09 Agosto 2023
Há uma espécie de caso de amor não correspondido entre a teologia e Francisco, que tem vastas consequências. Não é um problema apenas para os profissionais; é também um problema eclesial: cria ambiguidade ao mesmo tempo que amplia a lacuna entre a prática pastoral e o discurso teológico público, sufocando a recepção teológica das realidades eclesiais.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por Commonweal, 08-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A encantadora cidade medieval de Brixen, no sul do Tirol (a parte da Itália de língua alemã perto da fronteira austríaca), desempenha um papel significativo na história da Igreja e na história da teologia. O teólogo alemão Nicolau de Cusa foi nomeado seu bispo em 1450, no auge da controvérsia conciliarista, um momento decisivo na formação da doutrina católica sobre o papado.
Em 1967, o teólogo e futuro papa Joseph Ratzinger passou a passar férias ali. Em 1984, Ratzinger (agora cardeal) concedeu sua primeira e provocativa entrevista com o jornalista italiano Vittorio Messori – que mais tarde ficou conhecida como seu manifesto e serviu de base para o best-seller “The Ratzinger Report” (eu estava lecionando no campus de Brixen da Universidade Livre de Bolzano quando Ratzinger foi eleito papa em 19 de abril de 2005, onde as celebrações irromperam frente ao anúncio).
Brixen também abriga a Faculdade Filosófico-Teológica de Brixen/Bressanone. Administrado pela Diocese de Bozen-Brixen/Bolzano-Bressanone, a faculdade tem uma longa história (e uma maravilhosa biblioteca) que data da era de Cusano. Desde 1991, ela é um centro acadêmico de direito pontifício, o que lhe permite emitir o grau acadêmico de Bacharelado em Teologia. É uma grande parte do cenário universitário europeu e ajuda a tornar o sul do Tirol um ponto de encontro das culturas de língua italiana e alemã.
Brixen/Bressanone virou notícia neste verão europeu devido ao curioso caso do antigo membro do corpo docente Martin Lintner, recentemente eleito por seus pares como reitor da Faculdade Filosófico-Teológica, onde ele é professor de Teologia Moral e Espiritual desde 2009.
Em junho, o bispo de Brixen, Ivo Muser (nomeado por Bento XVI em 2011), anunciou que o Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano não havia concedido um nihil obstat (“nada obsta”) à eleição de Lintner. O pedido de nihil obstat foi enviado ao Vaticano no fim de novembro de 2022. Depois de seis meses sem resposta, o bispo Muser, que estava em Roma para uma visita, passou pelo Dicastério para a Cultura e a Educação para perguntar a respeito. De lá, ele foi enviado ao Dicastério para a Doutrina da Fé, onde soube que uma decisão de fato havia sido tomada em janeiro. Ela era negativa e havia sido tomada sem buscar um diálogo com o bispo de Lintner ou com o próprio Lintner, e sem uma explicação transparente dos motivos.
Descobriu-se que o Vaticano emitiu sua negação devido a certas “publicações do Prof. Lintner sobre questões de moral”. Em um acordo com Lintner, que é padre e membro da Ordem dos Servos de Maria, o bispo Muser renunciou ao direito de recurso hierárquico contra essa decisão. O corpo docente da faculdade, portanto, deve eleger um novo reitor. O bispo estendeu assim o mandato do atual reitor, Alexander Notdurfter, para além da data prevista para seu término, em 31 de agosto de 2023. O Vaticano declarou explicitamente que a negação do nihil obstat não afeta a autorização de Lintner para lecionar.
O incidente suscitou declarações de solidariedade a Lintner de teólogos alemães e italianos, de várias associações teológicas e de instituições públicas nas quais Lintner atua como especialista em ética. O próprio Lintner escolheu um caminho sem confronto, mas não ficou calado. Em 3 de julho, ele emitiu uma declaração ao mesmo tempo firme e dialógica:
“A decisão do Vaticano a meu respeito não só suscitou incompreensão, mas também uma forte irritação em muitos fiéis. Ela levanta dúvidas sobre o bom êxito da sinodalidade. Também me dói constatar como, em diversas pessoas, isso reforçou uma atitude crítica ou negativa em relação à Igreja. Quem me conhece sabe muito bem como é sólido o meu sentimento de pertença à Igreja e a minha lealdade construtivamente crítica em relação à autoridade magisterial.”
Lintner não está transformando seu caso em uma cause célèbre, mas sim enquadrando-a como uma questão eclesial. Para quem o conhece, isso não é surpreendente e está completamente de acordo com seu caráter. Ele é um dos principais especialistas em ética sexual, ambiental e animal, e liderou associações teológicas locais, nacionais e internacionais, incluindo a Associação Europeia de Teologia Católica, a Associação Internacional de Teologia Moral e Ética Social e a Rede Internacional das Associações de Teologia Católica. Ele não é um estudioso individualista e elitista em busca de problemas. Ele é a encarnação do teólogo católico que conhece o papel da teologia no acompanhamento do magistério, a fim de pensar as questões de ponta e de ouvir as diferentes vozes na Igreja e na cultura.
Mas, em 6 de julho, poucos dias depois da declaração de Lintner, o bispo Muser emitiu uma nova declaração: a decisão de negar o nihil obstat, embora tenha sido comunicada pelo dicastério vaticano responsável pelas universidades católicas, dependia da aprovação de outros dicastérios. Isso deixou claro que o Dicastério para a Doutrina da Fé, antigamente conhecido como Santo Ofício, também desempenhou um papel no caso.
Por sua vez, a atuação do prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, o cardeal José Tolentino de Mendonça (um prelado português nomeado por Francisco e autor premiado de artigos, escritos espirituais e poemas traduzidos para inúmeras línguas), e do prefeito do Dicastério para a Doutrina, Luis Francisco Ladaria Ferrer (um cardeal jesuíta da Espanha e professor de longa data da Pontifícia Universidade Gregoriana) também estão chamando a atenção.
As inúmeras reações e protestos surtiram efeito: o Dicastério para a Cultura e a Educação voltou atrás parcialmente, anunciando que a decisão negativa é válida “neste momento” e que quer tomar um ano para rever o caso.
Qual era o problema nas publicações de Lintner? Foi relatado que seu livro “A redescoberta de Eros” (publicado em alemão em 2011 e em italiano em 2015) foi anonimamente denunciado em 2012 por duas pessoas diferentes. O Dicastério para a Doutrina da Fé investigou; embora não tenha encontrado nada contrário à doutrina moral católica, mesmo assim buscou esclarecimentos por parte de Lintner. Um deles dizia respeito ao capítulo sobre homossexualidade. Lintner apoia abertamente a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo, pronuncia-se publicamente sobre a necessidade de abordar o abuso sexual na Igreja e defende o diálogo entre o ensino da Igreja e a pesquisa sobre gênero, com a participação de pessoas trans. Ele é a favor de se afastar de uma concepção de normas e proibições baseadas na moral, como aquela que continua sendo percebida como a doutrina católica sobre a sexualidade. Em 2018, ele também publicou um livro sobre os 50 anos da Humanae vitae, com o subtítulo: “Fim de um conflito, a redescoberta de sua mensagem”. Ele tem um livro no prelo sobre a ética das relações.
Como se observa, ele é um teólogo católico a favor de um diálogo construtivo entre a teologia e o magistério sobre as questões mais polêmicas do nosso tempo, e faz seu trabalho com espírito e estilo eclesiais.
A história de Lintner levanta duas questões importantes. A primeira diz respeito ao papel da teologia na Igreja Católica e ao pontificado do Papa Francisco. Em uma recente e ampla entrevista ao jornal oficial da Santa Sé, o L'Osservatore Romano, o teólogo italiano Piero Coda, presidente da Comissão Teológica Internacional (cuja tarefa é ajudar o Vaticano “no exame das questões doutrinais de maior importância”) e membro do Sínodo de 2023, lamentou que a teologia não tenha recebido adequadamente as percepções de Francisco. Mas é exatamente isso que teólogos como Martin Lintner estão tentando fazer, em um espírito verdadeiramente eclesial.
A relação entre a teologia e a Igreja institucional tem visto algumas mudanças desde a eleição de Francisco. Por um lado, houve uma trégua óbvia após as eras de João Paulo II e de Bento XVI. No entanto, parece que a teologia tem respondido melhor aos impulsos do papa do que a Cúria. E é claro que, como escreveu o teólogo italiano Marcello Neri, na Veritatis gaudium, a constituição apostólica de Francisco de 2017 sobre as universidades e as faculdades eclesiásticas, “venceu a parte jurídica (como era imaginável). O proêmio acrescentado às pressas pelo Papa Francisco encontra-se, assim, desautorizado pelo magistério mais alto de um dicastério vaticano”. As consequências da esquizofrenia conceitual entre o proêmio e a primeira parte da Veritatis gaudium são agora visíveis no caso Martin Lintner.
Mas, em 1º de julho, apenas alguns dias após a negação do nihil obstat, Francisco nomeou o arcebispo argentino Victor Manuel Fernández como o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. Fernández é um amigo fiel e de longa data de Francisco, que precisará dele na próxima fase de seu pontificado, que pode ser a mais revolucionária.
A declaração de Francisco sobre Fernández foi notável à luz do caso Lintner: “O Dicastério que você presidirá em outros épocas chegou a utilizar métodos imorais. Eram tempos em que, mais do que promover o saber teológico, perseguiam-se possíveis erros doutrinais. O que eu espero de você certamente é algo muito diferente”. Ele acrescentou: “Diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. Esse crescimento harmonioso preservará a doutrina cristã mais eficazmente do que qualquer mecanismo de controle”.
Se os teólogos ainda estivessem procurando formulações apropriadas para suas críticas ao veto contra Lintner, poderiam encontrar um material interessante no que Francisco escreveu ao novo prefeito do antigo Santo Ofício. Também é interessante que o próprio Fernández tenha sido objeto de uma investigação doutrinal pelo próprio dicastério que ele agora presidirá, quando o cardeal Jorge Bergoglio, de Buenos Aires, nomeou o então Pe. Fernández como reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina em 2009.
Mas o caso Lintner também deve ser visto no contexto das tensões contínuas entre Francisco, a Cúria e a Igreja Católica na Alemanha (o Sínodo alemão, assim como a teologia católica de língua alemã). Em outras palavras, poderia ser uma mensagem enviada a um mundo teológico culturalmente distante de Roma. As posições que Lintner mantém sobre a moral sexual refletem as posições majoritárias dos teólogos na Alemanha e na Áustria.
A segunda questão diz respeito a Francisco e à Cúria Romana e ao modo como casos como o de Lintner foram tratados no passado. Normalmente, eles não eram publicizados. Mas, como Lintner escreveu em sua declaração de 3 de julho, “tais problemas permaneceram em segredo durante décadas e envolveram uma profunda prostração para as pessoas afetadas, junto com feridas interiores e com a sensação de humilhação, a ponto de prejudicar de modo irreversível suas carreiras profissionais. O senso pessoal de pertença à Igreja também pode ser afetado por isso. Muitos preferem permanecer em silêncio por medo de perder sua reputação como teólogas e teólogos, e serem suspeitos de falta de fidelidade à Igreja”.
Francisco reformou a Cúria Romana com a constituição apostólica Praedicate Evangelium de março de 2022, e seus efeitos de longo prazo ainda não estão claros. Uma coisa que não mudou é que muitas vezes Francisco governa etsi Curia non daretur – como se a Cúria não existisse. Uma das características deste pontificado é o desejo de Francisco de demonstrar que pode prescindir das estruturas governamentais típicas. Mas elas continuam operando. Isso cria um risco para os teólogos que querem ajudar Francisco, como no caso de Martin Lintner.
Por outro lado, Francisco também gosta de mostrar o quanto está distante da teologia acadêmica. Mais recentemente, apareceram estas observações, em uma entrevista do dia 4 de agosto para a revista Vida Nueva: “Tem gente que vive presa a um manual de teologia, incapaz de entrar nos problemas e fazer com que a teologia siga em frente”, disse o papa. “A teologia estancada me faz recordar que a água estagnada é a primeira que se corrompe, e a teologia estancada cria corrupção”. O discurso de Francisco sobre a renovação eclesial ocorre em grande parte sem o envolvimento dos teólogos e, em particular, das teólogas. Isso dá a alguns dicastérios da Cúria motivos para se comportarem, em casos como este, etsi Franciscus non daretur. O Vaticano, portanto, tem duas pistas paralelas que não se cruzam.
É também uma espécie de caso de amor não correspondido entre a teologia e Francisco, que tem vastas consequências. Não é um problema apenas para os profissionais; é também um problema eclesial: cria ambiguidade ao mesmo tempo que amplia a lacuna entre a prática pastoral e o discurso teológico público, sufocando a recepção teológica das realidades eclesiais.
Como Lintner escreveu, “isso levanta dúvidas sobre o bom êxito da sinodalidade” – e, em particular, sobre as chances da sinodalidade transformar as relações entre a teologia, o catolicismo vivido e a Igreja institucional.
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O papa, a Cúria e os teólogos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU