terra. Os filhos dela estavam conseguindo entrar na Nova Zelândia, mas ela não preenchia os requisitos necessários para a migração porque era dona de casa e não tinha qualquer qualificação profissional: “Estão me condenando à morte”, dizia ela.
Sem querer sair do assunto, não consigo deixar de pensar no absurdo que é uma dona de casa não ser considerada útil num sistema econômico. É como se os grandes executivos e tomadores de decisões não precisassem nunca de alguém a lhes garantir uma casa organizada, a olhar pelas crianças e idosos. Enfim.
No mesmo artigo de Robert Shiller há uma tentativa de compreensão para o motivo que leva as pessoas a buscarem asilo em outros cantos. E faz menção a um dos argumentos muito em voga contra a permissão à entrada de pessoas nas nações. Aqueles que estão desesperados, segundo uma efêmera análise dos estudiosos desses fluxos humanos, buscam países perto de suas atuais moradas para se refugiar. Já os que querem sair de uma crise financeira, podem ir mais longe, buscam asilo em regiões ricas. Dessa forma, o mundo está agora exercendo pressão sobre o legítimo direito que os humanos têm, milenar, de se tornarem nômades para se livrarem de desconfortos.
Voltando ao Fórum Econômico Mundial, que acabou neste sábado (23) em Davos, houve pelo menos uma mesa-redonda com o foco específico na questão dos refugiados (veja aqui, em inglês) , onde quatro líderes da União Europeia falaram a respeito. Foi quando o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, mostrou-se indignado com os números de migrantes. Só nas três primeiras semanas de janeiro são 35 mil pessoas, um aumento absurdo considerando que no mesmo mês, no ano passado, foram 1.600. “E estamos no inverno, o que nos faz deduzir que na primavera esse número vai quadruplicar. Não podemos lidar com isso por mais tempo. Temos que ter um controle”, disse Rutte.
O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, sugere que os países com disponibilidade invistam dinheiro nas regiões que estão expulsando as pessoas. Quem sabe assim há de se arrumar um jeito para que cada um fique onde está. O Banco Central Europeu, representado agora por Mario Draghi, prefere pensar que há oportunidade nesse risco, mas para o futuro, sem explicar muito como.
Alexis Tsipras, primeiro-ministro grego, aponta o dedo para um problema circunstancial, mas grave: os traficantes de pessoas. Aqueles para quem os desesperados pagam, às vezes, tudo o que conseguiram juntar com a venda de suas coisas, para tentar uma saída. Às vezes conseguem, às vezes não. E os que conseguem vão dando esperanças aos que ficaram, impulsionando assim uma carreira criminosa que, segundo Tsipras, escancara uma “grande vergonha para a nossa cultura europeia comum e da nossa civilização”.
O tema do Fórum este ano é o que os organizadores chamam de “Quarta Revolução Industrial”, quando a internet e os dispositivos vão implicar na perda de 5 milhões de empregos nos próximos cinco anos. Faz tremer de medo. No entanto, mesmo com tão farta venda de dispositivos eletrônicos – o que contribui inclusive para que seis dos mais ricos do mundo estejam, de alguma forma, lucrando com o setor – há 4 bilhões de pessoas que não podem ainda ser listadas na categoria “on-line” por não terem condições para isso.
Entre esses 4 bilhões, é possível que estejam alguns dos refugiados que estão perturbando a paz, os negócios, no continente europeu. E criando uma crise civilizatória há muito anunciada.
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Número de refugiados só faz aumentar e revela uma crise civilizatória anunciada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU