05 Outubro 2023
O artigo é do teólogo espanhol Jesús Martínez Gordo, presbítero da Diocese de Bilbao e professor da Faculdade de Teologia de Victoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, publicado por Religión Digital, 03-10-2023.
Tenho lido nos últimos dias, antes do início dos dois Sínodos sobre a Sinodalidade, algumas notícias que me chamaram poderosamente a atenção e que me reafirmaram na necessidade de lembrar e dar o devido lugar à sinodalidade, que, fundamentada na 'infalibilidade de todo o povo de Deus', deve ser não apenas corresponsável e consultiva, mas também codecisiva ou deliberativa.
De acordo com a primeira notícia, de 12-09-2023, em Zurique, na Igreja suíça ocorreram, desde a década de 1950 – como pode ser lido no relatório produzido pelas historiadoras Monika Dommann e Marietta Meier da Universidade de Zurique – mais de 1.000 casos de abusos sexuais, a maioria deles contra crianças.
De acordo com a segunda notícia, Johannes Norpoth, porta-voz do Conselho Consultivo da Conferência Episcopal Alemã (DBK), denunciou, em uma entrevista ao Rheinische Post de Düsseldorf e referindo-se à pedofilia na Igreja, que entre os convidados para participar do próximo Sínodo Mundial "não há uma única pessoa que represente as vítimas. Nem uma única!", apesar de se constatar que este é um problema sistêmico da Igreja. Mas isso não é apenas, como reconhecido nesse relatório, na Igreja suíça, mas também na alemã (Relatório MHG) e francesa (Relatório CIASE) e, por extensão, em muitas outras.
Entendo que quando esses relatórios qualificam o drama da pedofilia como "sistêmico", estão afirmando que temos diante de nós um problema que afeta a concepção e o exercício da autoridade, do poder e do governo da Igreja; questões que mereceriam ser abordadas nos próximos Sínodos Mundiais. Portanto, acredito que ao lidar com essa questão sistêmica não está em jogo apenas a credibilidade desses Sínodos Mundiais, mas, acima de tudo, o futuro da Igreja.
Com a esperança de que essa urgência maior não seja diluída em outras – indiscutivelmente importantes também, mas talvez não tão "sistêmicas" – permito-me recolher e prolongar alguns pontos da minha contribuição no livro coletivo em que participei e que acabou de ser lançado: Caminhar juntas e juntos: sonhar a Igreja. Viver a missão (Ediciones HOAC, 2023).
Neste texto, indico que o que está em jogo nos dois Sínodos sobre a Sinodalidade é a recepção criativa da "infalibilidade de todo o povo de Deus", ou seja, a implementação do que pode ser um novo modelo de governo ou liderança, ensinamento e organização eclesial, apesar de ter sido marginalizado até o presente: o corresponsável, ou seja, batismal e ministerial, e, portanto, deliberativo, codecisivo ou "cogovernativo", no qual o sucessor de Pedro cuida e vela pela unidade da fé e da comunhão eclesial.
Além disso, em coerência com essa recepção conciliar, uma nova forma de sinodalidade, igualmente, batismal e ministerial, e também codecisiva; longe de ser apenas consultiva, o que, ao contrário dos papas anteriores, é promovido por Francisco, interessado – pelo menos até o momento – em "ouvir" o povo de Deus e o colégio episcopal, ficando em suspenso se pode deliberar e codecidir com eles; e, em caso afirmativo, até que ponto e como.
Também entendo que é urgente recuperar – atualizando – o projeto de Constituição eclesial ou Lei fundamental (a famosa Lex Ecclesiae fundamentalis) promovido por Paulo VI e adiado sine die por João Paulo II em 1981, embora algumas de suas disposições tenham sido incorporadas nos atuais Códigos de Direito Canônico de 1983 e 1990.
Nessa Constituição eclesial ou Lei Fundamental, além de garantir os direitos fundamentais de todos os batizados e das igrejas locais, deve-se estabelecer a devida separação de poderes (executivo, legislativo e judicial) com o objetivo de limitar os excessos de autoridade e deixar claro seu sujeição à lei. Da mesma forma, devem ser garantidos e regulamentados os procedimentos democráticos adequados no exercício da sinodalidade e corresponsabilidade, seja ela colegial ou batismal.
Em primeiro lugar, trata-se de um liderança, magistério e sinodalidade que, porque todos os cristãos, através do batismo, são em Cristo "mestres, sacerdotes e reis", é tipificado e reconhecido como corresponsável.
Mas, em segundo lugar, além de ser corresponsável, é também ministerial, uma vez que dentro da comunidade cristã existem diferentes ministérios (sejam instituídos ou reconhecidos) com suas respectivas esferas de competência e responsabilidade para o desenvolvimento da comunidade e serviço à missão evangelizadora.
Portanto, estou me referindo a um modelo de liderança, magistério e sinodalidade presidido por uma responsabilidade compartilhada entre os batizados e os diferentes ministérios ordenados".
No entanto, tal corresponsabilidade não pode ser implementada – pelo menos, na Europa ocidental – priorizando modelos de governo e magistério presididos por formas monárquicas e absolutistas do ministério ordenado.
Não é mais possível ignorar, desqualificar ou menosprezar, por muito mais tempo, a conquista e o progresso da separação de poderes e da democracia em si, por mais formais e burguesas que essas aquisições possam ser e por mais abusos que tenham sido cometidos e ainda sejam realizados em seu nome.
Essa separação de poderes e a democracia que a acompanha são, com suas limitações indiscutíveis, mediações tão humanas e históricas quanto as formas monárquicas e absolutistas que revestem e fortalecem a autoridade, o magistério eclesial e a organização da Igreja quando, por exemplo, no pós-concílio, Paulo VI interpreta e implementa de forma involutiva a colegialidade episcopal à luz do modelo unipessoal do papado aprovado em 1870, no Vaticano I (cf. Nota explicativa praevia à Constituição Dogmática Lumen Gentium, 1964). Ou quando João Paulo II afirma que a infalibilidade de todo o povo de Deus é por "participação" na própria infalibilidade do ministério ordenado e, portanto, não é recebida pelo batismo (Declaração Mysterium Ecclesiae, 1973). E quando o Papa João Paulo II proíbe que os bispos levantem pedidos de revisão perante a Santa Sé sobre assuntos que, solicitados por sínodos diocesanos, ele mesmo reservou para sua própria decisão (Instrução De synodis dioecesanis agendas, 1997).
Ao decretar tais interpretações e implementações do Vaticano II, Paulo VI e João Paulo II minaram – ou pelo menos dissolveram – a corresponsabilidade e a codecisão da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium (1964), tanto na relação sacramental existente entre o papado e os bispos quanto no ministério ordenado com todo o povo de Deus.
No entanto, ao contrário dessas interpretações e implementações descaradamente pré-conciliares, operativas durante o pós-concílio na Igreja latina, entendo que o magistério e o governo da Igreja podem – e devem – ser corresponsáveis e codecisivos, estando em plena consonância com o Vaticano II e, em particular, com a infalibilidade de todo o povo de Deus.
"Não é aceitável, do ponto de vista teológico e dogmático, afirmar que, por "instituição divina", a assistência do Espírito Santo se limita apenas ao formato monárquico e absolutista de governo, ensinamento e sinodalidade, permanecendo em silêncio ou mudo no formato corresponsável, ou seja, aquele em que todos os batizados têm, graças à infalibilidade de todo o povo de Deus, uma palavra a dizer, apoiada na mediação democrática e na consequente separação de poderes trazida pela modernidade. Também não é aceitável afirmar que essa palavra de todo o povo de Deus – dada o canal infalível de onde emana – não possui argumentos teológicos e dogmáticos suficientes para ser codecisiva de forma corresponsável.
Ao contrário do formato absolutista defendido nos três textos magisteriais mencionados acima, entendo que essas mediações democráticas e a separação de poderes são muito mais adequadas para implementar a infalibilidade de todo o povo de Deus, ou seja, a infalibilidade dos batizados e dos ministros, sejam eles instituídos (ordenados e leigos) ou reconhecidos pelas comunidades cristãs.
Portanto, acredito que esses dois Sínodos Mundiais têm – finalmente! – a responsabilidade de levar a sério a Constituição Pastor Aeternus (1870) à luz da também Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964), e não o contrário, como fez Paulo VI e como seguiram fazendo depois dele João Paulo II e Bento XVI. E, dado o que tem sido visto, pelo menos até o presente, também o que o Papa Francisco está fazendo, com certeza deixando um notável grau de liberdade, desconhecido no pós-concílio. Daí a importância de recuperar – e atualizar – o projeto de Constituição eclesial ou Lei fundamental.
Além disso, entendo que é hora de levar a sério a catolicidade como comunhão de igrejas locais, portanto, não uniformes, mas singulares. No entanto, elas são diferenciadas não apenas por terem ritos próprios, mas também – e acima de tudo – por darem a devida atenção, tanto em termos de magistério quanto de governo, às circunstâncias culturais, históricas, políticas, econômicas e espirituais específicas (lugares teológicos) no meio das quais o sensus fidei e o sensus fidelium existem e se manifestam.
É evidente que a fé cristã não é incompatível com um credo comum que pode e deve ser inculturado de diferentes maneiras sem quebrar a comunhão. Quando isso acontece, a catolicidade, a comunhão das comunidades locais, é enriquecida, embora às vezes esse enriquecimento possa ser percebido como destrutivo da unidade, especialmente por aqueles que têm dificuldade em evitar e enfrentar uma concepção uniformista dela ou uma forma de governo verticalista ou uma concepção monárquica e absolutista do poder eclesiástico.
A experiência das igrejas patriarcais no primeiro milênio da nossa era, com seus acertos e erros, é uma referência de relevância inegável, como proposto por João Paulo II na encíclica Ut unum sint (1995).
Não atender a esse clamor do Espírito pode resultar novamente em divisões, se o modelo atual, absolutista e monárquico, de organização, liderança e ensinamento na Igreja Católica persistir. É mais do que possível que, uma vez concluídos os Sínodos e essas questões não abordadas, continuemos a testemunhar, como ocorreu durante os pontificados de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, um "exílio interior" e até mesmo uma saída da comunidade por muitos cristãos abertos que, ansiosos por receber criativamente o Concílio Vaticano II, cansaram de esperar e persistir nesse caminho.
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Onde vai ficar a 'infallibilitas totius populi Dei' nos Sínodos mundiais sobre a sinodalidade? (I) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU