02 Novembro 2023
Existem poucas carreiras tão coerentes, politicamente ativas e contundentes como a de Ken Loach. Há décadas, seu cinema vem sacudindo o mundo. Leva a olhar para onde as pessoas nunca querem olhar. Para os trabalhadores, os mineiros, os afetados pelas políticas neoliberais que esmagaram o Estado de bem-estar. Ele concebe o seu cinema como uma arma. Uma arma para abrir os olhos, para puxar as orelhas do poder estabelecido. Foi o que fez em seus primeiros filmes para a BBC e continua fazendo o mesmo, aos 87 anos, quando anuncia que será, com quase total certeza, seu último filme.
Chama-se The Old Oak, estreia nos cinemas no dia 17 de novembro e já encerrou a Seção Oficial da Seminci, um festival onde Ken Loach já ganhou duas vezes seu maior prêmio, a Espiga de Oro, por Meu Nome é Joe (1998) e Felizes Dezesseis (2002). Talvez seja porque este título tem gosto de despedida, mas, desta vez, o diretor britânico faz uma defesa da esperança como motor político da mudança. Os políticos, e especialmente a extrema direita, querem que renunciemos a essa esperança. Para Loach, quando ela desaparece, nasce a raiva e quando a raiva aparece, qualquer solução populista é aceita.
Com quase 90 anos, Loach visitou Valladolid com o seu inseparável Paul Laverty, seu roteirista, amigo e parceiro de décadas e a pessoa com quem escreveu uma obra que devolve a esperança e a fé no poder dos indivíduos de evitar que políticas racistas se espalhem ainda mais. Loach e Laverty fazem isso contando a história do último pub de uma cidade britânica onde refugiados sírios chegam para morar. Para eles, a luta dos mineiros abandonados e a dos migrantes é a mesma, uma luta de classe diante da qual devemos permanecer unidos.
A entrevista é de Javier Zurro, publicada por El Diario, 27-10-2023. A tradução é do Cepat.
Este é um filme que fala sobre a esperança. Por que a esperança é importante neste momento?
Ken Loach: Se não tivermos esperança não poderemos ver que temos a força para poder fazer mudanças radicais que salvaguardem o planeta, mudanças para ter uma sociedade igualitária que não nos explore. Não veremos que podemos viver em paz. Para conseguir tudo isso, precisamos confiar que existe um caminho e de que temos força para segui-lo.
Penso que essa é a definição de esperança, entender que você pode melhorar as coisas. Se você não acredita que pode melhorar as coisas, então, isso leva ao desespero, e quando você está desesperado, procura alguém forte ou um grupo forte para que resolva seus problemas. Essa é a essência dos filmes de Hollywood. Você sabe, o cowboy com armas muito grandes entra no povoado e atira nos bandidos. Isso não é esperança. Essa é a política do desespero, e quem capitaliza com isso é a extrema direita.
A extrema direita é o último recurso das grandes corporações, das grandes empresas. Foram as grandes corporações que apoiaram os nazistas, nos anos 1930, encorajaram o populismo e fomentaram o racismo. Leiam a imprensa, olhem para os meios de comunicação, olhem para os políticos que os representam. São políticos que falam de enxames de imigrantes. Falam de ser invadidos por imigrantes. Esse é o terreno fértil para a extrema direita e, claro, algumas pessoas desesperadas caem nessa armadilha porque é uma resposta fácil.
A esperança é política. Você não pode esperar que as coisas aconteçam porque cruza os dedos. Fazer as coisas acontecerem depende de você. Há um caminho a seguir, e a grande rocha sobre a qual podemos construir esse caminho é a solidariedade. Solidariedade com as pessoas que fogem da guerra, da fome, da mudança climática quando a sua terra se torna insustentável. Essa é a nossa esperança, e a esperança nos dá confiança e força para fazer mudanças.
Meses atrás, conversamos em Cannes. Neste período, houve eleições em que a extrema direita não venceu na Espanha, na Polônia e no primeiro turno da Argentina. Isso nos dá alguma esperança?
Paul Laverty: Bem, mas estiveram muito perto de vencer. Na Argentina, falta o segundo turno, então vamos cruzar os dedos. E não esqueçamos que na Polônia foi a extrema direita que obteve mais votos, mas não alcançou a maioria absoluta, por isso o perigo segue presente. Ken e eu acabamos de voltar de Paris e as pessoas de lá estão muito assustadas com a extrema direita. Nas próximas eleições, poderão vencer. A polícia de lá tem sido tremendamente violenta.
Também olhamos para Espanha com muito medo. A extrema direita está agora ao lado do PP em muitas administrações e é um partido que nega a mudança climática, que pensa que a mudança climática é propaganda de esquerda, que é uma invenção, contra o consenso de 99% dos melhores cientistas de nosso mundo. E fazem isso aqui, na Espanha, com todos os incêndios que estão acontecendo. Como isso pode acontecer?
Devemos desfazer esse nó e é isso que tentamos fazer com o filme. Há raiva e fúria legítimas. Em nosso filme, você vê que as pessoas estão desesperadas. A questão é: culpamos realmente os responsáveis por isso? As pessoas estão iradas e furiosas, mas se culparmos os imigrantes, isso não resolverá nada.
Ken Loach: E para acrescentar uma coisa, é claro que é necessário derrotar a direita, mas penso que a grande questão é: qual é a liderança da esquerda? Não queremos uma liderança que simplesmente coloque remendos. O sistema está podre. A esquerda tem de desafiar toda a estrutura econômica, reformá-la para que funcione em benefício da classe trabalhadora.
Isso será verdadeiramente uma democracia econômica onde seremos donos dos setores estratégicos da economia. Donos de nossos serviços públicos, de nossa infraestrutura, da energia... então, poderemos planejar as coisas e só assim poderemos resolver a mudança climática e as guerras.
As guerras são causadas pela concorrência econômica. Só podemos resolver isso se planejarmos, e não podemos planejar o que não possuímos. Por isso, precisamos de um líder radical na esquerda. Sem isso, teremos uma liderança social-democrata. Tem que haver um líder radical, ouso dizer, revolucionário para a esquerda porque, caso contrário, fracassarão.
É inevitável perguntar-lhes sobre a situação em Gaza. Estávamos falando sobre esperança, as pessoas de lá podem ter alguma esperança?
Paul Laverty: Ken e eu estamos observando com horror o que está acontecendo e acredito que devemos lembrar as palavras do Sr. Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas. Penso que ele falou com grande autoridade e é a pessoa encarregada de tentar garantir que o direito internacional seja respeitado. Condenou as atrocidades e abominações do dia 7 de outubro, quando israelenses inocentes foram assassinados da forma mais brutal. Reconheceu isto, e você não teria humanidade se não pudesse se identificar com isso. Contudo, o que ele também disse é que isso não surgiu do nada. Falou dos 56 anos de ocupação. Falou sobre a violência das comunidades de colonos. Falou de suas possibilidades econômicas sendo sufocadas.
Poderíamos acrescentar a isso os relatórios da Anistia Internacional e da Human Rights Watch, que disseram que Israel é um Estado que pratica um apartheid. Duas grandes organizações de direitos humanos chegaram à mesma conclusão. Então, obviamente, há uma resistência. O que as pessoas nunca dizem no direito internacional é que o povo palestino tem o direito de resistir a uma ocupação ilegal. Você nunca ouvirá isso nos principais meios de comunicação.
Em que mundo vivemos quando temos de tentar proteger o cargo do secretário-geral das Nações Unidas, agora que os Estados Unidos e seus aliados, tão influentes, estão decididos a destituí-lo de seu cargo? Isto demonstra sua total falta de respeito pela ordem internacional. E justamente hoje, os Estados Unidos estão enviando dois porta-aviões para a costa de Gaza. Enviaram F-16, enviaram tropas especiais com mísseis e disseram: “Acalmem-se, não intensifiquemos a situação”. Que grandes hipócritas e mentirosos eles são! Acredito que o mundo está começando a ver isso.
Ken Loach: Eu só quero expressar a minha solidariedade ao secretário-geral das Nações Unidas. Que coisa tão extraordinária ter que dizer isto… Ele está defendendo o direito internacional. Está defendendo os direitos humanos. Os atos de hostilidade não os respeitam. Existe um contexto para tudo. Para cada evento, existe um contexto. E qual é o contexto aqui?
Paul o explicou com precisão. As Nações Unidas são a nossa única esperança aqui, porque, caso contrário, estamos em uma luta entre dois blocos de poder. Não conseguiremos ter paz dessa forma. Temos que apoiar as Nações Unidas. Essa é a nossa obrigação fundamental. A de cada jornal, de cada político e de cada organização.
Na Espanha, nós o admiramos por muitas razões, mas penso que uma muito importante é pelo filme 'Tierra e Liberdade', uma obra que penso que muda a forma como as pessoas olham para a memória histórica em nosso país. Além disso, Paul foi ator no filme. Não sei que lembranças você tem dele.
Ken Loach: Foi algo incrível. Paul e eu nos conhecíamos de antes, porque Paul era um observador de direitos humanos na Nicarágua. Quando retornou de lá, entramos em contato e estamos felizes por tê-lo produzido. Todos os meus filmes têm algo especial para mim, mas este é especialmente extraordinário. Trabalhamos com jovens atores e com os membros da equipe espanhola, e havia esse elemento que era a revolução na Espanha de 1936, o potencial que havia para produzir uma mudança fundamental e a divisão que houve dentro da esquerda entre o Partido Socialista, o Partido Comunista e o POUM.
O POUM foi quem fez tudo o que era possível para dar ao povo poder, terra e as fábricas onde trabalhavam, e foram traídos por outros dentro da esquerda. E esse fato foi fundamental. Outro aspecto interessante é que naquela época existia um regime fascista. Franco retorna à Espanha com a ajuda do Ministério das Relações Exteriores britânico.
Depois, a propaganda britânica disse que lutamos contra o fascismo. Que mentira! Foi Eles o apoiaram na Espanha e já se sabia que os fascistas na Alemanha eram antissemitas. Todo esse programa reacionário já era conhecido de todos. Não, os britânicos, a classe dominante britânica, só lutaram contra o fascismo quando este os ameaçava. Como ideologia, não o combateram. Além disso, temos que lembrar que esta foi uma guerra de classes.
Alguma vez, já sentiu que seus filmes conseguiram mudar algo, por menor que seja?
Ken Loach: Gostaria de dizer que sim, mas acredito que não. São apenas filmes, depois, depende do que você faz ao sair do cinema. Espero ao menos ter dado o meu apoio àqueles que depois exigem as mudanças ou que tenha gerado perguntas na mente das pessoas. Espero que, ao menos por um momento, tenha dado uma pequena sacudida no poder estabelecido. Contudo, ao final, são apenas pequenos filmes europeus. Somos uma voz dentro de um coro. Um coro que pede uma mudança radical.
No entanto, há um ruído muito maior, mais barulhento, o de quem quer manter as coisas como estão porque está se beneficiando temporariamente disso. E eles têm vozes muito mais fortes. Controlam a imprensa, controlam a rádio e espalham sua hipocrisia, suas mentiras e seu racismo. Contudo, as pessoas podem ver a realidade de suas vidas e penso que se tirarmos partido disso, poderemos fazê-las olhar e conhecer a grande desigualdade e o grande perigo em que estamos. A solidariedade é a chave. Se pudermos dar uma mão, é o máximo que podemos fazer.
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“O sistema está podre. A esquerda tem de desafiar toda a estrutura econômica”. Entrevista com Ken Loach e Paul Laverty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU