A medicalização da vida faz mal à saúde. Entrevista especial com José Roque Junges

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26 Mai 2013

A partir da obra de Ivan Illich, o pesquisador pondera que a medicalização torna a saúde e a doença realidades heterônomas, uma vez que retira a responsabilidade e o protagonismo do processo da cura e da qualidade de vida do usuário para entregá-lo à expertise técnica.

“A medicina está sendo reconfigurada e ressignificada a serviço dessa grande revolução biopolítica-econômica-cultural de apropriação da vida. A medicalização da vida só é compreensível em sua profundidade e amplidão, tendo presente esse contexto científico cultural com suas crescentes repercussões bioeconômicas, possibilitadas pelo mercado das biotecnologias”. A afirmação é do filósofo e teólogo José Roque Junges na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.

Ele destaca que para Ivan Illich a melhoria da saúde não depende da medicina, mas da melhoria da alimentação e do saneamento. “As intervenções médicas só aparecem em terceiro lugar e ligadas mais à cura da doença do que verdadeiramente à promoção da saúde”, adverte.

E acrescenta: “Níveis melhores de saúde na população não dependem primordialmente de intervenções médicas, mas de outras ações intersetoriais que criam as condições ambientais para a reprodução social da vida e para a potencialização de uma vida com qualidade. Illich diria que a medicalização da vida e o excessivo poder médico fazem mal à saúde, porque impedem que as pessoas assumam com autonomia e autocuidado apoiado a sua situação, já que saúde significa essencialmente capacidade de reação e os terapeutas estão a serviço dessa capacidade reativa de autocuidado”.

José Roque Junges (foto), jesuíta, é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, possui mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Tem experiência na área de Teologia, Filosofia e Ética, com ênfase em Bioética. Entre seus livros publicados citamos Bioética: perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental (São Paulo: Loyola 2001); Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004); e Bioética: hermenêutica e casuística (São Paulo: Loyola, 2006). Atualmente é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De modo geral, quais os desafios quando pensamos no processo atual de medicalização da vida? O que implica do ponto de vista social, a apropriação dos modos de vida do homem pela medicina?

José Roque JungesNiklas Rose, em sua obra Politics of Life Itself. Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty-First Century (Princeton University Press, 2007), afirma que a vida está atravessada por cinco grandes mutações científico-culturais que determinam na contemporaneidade a concepção da saúde e da vida e a sua consequente apropriação pela medicina:

1) a molecularização da vida, segundo a qual ela é entendida como processos moleculares e não mais molares, permitindo a sua transformação e manipulação;

2) otimização da vida, pois as intervenções moleculares permitem o seu melhoramento biológico e a sua excelência vital;

3) subjetivação da vida, possibilitada pelas intervenções de otimização, oportunizando que a vida seja configurada pelos desejos da subjetividade e fazendo surgir uma ética somática e uma cidadania biológica;

4) a necessidade da expertise somática (de geneticistas, especialistas em reprodução humana, terapeutas de células tronco, aconselhadores genéticos e bioeticistas) para assessorar essa otimização e subjetivação da vida; por fim a economia da vitalidade, porque a vida adquire um biovalor, configurando um biocapital que move uma crescente bioeconomia representada pelas grandes corporações farmacêuticas e biotecnológicas.

A medicina está sendo reconfigurada e ressignificada a serviço dessa grande revolução biopolítica-econômica-cultural de apropriação da vida. A medicalização da vida só é compreensível em sua profundidade e amplidão, tendo presente esse contexto científico cultural com suas crescentes repercussões bioeconômicas, possibilitadas pelo mercado das biotecnologias. A medicina não pode esquecer que ela é hoje atravessada por esses processos que são ao mesmo tempo científicos, culturais e econômicos de apropriação da vida com suas imensas possibilidades terapêuticas, mas ao mesmo tempo com suas grandes possíveis patologias, responsáveis pela crescente sensação de desumanização da medicina.

IHU On-Line – Qual a contribuição específica de Ivan Illich (1) aos estudos do termo
medicalização?

José Roque JungesIllich demonstrou que a melhoria da saúde da população não dependeu da medicina, mas da melhoria da alimentação e do saneamento. As intervenções médicas só aparecem em terceiro lugar e ligadas mais à cura da doença do que verdadeiramente à promoção da saúde. Esse fato aponta, segundo Illich, para as contradições do orçamento em saúde que em geral mede a melhoria da saúde pelo número de procedimentos médicos e de leitos hospitalares que são criados, determinando, por isso, as opções de gastos que são privilegiadas pelo gestor municipal. Níveis melhores de saúde na população não dependem primordialmente de intervenções médicas, mas de outras ações intersetoriais que criam as condições ambientais para a reprodução social da vida e para a potencialização de uma vida com qualidade.

Illich diria que a medicalização da vida e o excessivo poder médico fazem mal à saúde, porque impedem que as pessoas assumam com autonomia e autocuidado apoiado a sua situação, já que saúde significa essencialmente capacidade de reação e os terapeutas estão a serviço dessa capacidade reativa de autocuidado. Numa transição epidemiológica para situações onde imperam as condições crônicas e não mais tanto os eventos agudos essa constatação é fundamental. Só assim poderá ser efetiva a tão propalada educação em saúde, porque deixará de ser prescritiva e castradora para tornar-se agenciadora da potência de vida do usuário.

IHU On-Line – Que ferramentas conceituais Illich oferece aos movimentos contestatórios à medicalização?

José Roque Junges – Uma ferramenta central da concepção de Illich é o conceito de doença iatrogênica, que é a patologia que não existiria se o tratamento aplicado não fosse o que as regras da profissão médica recomendam. Engloba todas as condições clínicas, das quais os medicamentos, os profissionais e os hospitais são os agentes patogênicos. Essa doença é provocada pela iatrogênese clínica, que é a multiplicação dos efeitos secundários, mas diretos da terapêutica aplicada que expropria o detentor da sua saúde, entregue ao total domínio do médico, medicalizando a vida e despotencializando o usuário de sua energia vital.

Essa iatrogênese clínica produz uma iatrogênese social, que são os efeitos socioculturais dessa medicalização, criando um imaginário social no povo de total dependência e incapacidade de usar os recursos terapêuticos que a sua própria cultura sempre ofereceu e que tinham uma força simbólica de cura, para entregar-se totalmente à empresa médica que o destituiu culturalmente de sua capacidade de autonomia reativa e de autocuidado. Essa análise aponta para aquilo que Illich chamou de iatrogênese estrutural, identificada com a colonização médica da saúde humana que é a causa da crescente medicalização da vida.
 
IHU On-Line – Como podemos compreender a abordagem de Illich sobre a hipertrofia da medicalização na modernidade? Em que medida ela interfere na redução da autonomia dos sujeitos?

José Roque Junges – Para Illich, a saúde supõe a capacidade de assumir a responsabilidade pessoal diante da dor, da infelicidade e da morte. Portanto saúde é autonomia para se autorrefazer a partir de recursos do seu ambiente de vida. Nesse sentido, a saúde está essencialmente ligada à cultura, identificando-se com a capacidade do grupo de reagir diante da fragilidade e enfrentar o seu meio. Cultura é o casulo que permite situar-se no nicho para sobreviver.

Toda cultura é uma das formas possíveis de viabilidade humana. Cultura é o regulamento da luta para sobreviver. O código cultural serve de matriz para o equilíbrio externo e interno da pessoa. Cria um quadro de referência para situar-se e encontrar sentido para as manifestações de fragilidade. Portanto, a cultura possibilita e serve de base para a autonomia.

Para Illich, esse poder gerador de saúde, inerente a toda cultura tradicional, está ameaçado pela mentalidade criada pela medicalização que expropria as pessoas dessa capacidade de encontrarem recursos simbólicos em sua cultura autóctone para lidar com tudo o que ameaça o seu equilíbrio existencial. A medicalização torna a saúde e a doença realidades heterônomas porque expropria a responsabilidade e o protagonismo do processo da cura e da qualidade de vida do usuário para entregá-lo à expertise técnica.

IHU On-Line – O que representa para um sujeito o fato de as instituições médicas assumirem a responsabilidade de cuidar da sua dor, transformando seu significado íntimo e pessoal em um problema técnico?

José Roque Junges – A instituição médica prega a eliminação da dor, das anomalias e da morte por meios técnicos, não permitindo uma superação autônoma pela trans-significação. O ritual médico e o mito correspondente da saúde perfeita constituem atualmente a Simbólica, produtora de sentido para superar qualquer limite ou sofrimento, mas ela acontece pela técnica heteronômica, não permitindo um trabalho interior de ressignificação autônoma. Nas culturas tradicionais, a sua função higiênica está na capacidade de sustentar cada ser humano confrontando-o com a dor, o sofrimento e a morte.

A instituição médica assume a gestão da fragilidade, mutilando e paralisando a possibilidade de interpretação e reação autônoma do indivíduo em confronto com a precariedade da vida. O servilismo crescente em relação à terapêutica, incentivado pela medicalização da vida, afeta o estado de espírito coletivo. Perde-se a confiança na força própria de recuperação o sentimento de ser responsável por essa força e a confiança na solidariedade do próximo. O resultado é uma regressão estrutural do nível da saúde.

IHU On-Line – Qual a peculiaridade da abordagem de Foucault  sobre a medicalização a partir da noção de biopoder e de governamentalidade?

José Roque JungesFoucault deu origem ao conceito de biopoder, entendido como gestão da vida, fenômeno político que teve o seu início no final do século XVIII e durante o XIX. Nessa época o Estado começou a se preocupar com a saúde da população, inaugurando a medicina social em suas duas vertentes: a anátomo-política de disciplinamento do corpo a serviço do rendimento no trabalho, como uma exigência do sistema capitalista e a biopolítica de regulação da população referida ao corpo-espécie pelos controles do nascimento, mortalidade, longevidade e saúde da população, assumidos pelo biopoder do Estado.

As disciplinas do corpo e as regulações da população são as duas estratégias de biopolítica desenvolvidas pelo poder sobre a vida. Assim, a função do poder do Estado não é mais matar, como acontecia antes dos tempos modernos, mas investir sobre a vida. A velha potência da morte do poder soberano é substituída pela administração dos corpos e a gestão calculista da vida. Passou-se da disciplina ascética dos corpos dentro de instituições de ordenamento como escola, prisão, manicômio para uma regulação sanitarista que atinge a inteira sociedade pelo controle da população. Essas primeiras análises de Foucault aparecem na obra “Historia da sexualidade” (volume I), onde biopoder e biopolítica são praticamente sinônimos e expressam disciplinamento e controle.

Normatização interior

Numa obra posterior, intitulada Nascimento da biopolítica, Foucault refina mais o conceito pelo qual biopoder e biopolítica não são mais sinônimos. O primeiro continua tendo o sentido de estruturas de poder sobre a vida, mas biopolítica expressa dinâmicas políticas de governamentalidade, desenvolvidas pelo biopoder, para o bem da população. Aqui não se trata mais de um disciplinamento exterior, mas de uma normatização interior, que a própria população termina por introjetar como saúde e assume como sendo um valor. Em outras palavras, o biopoder que não é apenas o Estado, mas também o poder econômico das biotecnologias que desenvolvem políticas de normatização a serviço de uma melhoria e otimização da saúde. Mas biopolítica significa também as dinâmicas de potencialização da vida que os próprios usuários e cidadãos inventam e empregam para fugir dessa normatização.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que a medicalização da vida é consequência de uma biopolítica de apropriação e de normatização da vida pelo poder médico, propalada como produtora de saúde e de qualidade de vida. A crescente proliferação das terapias alternativas apresenta-se também como dinâmica biopolítica, contra essa medicalização e normatização da saúde que é propagada pelos agenciamentos semiotecnológicos das biotecnologias.

IHU On-Line – Em que sentido as reflexões de Canguilhem (2) sobre as fronteiras entre o normal e o patológico podem contribuir para os debates contemporâneos a cerca da medicalização da saúde e da vida?

José Roque Junges – Para Canguilhem, o normal em saúde é a flexibilidade de uma norma que não é universal, mas se transforma em relação às condições individuais de cada um. Por isso o limite entre o normal e o patológico é impreciso para indivíduos considerados universalmente, mas perfeitamente preciso para um único indivíduo. O normal, apesar de normativo, pode ser patológico em situações diversas, pois têm normas diferentes, dependendo do indivíduo. Portanto, o estado patológico ou anormal não é consequência da ausência de qualquer norma, porque a doença também é uma norma de vida, embora inferior. A pessoa doente está normatizada em condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa para diferentes situações.

Saúde, para Canguilhem, é justamente a capacidade de estabelecer a norma para um indivíduo, isto é, de definir o que é normal para essa pessoa, e a doença é a diminuição dessa capacidade, mas o enfermo não deixa de estabelecer a sua norma em condições diminuídas. Assim, normal e patológico não são condições antagônicas num indivíduo, porque a norma, e consequentemente o normal, é justamente definida em relação ao que desequilibra patologicamente nessa situação particular. Em outras palavras, cada um define para si o que é normal, tendo presente a singularidade da sua condição.

A medicalização da vida ao propor uma normatização universal impede que o indivíduo tenha a capacidade de definir o normal para sua situação particular. A busca de medicamentos individualizados a partir de pesquisa genética pretende responder a essa crítica, mas ela está baseada numa visão redutiva, porque restringe a doença e a saúde a denominadores biológicos e genéticos, esquecendo que o ser humano é essencialmente biocultural. A capacidade de definir a norma de saúde para si mesmo, seguindo a trilha de Canguilhem, é um processo biopsico-simbólico, apontando para a sua complexidade. A medicalização normativa da vida é uma simplificação que faz mal à saúde.

Nota: A fonte da imagem que ilustra esta página é http://migre.me/eJvcN

Notas da IHU On-Line

1.- Ivan Illich (1926-2002): pensador e polímata austríaco. Foi autor de uma série de críticas às instituições da cultura moderna. Escreveu sobre educação, medicina, trabalho, energia, ecologia e gênero. Pensador da ecologia política, foi uma figura importante da crítica da sociedade industrial. Confira a edição 46 da revista IHU On-Line, de 09-12-2002, intitulada Ivan Illich, pensador radical e inovador, disponível em http://bit.ly/Z51QjA.

2.- Georges Canguilhem (1904-1995): filósofo e médico francês. Especialista em epistemologia e história da ciência, publicou obras importantes sobre a constituição da biologia como ciência, sobre medicina, psicologia, ideologias científicas e ética, notadamente Le normal et le pathologique e La connaissance de la vie. Discípulo de Gaston Bachelard, inscreve-se na tradição da epistemologia histórica francesa e terá uma notável influência sobre Michel Foucault. Sua tese principal é de que a vida não pode ser deduzida a partir de leis físico-químicas, ou seja, é preciso partir do próprio ser vivo para compreender a vida. Assim, o objeto de estudo da biologia é irredutível à análise e a decomposição lógico-matemática.

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A medicalização da vida faz mal à saúde. Entrevista especial com José Roque Junges - Instituto Humanitas Unisinos - IHU