28 Setembro 2023
Uma publicidade nunca contém apenas uma dimensão comunicativa, mas sempre pelo menos duas: a ficção simbólica invisível é aquela que associa toda a cena a uma rede de supermercados e que substitui a relação desejada e irresistível por um bem ou um serviço.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 27-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Está gerando discussão um comercial de TV em que uma menina, na companhia da mãe, compra um pêssego em um supermercado, depois o esconde em sua mochila e, quando o pai (evidentemente separado da mãe) vai buscá-la na casa da mãe, a menina dá o pêssego para o pai, apresentando-o como um presente da mãe.
O comercial foi filmado com grande delicadeza e se apresenta em uma versão longa [acima] e curta. É claro que se trata do início de uma campanha publicitária, com o objetivo de promover o bom nome da rede de supermercados. Tentemos entender bem as duas funções simbólicas que estão no centro da história.
O pêssego em torno do qual gira a história é o objeto de uma elaboração simbólica da menina que vive a separação entre o pai e a mãe. Ela vai comprar o pêssego com a mãe, mas depois o dá ao pai como presente que atribui à mãe.
A menina reconstrói a relação entre os genitores assumindo o pêssego como forma e horizonte de reconciliação. A união entre os genitores volta a ser possível no pêssego doado, que reabre a relação de dom entre a mãe e o pai.
O modo como a história é apresentada está todo no jogo de olhares entre a menina, o pêssego, a mãe e o pai: uma pequena obra-prima de direção cinematográfica. O desejo da menina transforma o pêssego no símbolo da família ferida que aspira à reconciliação e a realiza no pêssego doado. É a ficção simbólica visível.
Um spot publicitário nunca contém apenas uma dimensão comunicativa, mas sempre pelo menos duas: a ficção simbólica invisível é aquela que associa toda a cena a uma rede de supermercados e que substitui a relação desejada e irresistível por um bem ou um serviço.
Esse modo de comunicar cria um nível oculto de comunicação, que funciona diabolicamente, ou seja, separa o sujeito de sua própria identidade, criando uma identificação fictícia.
Enquanto a ficção simbólica constrói relações reais e dá forma a esperanças fundamentadas, a ficção diabólica separa das relações reais e constrói mundos fictícios, divididos e em conflito.
O spot publicitário se baseia nesse duplo nível de comunicação e gera sobretudo identidades distorcidas, porque confunde habilmente o interesse com o desinteresse, o lucro com a gratuidade.
Com o spot publicitário, vende a família feliz como um biscoito ou como um pacote de massa, vende-se o fascínio pessoal como um xampu, vende-se o resgate como uma goma de mascar, vende-se a saúde da alma e o perdão do pecado como uma água mineral.
O único modo para se “defender” desse uso distorcido dos valores mais altos, em contextos que são apenas comerciais, é “desmascarar” o símbolo diabólico oculto.
Se você conseguir trazer à consciência o propósito pelo qual a história comovente está sendo contada, você se salva da “dependência da fidelização” e talvez nunca mais ponha os pés naquele supermercado, que usa violentamente um símbolo delicado de desejo, de sofrimento e de esperança apenas para ganhar dinheiro.
Durante sua viagem aos Estados Unidos, o Papa Francisco, ao se encontrar com os bispos no Seminário de São Carlos, na Filadélfia, fez uma comparação entre o comércio de bairro e os centros comerciais, como “mundos diferentes”, baseados em relações ou na ausência de relações, nos quais é possível ser espiritual.
O pêssego pode ser simbolizado tanto na lojinha quanto no centro comercial. É claro, poderia nos surpreender o fato de que a despersonalização, que atenta aos vínculos, típica de um supermercado, pode se reverter na busca da reconciliação e na retomada dos vínculos. A nostalgia dos laços fortes, vendida como verdade de um dos locais de mais alta despersonalização, como o supermercado!
O pêssego simbólico nos liberta para a vida boa; o pêssego diabólico nos ilude que é um supermercado quem nos garante a liberdade e assim nos torna escravos. Talvez aprendendo a olhar com um olhar clarividente para a história dessa menina possamos levar a sério as formas de vida, mas entenderemos também a que nível de cinismo a lógica do lucro pode chegar.
Talvez tiremos a consequência de nunca mais pôs os pés naquele supermercado, que usa os melhores sentimentos para atrair apenas a carteira das pessoas. Só assim um pêssego maduro, como o trenó Rosebud, resiste à captura poderosa pela máquina sem coração da comunicação comercial.
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Pêssego simbólico, pêssego diabólico: sobre um comercial de TV. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU