06 Julho 2010
Um projeto que já tinha sido cogitado, mas totalmente desconsiderado, durante o governo FHC, volta "repaginado". Agora chamado de Brasil Investimentos, o Projeto Ômega visa transformar a Bolsa de Valores de São Paulo numa das referências mundiais no mercado de capitais, rivalizando com Nova York, Londres e Hong Kong. Mas, segundo o economista Guilherme Delgado, que concedeu a entrevista a seguir, por telefone, à IHU On-Line, este projeto é uma reminiscência de um projeto criado nos anos 1990 que tinha como ideia chave da abertura financeiro-global do sistema de reservas. "Agora estão querendo fazer aquele projeto de uma outra forma, ou seja, criando a conversibilidade do Real supervalorizado para virar, de fato, uma moeda de reserva. O que ele não é, claro", apontou.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual o histórico do Projeto Ômega?
Guilherme Delgado – O Armindo Fraga [1], que era presidente do Banco Central no governo FHC, cogitou, naquela época, uma reforma monetária que praticamente atrelaria o Brasil ao Dólar. Com isso, deixaríamos de ter uma moeda própria para assumir a moeda estadunidense. A tese de eliminação de moedas periféricas e a construção de uma ordem monetária dos países centrais é algo antigo que tentaram passar nos anos 1990 e que não vingou porque não tinha o menor fundamento. A própria crise cambial de 1999, quando veio e derrubou a paridade que se estabelecera até então, é uma prova de que não podemos ter essa vinculação a uma moeda externa como uma solução permanente aos problemas cambiais e monetários.
Quando li a análise sobre o Projeto Ômega, lembrei dessa história, ou seja, que ele é uma reminiscência que o Armindo Fraga tinha como uma ideia chave da abertura financeiro-global do sistema de reservas. Quando eu vi aquilo, pensei: “Agora estão querendo fazer aquele projeto de uma outra forma, ou seja, criando a conversibilidade do Real supervalorizado para virar, de fato, uma moeda de reserva”. O que ele não é, claro.
IHU On-Line – O ressurgimento desse projeto nesse momento pode ter alguma influência na sucessão presidencial?
Guilherme Delgado – Pode ser uma ideia que queiram estabelecer como uma espécie de parâmetro da sucessão, mas não é um assunto que o grande público vai entender e, portanto, influenciar em termos eleitorais. Esse é típico do jogo que se faz por fora para tentar criar condicionamentos misóginos do processo eleitoral. Nem os que são a favor, nem os que são contra tem como passar essa ideia para a opinião pública, porque o tema é abstrato demais.
Agora, o projeto tem implicações muito graves, porque com a atual estrutura de relações internacionais o Brasil voltou a ter um déficit em transações correntes de forma muito alta. Tivemos déficit em 2008 e 2009 e, em 2010, tende a ser muito mais alto. Déficits em conta corrente muito elevados são prenúncios de que alguma coisa tem que ser feita na política cambial e monetária sob pena de se caminhar para uma crise cambial. Esse tipo de solução que o Projeto Ômega está apresentando é conservadora de completa liberação financeiro-cambial ao custo de uma perda de competitividade industrial e de completa “commoditização” e “primarização” da economia.
IHU On-Line – A ideia do Projeto Ômega é transformar o Brasil no centro financeiro da América Latina. O Brasil tem condições de ser esse centro financeiro?
Guilherme Delgado – Uma coisa é a leitura, digamos assim, institucional e operacional. Desse ponto de vista, sim, pode. Estou colocando os problemas do ponto de vista da equação em termos de equilíbrio externo. A partir dessa ideia, o Brasil continua, hoje, tão dependente quanto era há dez anos dos fluxos de capitais. Portanto, como somos um país dependente, não podemos ser um centro financeiro porque isso pressupõe que tenhamos uma certa autonomia sobre o movimento de capital. Nós não somos isso. Um país que tem déficit em conta corrente da magnitude que nós temos, precisa resolver, portanto, o desequilíbrio externo nas transações econômicas. Aqui pode ser um espaço onde tem as bolsas de valores, alguma intermediação, mas ainda assim não tem autonomia global.
Isso é um non-sense fruto de uma certa jactância da política oficial que termina vendendo a ideia de que o Brasil está no melhor dos mundos, já superou tudo, tem uma reserva internacional muito alta, ou seja, que está tudo resolvido. Mas esse cenário é rigorosamente falso. O que aconteceu foi que mudamos nossa dependência. Ao invés de uma dívida externa alta, hoje temos uma dependência alta de ingresso do capital estrangeiro para fechar o balanço dos pagamentos. Essa é a verdade.
IHU On-Line – A que preço o projeto pode ser implementado?
Guilherme Delgado – Até onde sei a ideia de ultra-liberalização financeira, com renúncia da soberania monetária, leva a completa desindustrialização do país porque se valoriza ainda mais o Real, se incentiva fluxos de capital de toda natureza para cá, e o país se transforma num mega importador de tudo quanto é produto de consumo, de investimento etc. Não há como compatibilizar isso com um dinamismo exportador que seja suficiente para suprir todos esses pagamentos exigidos.
Portanto, teríamos uma economia dependente de ingresso de capital externo para solver o balanço de pagamento. Esse é o problema e para resolvê-lo é preciso fazer política industrial, política de controle de capitais e uma política que relance a exportação não apenas para o setor primário, mas também para serviços e indústria. Ou se faz isso, ou nos tornamos reféns das altas finanças e suas crises e instabilidades. Não é compatível, portanto, uma economia como a do Brasil, virar paraíso fiscal nem entrar nesse jogo de completa liberalização financeira.
IHU On-Line – Quem se beneficia desse projeto?
Guilherme Delgado – Esse é um projeto da alta finança, dos capitais que precisam transitar toda hora e a todo o momento em mercados globalizados, segmentos do setor financeiro. Também alguns segmentos do agronegócio que operam sob a ótica de que a primarização da economia seria uma espécie de antídoto ao problema da dependência externa. Não é um projeto de expansão de um capitalismo produtivo, mais ligado à atividade eminentemente de inversão real da economia. É um projeto bem lateral aos interesses econômicos nacionais e totalmente ligado à estratégia de especulação financeira.
IHU On-Line – Se o Brasil aprovar esse projeto haverá uma “superprodução de commodities”? Como isso muda a lógica do crescimento no país?
Guilherme Delgado – O Projeto Ômega requer uma mega-especialização na produção e exportação de bens primários de produtos agrícolas, mineiras, de produtos com baixa soma de valor adicionado industrial, mas que necessitam de recursos naturais. Esse é o jogo que está enredado nesse contexto. Isso porque são esses produtos que conseguem atingir certa competitividade externa, pois trabalham com recursos escassos no plano mundial e que precisam ser gerados.
O Brasil, ao assumir essa prioridade, põe-se totalmente de costas para a questão de progresso técnico, incorporação de valor adicionado na produção e passa a ser um grande provedor de bens primários para equilibrar a dependência dos capitais que ele precisa atrair com esse projeto. Eu não acredito que ele tenha futuro nem que vá caminhar como linha de orientação estratégica para o próximo governo. Essa é uma aposta que certos setores conservadores estão fazendo muito na base da incompreensão e da ignorância das consequências sociais, ambientais e econômicas que o projeto pode provocar.
Economicamente, como falei, as consequências são desindustrialização e primarização – que significa expulsão das exportações com valor adicionado industrial. Socialmente: haverá uma brutal concentração da renda e da riqueza, tanto do lado financeiro quando do lado do agronegócio as tendências são de muita concentração do capital. Ambientalmente sofreremos uma completa desconsideração com as regras e limites ecológicas, dado que o conceito de vantagem comparativa natural que está por trás das exportações primárias transforma a natureza em tabula rasa. Seria como se não tivéssemos floresta, recursos hídricos, biodiversidade. Tudo isso vai se transformar em commodities e a consequência é que o Brasil viraria, no futuro, um grande deserto ecológico, porque todos os recursos naturais teriam sido exportados para atender, a qualquer custo, essa dinâmica do capital.
Por isso, afirmo que o Projeto Ômega é algo sem sentido, do ponto de vista estratégico para o Brasil. Ele precisa ser discutido porque não está claro para a opinião pública. A reforma do Código Florestal atual, proposta do Aldo Rebelo [4] vai nessa linha, ou seja, de liberar “geral” as florestas, estadualizar e municipalizar controles para que eles não se tornem eficazes. Assim, ao invés de ver a floresta como bem público, passa-se a entendê-la como matéria-prima a ser utilizada na produção de commodities. É uma estratégia míope e, a meu ver, completamente equivocada.
IHU On-Line – Para o senhor, o que significa a posição contra do Brasil em relação à taxação dos fluxos de capitais internacionais?
Guilherme Delgado – Isso é um recuo em relação aquilo que o Brasil, ou pelo menos o governo do PT, defendeu nos Fóruns Sociais Mundiais. A taxa Tobin [3] é uma ideia de controlar os fluxos financeiros internacionais que se tornaram extremamente alavancados com a liberalização financeira. O controle pode ser feito pela tributação para se criar um fundo mundial de assistência aos países, aos cidadãos etc. A posição brasileira foi de que este assunto não interessa porque não precisamos desta solução. No fim, o G-20 não produziu novidade alguma em relação a essa recusa de consertar medidas mais articuladas e a gestão monetária, financeira e fiscal no plano mundial.
IHU On-Line – Como o senhor vê a comemoração do Brasil em relação ao fato de que a taxa global sobre instituições financeiras não ter sido inserida no comunicado da cúpula do G-20?
Guilherme Delgado – Esta foi a posição do ministro Mantega. Ele diz que o Brasil vai crescer muito e será pouco afetado pela desordem financeira global. Assim, para ele, cada um é dono de sua política, de suas medidas e nós estamos muito bem, obrigada. Essa é uma “visão de avestruz”. O fato de nós não termos sido afetados pela crise financeira global não significa que podemos caminhar sozinhos, à revelia de controle das ondas especulativas do capital global. Foi um mal momento, talvez, de apresentação de costura, de medidas mais fortes no sentido do controle do capital internacional. Agora eu não sei se essa proposta, que veio da Europa, era para valer, de forma que nunca podemos avaliar completamente se a recusa do Brasil foi apenas uma pirotecnia diplomática ou uma recusa estruturada num entendimento completamente claro do que seja, ou do que possa ser, os passos futuros de uma nova ordem fiscal e financeira internacional.
Notas:
[1] O economista Armínio Fraga Neto foi presidente do Banco Central do Brasil de março de 1999 a janeiro de 2003 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, é o principal acionista de um grupo de investimentos chamado Gávea Investimentos, além de ser membro do conselho de administração do Unibanco.
[2] Domingo Felipe Cavallo é um economista e político argentino. É lembrado pela Lei de Conversibilidade, plano econômico do governo Carlos Menem, do qual era Ministro da Economia, que consistiu na equivalência do peso argentino com o dólar estadunidense por lei. Em 2001 foi nomeado novamente Ministro da Economia pelo presidente Fernando de la Rúa, na tentativa de aplacar a recessão que teve início em 1999. As medidas tomadas foram extremamente impopulares, principalmente o "corralito", que previa restrição do saque de dinheiro das contas correntes.
[3] A Taxa Tobin é um tributo proposto pelo economista americano James Tobin, da Universidade de Yale, que incide sobre as movimentações financeiras internacionais de caráter especulativo. Tecnicamente, nos termos da legislação tributária do Brasil, a "Taxa Tobin" seria na verdade um imposto e não uma taxa, cuja alíquota, incidente sobre o valor das transações financeiras de curto prazo, deveria variar entre 0.1% e 0.25%.
[4] José Aldo Rebelo Figueiredo é jornalista e político brasileiro, membro do Partido Comunista do Brasil(PCdoB). É conhecido pela postura nacionalista, e por projetos como o de redução de estrangeirismos na língua portuguesa e o da reforma do Código Florestal Brasileiro.
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A volta do Projeto Ômega. Entrevista especial com Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU