27 Junho 2023
Silvano Tagliagambe aprofunda as características específicas da cultura russa e vai em busca das referências utilizadas por Vladimir Putin e pelo Patriarca Kirill na construção ideológica da russkij mir em oposição ao Ocidente. Propõe o estudo dos autores e uma confrontação aprofundada sobre as ideias como instrumentos de paz.
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 26-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor, quais são as características que considera peculiares, diferentes em relação ao Ocidente, da cultura russa?
Para responder, relembro um texto esclarecedor de Yuri Lotman e Boris Uspensky, intitulado Rol’ dual’nych modelei v dinamike russkoj kul’tury do konca XVIII veka (ou seja, o papel dos modelos bipolares na dinâmica da cultura russa até o final do século XVIII), em 'Trudy po russkoj i slavianskoj filologii', que remonta a 1977, portanto, a tempos bem anteriores ao momento atual.
Os autores citados destacam claramente dois aspectos.
Vejamos o primeiro. A cultura russa é construída sobre polarizações opostas: santo/maldito, bem/mal, para exemplificar. Portanto, na cultura russa, ao contrário daquela ocidental, falta a ideia de uma gradação que permita uma fácil reconciliação dos opostos.
Na cultura russa falta substancialmente o conceito de um espaço intermediário entre as polaridades do mundo. O autor russo que, em oposição a essa visão, introduziu o conceito de espaço intermediário, inovando profundamente a cultura da época, é Pavel Florenskij: um autor-chave a quem voltarei hoje, embora já tenha falado sobre ele.
A tese defendida por Lotman e Uspensky, mas não só por eles, é que essa "diferença" entre os extremos é atribuível à falta do Purgatório na teologia e na pregação da Igreja russo-ortodoxa: isso teria diferenciado ainda mais a Igreja Ortodoxa da Católica, portanto, a cultura do Oriente russo daquela do Ocidente.
O conceito de Purgatório, pelo qual a cultura ocidental deve sobretudo a Dante, gera no pensamento ocidental aquela zona intermediária, entre os opostos, que não é nem boa nem má, nem santa nem pecadora e que permite conexões e transições moderadas ou modulares, graduais, ao longo do tempo.
O conceito resolve-se então na história, de forma que, enquanto no Ocidente as passagens da Idade Média ao Renascimento e da Idade Moderna à Contemporânea se deram sem antíteses radicais, o mesmo não teria acontecido no mundo russo. Na cultura e, portanto, em certa medida, na história da Rússia, tudo aconteceu através de sucessivas inversões.
A cultura com a história da Rússia pode ser interpretada como uma série de deslizamentos – oscilações – entre o Oriente e o Ocidente, entre a eslavofilia mais fechada e inesperadas aberturas: o exemplo histórico paradigmático é constituído por Pedro o Grande, desde 1682 e primeiro imperador da Grande Rússia de 1721 a 1725, ano da sua morte: Pedro voltou decisivamente o seu olhar para a Europa com a fundação de Petersburgo, enquanto czares sucessivos rapidamente voltaram a se dobrar para o núcleo oriental, eslavófilo, de seu império.
Isso já nos diz o quanto a atitude da Rússia em relação à Europa não foi – e, portanto, não pode agora facilmente ser – "equilibrada", pelo menos no sentido que nós comumente consideramos.
O segundo aspecto igualmente típico da cultura russa é a ideia de presente. Geralmente, na cultura ocidental, o presente constitui a base temporal do futuro, ou seja, o que prepara conscientemente para o futuro. Entretanto, na cultura russa, especialmente no pensamento dos eslavófilos, o presente é visto como o resultado da concatenação de acontecimentos passados, numa visão substancialmente fideísta ou fatalista da vivência do povo.
A memória do passado, um passado agigantado e até idolatrado, torna-se assim o critério fundamental e quase único de leitura do presente, diante de um futuro que, em si, não existe.
Esse aspecto foi agudamente analisado e criticado pelo intelectual russo Alexander Ivanovich Herzen já em meados do século XIX. Herzen toma de mira em sua crítica os eslavófilos, escrevendo: “A sua adesão à tradição medieval russa, da qual se declaram herdeiros e defensores, leva-os a condenar sem apelação Pedro I por ter sido ele o criador de um Estado que persegue o ideal da renovação. Com ódio do mundo contemporâneo, exaltam as formas mais antigas da posse e da distribuição das terras pelas comunidades camponesas. Eles têm uma idolatria das origens, um mito da Rússia fora do tempo”.
A esse respeito, cabe citar Vissario Belenskij, renomado crítico literário que, na primeira metade do século XIX, por meio de análises linguísticas, contrapôs o russo narod'nost' – de narod povo – a nacional'nost', expressão de derivação latina, em particular francesa: enquanto esta contém em si o dinamismo dos nacionalismos europeus, o termo narod'nost' supõe algo estável, imóvel, incapaz de transformação, destinado a perdurar no tempo: a cultura do passado, do povo russo, em um eterno presente.
Tanto Herzen quanto Belinsky destacam criticamente a natureza estática da cultura russa e o olhar do povo voltado para o passado: para um espírito originário e mítico.
Quem são os eslavófilos? Que outros pensamentos eles cultivaram?
No início da corrente eslavófila, coloco dois nomes: o de Ivan Kireevsky e o de Aleksej Chomiakov.
É singular constatar como Kireevsky tenha inicialmente se formado sobre os textos da literatura e filosofia alemãs, em particular de Goethe e Shelling, absorvendo, sim, uma racionalidade ocidental, mas aquela “romântica”, precisamente alemã, diferente daquela francesa e inglesa da época: uma racionalidade penetrada pelo espírito e, portanto, uma expressão da integridade da natureza humana, feita de mente e de coração. Numa fase posterior, Kireevsky haure às leituras dos Padres da Igreja Oriental, em particular de Isaac de Nínive, e depois de Gregório Palamas, conferindo, nos seus escritos, uma conotação cada vez mais religiosa e mística do ser humano integral.
O outro autor eslavófilo, Chomiakov, toma essa concepção integral da pessoa humana individual para deslocá-la mais para o povo, para a cultura do povo: narod'nost'. O que acrescenta significativamente é que deve haver uma instituição que garanta a permanência da cultura do povo, e que esse sujeito institucional só pode ser a Igreja russo-ortodoxa.
Já mencionei várias vezes aqui a centralidade, na visão antropológica desses autores, da integralidade, cel’nost’ em russo. Cel’nost’ é central em outros autores russos. O próprio Pavel Florensky faz uso significativo dela para sustentar a globalidade e, portanto, a interdisciplinaridade natural da cultura (contra os sinais que ele já havia captado da setorização impulsionada pelo conhecimento em âmbito ocidental). Para Chomiakov, em particular, cel’nost’ significa uma integralidade cultural que inclui as instituições e que só pode ser garantida pelos níveis político-institucionais: disso deriva a teorização, de forma filosófica, da estreita relação entre a sociedade e a Igreja, entre a autoridade do Estado e a autoridade religiosa entre o poder do czar e aquele do patriarca.
Desta forma fortaleceu a autodefinição "Santa Rússia", que é, evidentemente, anterior.
É nesses pressupostos culturais que se enraíza a concepção contemporânea do “mundo russo” – russkij mir – proclamada por Putin e Kirill?
Ao que foi dito, deve-se acrescentar o termo e o conceito subjacente mir, hoje, de fato, continuamente evocado na Rússia pelo presidente e pelo patriarca. O mir é, por tradição, a agregação das pequenas comunidades rurais russas – cada uma chamada obščina – que dá origem a uma comunidade cada vez mais vasta, a ponto de constituir um verdadeiro “mundo russo”.
Para Chomiakov, mir poderia e deveria atingir a extensão máxima – institucional – de toda a Rússia.
É certamente a esse mundo conceitual que Putin e, juntamente com ele, o Patriarca Kirill se referem, ainda que as fontes e os autores não sejam exatamente os mesmos entre os dois. Certamente no projeto compartilhado do russkij mir reside o caráter imprescindível da relação entre o governo político e a autoridade religiosa.
Quais autores Putin cita explicitamente para a promoção do "mundo russo"? Ele os cita com razão ou inadequadamente?
Os autores que ele citou em discursos oficiais recentemente são Vladimir Soloviev, Fëdor Dostoievski, Nikolaj Berdjaev.
Soloviev foi a inspiração para os últimos romances de Dostoievski, entre os quais Os irmãos Karamazov. Nessas obras, a imagem do renascimento após a queda, um dos legados justamente de Soloviev. Devemos a ele também a figura do Anghelos, ou seja, o duplo, que atua como guia divino para o homem e para o povo. Em sua vida, Soloviev fez viagens de estudo ao Egito e ao Oriente Próximo, espalhando o conhecimento do misticismo oriental na cultura russa.
Talvez essas menções sejam suficientes para intuir que o discurso de Soloviev é muito articulado e profundo, não redutível ao modelo eslavófilo, ainda que não se possa negar uma sua certa influência na concepção do "mundo russo". Não sei quanto disso é citado com razão por Putin.
Berdjaev, dissidente anticomunista, expulso da Rússia pelos bolcheviques em 1922, emigrou para a França, onde viveu até sua morte. Ele foi um dos principais expoentes do existencialismo e do anarquismo cristão. Ele foi um dos poucos que, em 1914, ano da publicação da obra-prima de Florensky A coluna e fundamento da verdade, não se juntou ao coro de admiração e espanto com que foi recebido esse singular "tratado" teológico-filosófico, pelo contrário reservou ao autor críticas ásperas, fortemente polêmicas e mesmo veementes, mostrando-se totalmente indisponível para apreender o alcance inovador do método epistolar, usado por Florensky, além do conteúdo.
A reação da época mostra as profundas diferenças entre esses autores. Aqueles que citam Berdjaev com admiração e adesão geralmente não estão bem-dispostos em relação a Florensky, a quem não se perdoa, em especial para o nosso tema, o desdobramento de uma vasta competência nos vários campos do conhecimento em vista de um confronto veritativo com os núcleos básicos da experiência da fé cristã, repensados numa lógica de complementaridade, mais do que de oposição, entre Oriente e Ocidente.
É por isso que - sobre o russkij mir– Putin cita Berdyaev, e não Florensky (que, de fato, nunca me resulta mencionado), mesmo que nem mesmo Berdyaev possa ser considerado um eslavófilo, em sentido estreito.
Creio que mereça um discurso à parte Dostoiévski, o mais famoso escritor russo. Certamente nas páginas e páginas dos romances de Dostoiévski encontramos o narod'nost', portanto, a função salvífica do povo russo com os valores eslavo-cristãos contrapostos àqueles ocidentais. Mas acho que de sua imensa literatura não se possa tirar uma simples conclusão de eslavofilia.
Como se pode constatar em estudos muito interessantes de neurologistas como Norman Geschwind, a avaliação do seu trabalho, sobretudo na segunda fase, após a sua condenação, o falso fuzilamento, os anos de prisão, não pode ignorar o impacto da doença epiléptica de que Dostoiévski sofreu, principalmente depois de 1860 e até sua morte em 1881. Lembro-me das palavras colocadas nos lábios do personagem emblemático do príncipe Michkin em O idiota: “…o que importa se é uma doença, o que importa se essa tensão é anômala, quando seu próprio resultado é o instante da suprema percepção, lembrado e analisado em um momento de lucidez com o efeito que ele produz, harmonioso e sublime?”.
Em Dostoiévski, portanto, o sentido de uma dolorosa superioridade espiritual deve ser avaliado prestando-se a devida atenção também à condição patológica por ele vivencia no corpo e na mente, mais do que a uma teoria filosófico-cultural completa. Portanto, não sei, mesmo nesse caso, se é citado por Putin com razão.
Também gostaria de assinalar o que me parece ser uma omissão importante na galeria de autores mais aptos a sustentar o russkij mir, aquela de Lev Shestov. Ele está entre os filósofos-teólogos mais apreciados pela Igreja russa, quem mais ressalta a distância entre a cultura com os valores do povo russo e a cultura dos povos europeus.
Shestov escreveu livros inteiros para defender a antinomia entre a fé cristã ortodoxa e a razão ocidental produzida pelo catolicismo, como Sulla bilancia di Giobbe e Filosofia della tragedia; em particular, com o volume publicado em francês Athènes et Jérusalem, teorizou a impossibilidade da conciliação entre o mundo cultural de Atenas e o de Jerusalém, portanto entre a razão e a fé.
Shestov provavelmente não é citado por Putin porque – como outros filósofos e teólogos –deixou a Rússia em 1922, após a revolução, para se mudar para Paris, onde morreu. E, no entanto, Shestov é o epígono ideal dos eslavófilos, no século XIX.
Quanto a raiz eslavófila ainda deve ser considerada vital na cultura e na vida do povo russo?
Certamente existe uma Rússia profunda. Mas o que está acontecendo na Rússia é também o que se observa um pouco em todo o mundo, com a diferença, muitas vezes enorme, que existe entre os que vivem no campo e os que vivem nas cidades, entre os que vivem nas aldeias e os que vivem nas grandes metrópoles. As recentes eleições na Turquia evidenciaram claramente as diferentes orientações políticas e culturais daqueles que vivem na Anatólia em relação, por exemplo, aos que vivem em Istambul ou Ancara. Algo semelhante existe na Rússia: posso dizer isso por lembrança direta que tenho de Moscou ou São Petersburgo.
As novas gerações russas de grandes cidades, não há dúvida, têm como referência o Ocidente. O pensamento dos eslavófilos, com seu "mundo russo", não é algo que possa atraí-los.
Ainda existe uma Rússia pagã na Rússia cristã do campo e das aldeias?
Acho que Pavel Florensky já respondeu a essa pergunta em sua obra Primeiros passos da filosofia: trata-se de uma coletânea de conferências de 1909 na Academia Teológica de Moscou, nas quais o autor retrodatou em pelo menos 2.500 anos o nascimento da filosofia que, segundo a tradição, remonta ao século VI a.C. em Mileto.
Segundo Florensky, as categorias fundamentais da filosofia, em todas as culturas e não apenas na grega, já estavam contidas nos mitos que, ao contrário do que se pensava ou se pensa, não expressam um pensamento politeísta, mas a orientação para uma única divindade que se manifesta em diferentes formas ou deuses, assumindo os relativos nomes. Portanto, mesmo no pensamento pagão, mesmo naquele dos territórios da antiga Rus' anterior ao cristianismo, a realidade se manifestava aos olhos humanos, constantemente, na estreita relação entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino: esse é uma das pedras angulares da teologia – filosofia e ciência – de Florensky, sacerdote ortodoxo; desse ponto firme de experiência pessoal direta vem a própria ideia da divinização do humano. Isso explica o vínculo – ainda hoje existente na Rússia profunda – entre um paganismo, longe de insignificante, e o cristianismo ortodoxo, como um fato que, para Florensky, deve ser estudado e compreendido em suas raízes.
Por que Pavel Florensky absolutamente não pode ser contado entre os eslavófilos que se opõem ao Ocidente?
Porque toda a sua obra está decididamente orientada para a construção do futuro. Existem elementos biográficos que o confirmam. Como matemático e engenheiro – e muito mais do que ele era – Florensky foi chamado por Lênin, embora um pope não bem-visto pelo regime soviético, do qual mais tarde foi vítima e mártir, para trabalhar no plano de eletrificação da Rússia. Foi o redator responsável pelos verbetes de tecnologia da grande enciclopédia soviética. Um de seus principais textos científicos ainda é o ensaio Organoprojekcija, a projeção dos órgãos, em que formulou a ideia de continuidade entre a biologia e a tecnologia.
Tudo isso evidentemente nada tem a ver com a visão estática, voltada para o passado, como disse, dos eslavófilos e, hoje, do russkij mir. Tanto que a causa de beatificação que a Igreja russa havia empreendido na época foi abruptamente interrompida. Não só isso: toda referência à sua obra é apagada. Muito menos aparece nos discursos de Putin e Kirill.
Lendo algumas páginas de Florensky, você não acha que se possa também perceber um certo senso de superioridade da ortodoxia russa sobre o catolicismo?
Talvez. No entanto, creio que se trate de um chamamento a uma maior adesão aos valores evangélicos, além da convicção da importância do culto – permeado de grande beleza, como convergência e hibridização de palavra, canto e imagens dos ícones no rito russo ortodoxo – sobre a realidade.
Esses certamente não são os sinais que o Patriarca Kirill está agora recordando, quando reivindica a superioridade do mundo russo sobre o Ocidente degenerado. Seus discursos são mais políticos do que evangélicos, tanto que as divisões entre o patriarcado de Moscou e o de Kiev são apenas de natureza política: não há nada divisório do ponto de vista estritamente teológico.
É possível ir às raízes culturais – se é que existem – de uma certa agressividade verbal e sobretudo da atual agressão militar russa?
Sem explicar e muito menos justificar nada, acho que realmente hoje o “mundo russo” sente o perigo de uma possível extinção. Para esse “mundo” a ameaça é dupla: de um lado, existe – sim – o Ocidente, que pressiona com sua união político-militar entre os Estados Unidos e a Europa, através da OTAN; mas, pelo outro lado, não podemos esquecer o fato de que grande parte das repúblicas asiáticas que compunham a União Soviética são predominantemente de religião e cultura islâmicas, enquanto, do ponto de vista demográfico, a população cristã russo-ortodoxa, na própria Federação Russa está regredindo: os muçulmanos estão crescendo e os cristãos estão diminuindo. Também esse segundo fator está determinando uma enorme pressão psicológica, ainda que muito pouco declarada.
Nesse contexto, também deve ser avaliado o impacto da separação do patriarcado de Kiev daquele de Moscou com a concessão da autocefalia por Constantinopla em 2018: um evento trágico para aqueles que pensam que o "mundo russo" é único e unido, como eu disse. Esse evento não apenas reduziu o peso da Igreja russo-ortodoxa, mas também enfraqueceu muito o número e, portanto, a relevância cultural, religiosa e política dos cristãos ortodoxos no que era anteriormente o império soviético e russo.
Esse "sentimento" russo, muito pouco considerado em nossos lados, por si só fortalece o retorno do russkij mir e realimenta a missão de Moscou como "Terceira Roma" encarregada de salvar a cristandade autêntica com seus valores, tanto das degenerações ocidentais quanto da ameaça cultural islâmica. Assim, se olha para trás: para a Rus' de Kiev!
Por que esse medo da cultura islâmica não é explicitado e, enquanto isso, a Rússia ortodoxa está em guerra contra a Ucrânia, que também é cristã ortodoxa?
Certamente que é paradoxal e dramático. E, no entanto, a razão pela qual nem Putin nem Kirill podem expressar seus medos é bastante evidente: imediatamente, de fato, se alienariam as formas de aliança política existentes hoje, com a Turquia, com os países árabes, com todo o mundo oriental, com os próprios soldados não cristãos que estão combatendo e morrendo na Ucrânia pela Rússia.
Qual é a contribuição que a cultura pode dar para tentar sair da situação horrível gerada por esta guerra?
Como palestrante – com Roberto Battiston e Edoardo Boncinelli – do Festival de Ciência e Filosofia de Foligno, propus este ano, em abril, abrir a conferência com uma entrevista a Romano Prodi, porque Prodi – como Presidente da Comissão Europeia de 1999 a 2004, tinha inteligentemente cunhado a definição de uma Europa alargada "dos Pirenéus aos Urais", tentando uma relação política e cultural constante – não apenas energética e, portanto, não apenas contingente – com a Rússia. Por muitas razões, que Prodi pode explicar, o intuito subjacente à definição não foi concretizado.
Devemos agora intensamente nos perguntar, a meu ver, que consequências aquele fracasso produziu em relação à perene oscilação russa entre o Oriente e o Ocidente: provavelmente a Rússia, que se sentiu rejeitada pela Europa, achou por bem, mais uma vez, procurar em outro lugar.
Eu me pergunto o quanto o fracasso do projeto de Prodi, que agora deveria ser bem lembrado, produziu um efeito de reação na Rússia, dando novo fôlego àqueles que se declaram abertamente eslavófilos e promotores do russkij mir, assumindo-se como herdeiros da mais pura identidade russa.
Você acredita que uma relação diferente entre a Europa e a Rússia teria sido possível após a queda da União Soviética? Com que líder?
Sim. Certamente com Gorbachev, menos com Yeltsin, talvez com o próprio Putin nos primeiros anos de sua presidência.
Existe algo mais que a cultura italiana – também eclesial – possa fazer?
Claro, pode-se e deve-se tentar dissolver e combater o ostracismo que se formou contra a cultura russa neste último ano: digo isso em nosso próprio interesse como italianos e europeus. Se não estudamos e não conhecemos a cultura russa em profundidade, evidentemente nos impossibilitamos de entendê-la e, portanto, compreender as decisões dos russos. Eu certamente não estou dizendo que temos que compartilhar suas escolhas, mas sim as entender.
Justamente o semiólogo Lotman, que mencionei no início, com Andrej Kolmogorov, um dos maiores matemáticos do século XX, corrigiu, enriqueceu e aprofundou a ideia tradicional da comunicação. A condição indispensável para que ocorra uma comunicação autêntica, entre um emissor e um destinatário, é que o primeiro conheça e possua o modelo cultural do segundo para se fazer entender, enquanto, por outro lado, o segundo conheça e possua o modelo cultural do primeiro para poder lhe responder no mesmo nível.
Ou seja, esses homens de ciência integral, russos, destacaram o quanto é importante para comunicar, falar, compreender, se conhecer "colocar-se no lugar do outro". Se não estiver presente essa capacidade, determinada pelo conhecimento, a comunicação está fadada a se fechar ou falhar. Os dois autores escreveram isso em tempos insuspeitos, na década de 1970. Mas eles poderiam muito bem tê-lo escrito nos tempos em que estamos vivendo.
Ora, se falta o esforço para "colocar-se no lugar do outro", ainda que com razão o consideremos um "inimigo", ou se até mesmo teorizamos a necessidade de fechar todas as portas de acesso à cultura russa, como poderemos propor pôr um fim a esta guerra, não apenas de maneira provisória e contingente, mas permanente? Esse esforço é francamente inexistente hoje. Eu não o vejo. Enquanto isso, só posso almejar e me empenhar, tanto quanto puder, para que seja retomado, com um estudo intenso e renovado.
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As referências culturais de Putin e Kirill. Entrevista com Silvano Tagliagambe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU