Passaram-se mais de 20 anos desde a queda do muro de
Berlim, e, na
Europa, fala-se novamente de revolução. Algo está, de fato, se movendo também no "hemisfério de esquerda" do pensamento mundial. Essa é a tese apresentada pelo estudioso
Razmig Keucheyan na sua preciosa cartografia do pensamento crítico contemporâneo.
A reportagem é de
Teresa Pullano, publicada no jornal
Il Manifesto, 15-04-2011. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
Hémisphère gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques (Ed. La Découverte, 3.224 páginas) oferece um quadro precioso e articulado sobre o que está em jogo hoje para reconstruir um pensamento que recomponha a aliança entre elaboração teórica e lutas políticas.
Keucheyan se interroga sobre as condições da derrota, sobre o que resta dela e sobre quem são os novos sujeitos da emancipação. O tímido degelo atual segue a longa "glaciação" que atingiu o marxismo ocidental a partir dos anos 1980. Com o fechamento de qualquer possibilidade na
Europa, o pensamento crítico não só emigrou para a
América, mas se globalizou, abrindo-se para as elaborações provenientes dos quatro cantos do planeta. Mas o que aconteceu com os intelectuais que faziam parte da "nova esquerda", ou seja, aquele movimento que recusou a alternativa entre o socialismo real e o capitalismo?
Keucheyan os divide em seis categorias. Há os convertidos, ou seja, aqueles que, depois dos anos 1970, deixaram de elaborar um pensamento crítico (
Alain Finkielkraut ou
Pierre Rosanvallon, na
França;
Lucio Colletti, na
Itália); os pessimistas, que seguem o lema de
Frederic Jameson segundo o qual é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo (
Perry Anderson); os resistentes, que são aqueles que permanecem fiéis ao compromisso de tempos atrás:
Noam Chomsky,
Daniel Bensaïd e
Alex Callinicos entre outros.
Há também os inovadores, para os quais a hibridização é condição da criatividade, e são os mais numerosos:
Michael Hardt e
Toni Negri,
Silvia Rivera Cusicanqui ou
Paul Gilroy. Os especialistas colocam à disposição de um projeto político o seu saber especializado: um exemplo é
Vandana Shiva, física de formação e ecologista. Os dirigentes ocupam posições de destaque em um grupo político e são, portanto, mais semelhantes à tipologia clássica dos intelectuais marxistas. Essa categoria é a mais exígua: conta com o subcomandante
Marcos,
Alvaro Garcia Linera, vice-presidente da
Bolívia, e o falecido
Edward Saïd, de 1977 a 1991 membro do
Conselho Nacional Palestino (a assembleia legislativa da
OLP [
Organização para a Libertação da Palestina]).
Para Keucheyan, um dos pensamentos críticos mais influentes dos últimos anos é o ligado às teorias do império e da multidão de Toni Negri e Michael Hardt. Também graças às críticas negrianas, hoje se assiste a uma renovada reflexão sobre o imperialismo, com menos atenção para os fatores econômicos e mais para a dimensão política e cultural. Os trabalhos de
Leo Pantich e de
Robert Cox vão nessa direção.
Um dos nós é o do papel dos Estados nacionais: são ainda os principais atores do jogo político ou foram ultrapassados por órgãos internacionais?
Benedict Anderson usa a história colonial para jogar uma nova luz sobre a nação, comunidade imaginada além de um conjunto de instituições. Na Europa, essa reflexão é levada adiante por filósofos como
Étienne Balibar e
Jürgen Habermas.
A análise das várias formas de capitalismo está no centro das teorias críticas contemporâneas, com os trabalhos de
Giovanni Arrighi,
Robert Brenner e
David Harvey, aos quais se associam as ideias de capitalismo fóssil de
Elmar Altvater, que estudam as relações entre capitalismo e ecologia.
Tarefa do pensamento crítico contemporâneo é o de entender quem é hoje o sujeito de uma revolução possível, uma vez decaída a centralidade da classe operária.
Jacques Rancière e
Alain Badiou, na
França, e o esloveno
Slavoj Zizek se concentram sobre a possibilidade de emancipação dos sujeitos das democracias ocidentais.
O pós-feminismo de
Judith Butler,
Gayatri Spivak e
Donna Haraway prolonga a investigação sobre a diferença de gênero com os instrumentos do pós-estruturalismo de
Foucault, com os estudos pós-coloniais e a condição das mulheres nas periferias do mundo e, enfim, com a análise das novas tecnologias, como o trabalho da filósofa norte-americana Haraway que conecta a subordinação das mulheres à da natureza e à pesquisa sobre os ciborgues.
A questão da identidade substituiu as velhas categorias de estrutura e de classe social, como demonstram os trabalhos de
Alex Honneth,
Nancy Fraser e
Ernesto Laclau, dentre outros. O conceito de classe é hoje revisitado e atualizado pelos trabalhos de
David Harvey, segundo Keucheyan um dos mais refinados pensadores críticos contemporâneos. Para Harvey, a classe hoje se constrói também em relação com o espaço e a cidade. O bairro é, desse modo, a nova fábrica, e os espaços populares das metrópoles são também potenciais espaços de resistência. Como se pode entender da riqueza das referências, está, talvez, abrindo-se uma época fértil para as teorias críticas.
Keucheyan indica, enfim, vários pontos ao redor dos quais é possível se concentrar: a questão estratégica, a ecológica e a pós-colonial. Deve-se procurar reativar uma racionalidade estratégica. Seguindo a fórmula de
Balibar, o grande encontro fracassado do século XX foi talvez o entre os dois maiores teóricos e práticos da revolução,
Lênin e
Gandhi. Um encontro que permitiria conjugar a tática revolucionária com a dimensão simbólica da não violência.
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Descontinuidade e continuidade do pensamento crítico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU