15 Março 2024
"Em Rafah, 1,4 milhões de pessoas estão amontoadas em um espaço do tamanho do aeroporto de Heathrow, em Londres. É impossível imaginar o que poderia acontecer depois de um cessar-fogo", escreve Susan Abulhawa, escritora e ativista, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 06-04-2024.
O artigo foi escrito durante a visita de Susan a Gaza entre fevereiro e março. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Neste momento, são 20h em Gaza e na Palestina – o fim do meu quarto dia em Rafah e a primeira vez que consigo me sentar em um lugar tranquilo para refletir.
Tentei fazer anotações, tirar fotos, fazer imagens mentais, mas este é um momento grande demais para um caderno de anotações ou para a minha memória em dificuldade. Nada tinha me preparado para o que eu testemunharia.
Antes de cruzar a fronteira entre Rafah e o Egito, li todas as notícias provenientes de Gaza ou sobre Gaza. Não desviei o olhar de nenhum vídeo ou imagem enviado do território, por mais horrível, chocante ou traumatizante que fosse.
Mantive contato com amigos que relataram sua situação no norte, no centro e no sul de Gaza – cada área sofre de formas diferentes. Mantive-me atualizada sobre as últimas estatísticas, os últimos movimentos políticos, militares e econômicos de Israel, dos Estados Unidos e do restante do mundo.
Eu achava que tinha entendido a situação em campo. Mas não era assim.
Nada pode realmente preparar você para esta distopia. O que chega ao restante do mundo é uma fracção do que eu vi até agora, que é apenas uma fracção da totalidade deste horror.
Gaza é um inferno. É um inferno repleto de inocentes que buscam um pouco de ar.
Mas aqui até o ar está queimado. Cada inspiração irrita a garganta e os pulmões.
O que antes era vibrante, colorido, cheio de beleza, possibilidades e esperança contra todas as probabilidades, está envolto em uma escuridão de sofrimento e de sujeira.
Rafah é a parte mais meridional de Gaza, onde Israel amontoou 1,4 milhões de pessoas em um espaço do tamanho do aeroporto de Heathrow, em Londres.
Faltam água, alimentos, eletricidade, combustível e suprimentos. As crianças estão privadas da escola: suas salas de aula foram transformadas em abrigos improvisados para dezenas de milhares de famílias.
Quase cada centímetro do espaço anteriormente vazio está agora ocupado por uma frágil tenda que abriga uma família.
Não sobrou quase nenhuma árvore, porque as pessoas foram forçadas a cortá-las para obter lenha.
Não tinha notado a falta de vegetação até que me deparei com uma planta de primavera vermelha. Suas flores estavam empoeiradas e sozinhas em um mundo deflorado, mas ainda vivas.
A discrepância me chamou a atenção, e eu parei o carro para fotografá-la.
Agora procuro a vegetação e as flores aonde quer que eu vá, até agora nas zonas meridionais e centrais (embora se tornou cada vez mais difícil de entrar no centro). Mas há apenas pequenas manchas de relva aqui e acolá, e uma ou outra árvore à espera de ser queimada para cozinhar o pão para uma família que sobrevive com as rações da ONU de feijão enlatado, carne enlatada e queijo enlatado.
Um povo orgulhoso, com ricas tradições e costumes culinários baseados em alimentos frescos, foi reduzido e habituado a um punhado de massas e papas que restaram nas prateleiras durante tanto tempo que só se consegue sentir o sabor metálico e rançoso das latas.
No norte é pior.
Meu amigo Ahmad (nome fictício) é uma das poucas pessoas que tem internet. O sinal é esporádico e fraco, mas ainda podemos trocar mensagens.
Ele me enviou uma foto sua na qual parecia uma sombra do jovem que eu conhecia. Ele perdeu mais de 25 kg.
Inicialmente, as pessoas foram obrigadas a se alimentar de ração para cavalos e burros, mas até isso acabou. Agora estão comendo os burros e os cavalos.
Alguns comem cães e gatos de rua, que às vezes estão morrendo de fome e às vezes se alimentam de restos humanos espalhados pelas ruas, onde atiradores israelenses têm como alvo pessoas que ousam se aventurar no campo de visão de suas miras. Os velhos e os mais fracos já morreram de fome e de sede.
A farinha é escassa e mais preciosa do que o ouro.
Ouvi a história de um homem do norte que recentemente conseguiu pôr suas mãos em um saco de farinha (que normalmente custa sete euros) e lhe ofereceram joias, aparelhos eletrônicos e dinheiro que somavam um valor de 2.300 euros. Ele recusou.
Em Rafah, as pessoas se sentem privilegiadas por receber farinha e arroz. Elas contam isso para você, e você se sentirá humilhado, porque elas se oferecem para compartilhar esse pouco que têm.
E você sentirá vergonha, porque sabe que pode sair de Gaza e comer o que quiser. Você se sentirá pequeno aqui, porque não é capaz de realmente fazer nada para aplacar a necessidade e a perda catastrófica, e porque entenderá que eles são melhores do que você, pois, de alguma forma, continuaram sendo generosos e hospitaleiros em um mundo que tem sido tanto e por tanto tempo pouco generoso e inóspito com eles.
Trouxe tudo o que podia, pagando bagagem extra e o peso de seis malas e acrescentando outras 12 no Egito. Para mim, trouxe o que estava na minha mochila.
Tive a clarividência de trazer cinco sacos grandes de café, que acabaram sendo o presente mais apreciado pelos meus amigos daqui. Preparar e servir café aos colegas de trabalho onde estou é a minha atividade favorita, pela alegria absoluta que cada gole parece trazer.
Mas isso também terminará em breve.
Contratei um motorista para transportar sete malas pesadas com suprimentos para Nuseirat [um campo de refugiados no centro da Faixa], e ele as carregou por alguns lances de escada. Ele me disse que carregar aquelas malas o fazia se sentir humano de novo, porque era a primeira vez em quatro meses que ele subia e descia as escadas.
Isso o lembrou de quando ele morava em uma casa em vez da tenda onde habita agora.
É difícil respirar aqui, literal e metaforicamente. Uma névoa imóvel de poeira, degradação e desespero enche o ar.
A destruição é tão maciça e persistente que as finas partículas da vida pulverizada não têm tempo para se depositar. A falta de gasolina levou as pessoas a abastecerem seus carros com estearato, um óleo usado que tem uma combustão muito poluente. Emite um odor particularmente desagradável e uma película que gruda no ar, nos cabelos, nas roupas, na garganta e nos pulmões. Demorei um pouco para descobrir a origem daquele cheiro penetrante, mas é fácil reconhecer os outros.
A escassez de água corrente ou limpa compromete a higiene de qualquer um de nós. Todos fazem o melhor para cuidarem de si mesmos e dos filhos, mas em um certo ponto você deixa de se importar.
Em um certo ponto, a humilhação da sujeira é inevitável. Em um certo ponto, você simplesmente espera pela morte, assim como também espera por um cessar-fogo.
Mas as pessoas não sabem o que farão após o cessar-fogo.
Elas viram fotos de seus bairros. Quando novas imagens da zona norte são publicadas, as pessoas se reúnem para tentar entender de que bairro se trata, ou de quem é a casa que foi reduzida àquele amontoado de escombros. Muitas vezes, esses vídeos vêm de soldados israelenses que ocupam ou explodem essas casas.
Falei com muitos sobreviventes retirados dos escombros de suas casas. Contam o que aconteceu com uma expressão impassível, como se não tivesse acontecido com eles; como se a família de outra pessoa tivesse sido enterrada viva; como se seus corpos mutilados pertencessem a outros.
Os psicólogos dizem que se trata de um mecanismo de defesa, de uma espécie de entorpecimento da mente visando à sobrevivência. O acerto de contas virá mais tarde, se eles sobreviverem.
Mas como é possível enfrentar a perda da família inteira, enquanto se observam os corpos se desintegrando entre os escombros e se sente o cheiro, enquanto se espera pelo resgate ou pela morte? Como é possível pensar no aniquilamento total da própria existência no mundo: a casa, a família, os amigos, a saúde, todo o bairro e o país?
Nenhuma foto de sua família, de seu casamento, de seus filhos, de seus pais; até mesmo os túmulos de seus entes queridos e de seus antepassados foram arrasados. Tudo isso enquanto as forças e as vozes mais poderosas difamam e culpam você pelo seu miserável destino.
O genocídio não é só um homicídio em massa. É um apagamento intencional.
De histórias. De memórias, livros e cultura.
Apagamento dos recursos de uma terra. Apagamento da esperança em e por um lugar.
Apagamento como impulso à destruição de casas, escolas, locais de culto, hospitais, bibliotecas, centros culturais, centros de lazer e universidades.
Ninguém pode pensar ou esperar o que poderá acontecer após um cessar-fogo. O máximo possível de suas esperanças neste momento é que os bombardeios cessem.
É o mínimo que se pode pedir. Um mínimo reconhecimento da humanidade dos palestinos.
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“Até o ar está queimado. Não há mais árvores em Gaza”. Artigo de Susan Abulhawa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU