13 Mai 2023
Filósofo, sociólogo, autor, professor e, acima de tudo, um pensador desalinhado. Aos 78 anos, o francês Gilles Lipovetsky é um dos intelectuais mais reputados da sua área – ainda que não seja um nome consensual e muitas vezes expresse visões controversas.
Participou nos infames protestos de maio de 1968 em Paris, tendo começado por se identificar com o marxismo. Eventualmente, acabou se afastando dessa corrente política e econômica ao aceitar o capitalismo como o único modelo viável, ainda que não se contenha a criticar os seus vários aspetos.
Quando publicou o seu primeiro livro, A era do vazio, em 1983, tornou-se um filósofo de renome internacional. Esse trabalho incidia muito sobre a crescente individualização e consumismo na sociedade capitalista, temáticas a que ficou sempre associado. Comunidade Cultura e Arte o entrevistou, agora, a propósito de uma conferência em que participou em Lisboa.
A entrevista é de Ricardo Farinha, publicada pelo portal português Comunidade Cultura e Arte, 05-05-2023.
Tornou-se muito conhecido com A era do vazio, em 1983. Acredita que a sociedade do individualismo e do hiperconsumo evoluiu da maneira que esperava?
Acredito que as análises que constituíam A era do vazio são na maior parte verdadeiras e até diria que os grandes fenômenos vieram para ampliar ainda mais o processo. O primeiro foi nos anos 1980, com o neoliberalismo, que generalizou o mercado em todo o lado e que desenvolveu outras maneiras de individualização e de consumo. A sociedade contemporânea conduz as pessoas a estarem em competição permanente e, então, a individualizar os comportamentos.
O segundo fenômeno está nas redes sociais e na explosão da Internet, e não é difícil de ver. Toda a gente tira selfies e comunica de forma permanente. A individualização continua. O que não quer dizer que não houve mudanças que eu não tenha previsto. É evidente que as ameaças do populismo no momento de A era do vazio… A extrema-direita existia, mas era muito minoritária. Agora, estão em diferentes países às portas do poder. Desenvolveu-se – e por razões que têm a ver com a individualização.
O outro grande fenômeno é a crise climática e ecológica. Ela existia no momento de A era do vazio, mas só se falava da poluição. Para as pessoas não havia essa consciência de uma ameaça sistemática. Agora, sim. E é um desafio gigantesco. Claro que isto conduz a fenômenos novos. Será que a crise climática poderia ser resolvida sem limitações à individualização? Em algumas cidades, já nem se pode dirigir o nosso próprio carro. Talvez nos grandes estados se pudesse deixar de utilizar um avião. Claro que isso não vai acontecer. Mas, imaginemos o aumento do calor em 2%. Como sabe, seria um desastre terrível.
Não vejo como uma individualização extrema poderia continuar. Neste momento, há que enfrentar isso. E pode haver outras formas de individualização. Se você nunca mais andar de carro para que não haja emissões de CO2, pode ir de bicicleta. Não tenho certeza de que isso seja contrário à individualização. Seria ótimo o desenvolvimento dos transportes comuns, como os elétricos, os autocarros, os trens... Sabe aquele culto de andar de carro e fumar um maço de cigarro? Acho que haverá uma limitação, sim.
Mas, acredita que atingimos a expressão máxima do individualismo?
Pergunta difícil. Como sabe, sou favorável à individualização. Sobretudo, quando se olha para a condição das mulheres. Isso imediatamente acalma o debate. Para todos aqueles que gritam contra a individualização, coloco uma questão muito simples: acabemos com essa individualização mundialmente, mas então acabaríamos com a condição da mulher… As mulheres já não poderiam deixar de se casar, se não quisessem, já não estudariam, não haveria mais contracepção… Conhecem alguma mulher no ocidente que queira esse retrocesso? Não, nem os homens.
Aqueles que protestam contra a individualização é mais um protesto retórico. Penso que há coisas que nunca mais voltarão a se reproduzir. O direito de conduzir a sua vida familiar, sexual, de escolher uma profissão… Estamos indo cada vez mais longe. Não devemos estar muito longe do ponto máximo. Quando consideramos as pessoas LGBT: “Eu decido que eu sou uma mulher. Então, decido mudar o meu estado civil”. Isso é uma individualização extrema. “Nasci como um homem, mas decido que sou uma mulher, então sou uma mulher”. É uma exacerbação do individualismo.
Evidentemente, deixo de lado a hipótese da guerra. Porque, com a guerra, a lógica da individualização não morre, mas para completamente. Se houver um cataclismo natural ou uma guerra… Temos que ser prudentes. Penso que a lógica da individualização vai continuar, mas também haverá medidas de limitação. Desde o Direito ao consumo da energia como queremos.
Agora com a seca, por exemplo, as pessoas que têm piscinas… Você pode adorar a sua piscina, mas existe um interesse coletivo. Imagine uma seca incrível. Não conseguimos ver que cada um vá dizer “ah, mas isto é a minha piscina, preciso de água”. Vai haver controle e isso é justo. Antes, isso era muito estranho, no dito período da abundância, mas agora não. Vamos ter falta de água, água é vida, e se não a temos… Há muitos fenômenos que travam os apetites individuais.
Seria possível vivermos em uma sociedade mais coletivista? Seria benéfico se houvesse mais causas que nos unissem? Ou, por outro lado, se assim fosse, nos dias que correm, provavelmente significaria que seria uma tendência mais autoritária e populista?
Estamos, é verdade, em uma sociedade hiperindividualista. Hiper porque o individualismo nasceu no século XVIII, mas era limitado, daí as mulheres não poderem fazer o que queriam, isso não existia. Para os jovens também. Tal como para os gays e as lésbicas. Passamos de um individualismo limitado a um individualismo extremo. Porque já ninguém está excluído disso. Os velhos, aos 75 anos, divorciam-se. Antes, os velhos aguardavam tranquilamente pela morte. Agora, não: “vou me casar de novo, fazer a minha vida!”. Mas a hiperindividualização foi muitas vezes analisada como um desinteresse pelas causas coletivas. Isso não é completamente verdade. Há muitas causas que nos unem.
Acredito que a maior parte das pessoas de hoje em dia seja consciente sobre a crise ecológica. A esmagadora maioria da população é contra a violência sobre as mulheres e as crianças. Não há só coisas que nos desunem. Há coisas que são largamente consensuais. Claro que estamos desunidos. Mas não é necessariamente e completamente negativo. Por que se não houvesse conflitos, estaríamos em uma sociedade democrática? A sociedade democrática implica que haja desacordos. Cada um defende um ponto de vista. É o preço da liberdade. Se viveríamos melhor… Não tenho certeza. Penso que o debate, o conflito e os antagonismos são positivos. A condição é que não tragam violências graves, é esse o problema. Mas que tenhamos um debate, que você tenha uma posição e eu outra, e que se respeite a maioria, é a lei da democracia.
É verdade que há muitos cidadãos que já não votam, que se desinteressam pelas eleições, mas não quer dizer que não tenham interesse sobre todos os problemas. Informam-se, dizem as suas opiniões nas redes sociais. O engajamento político já não passa forçosamente pelos mesmos canais. O que desapareceu foi a centralidade da luta de classes à moda antiga. E há um engajamento mais volátil. Por exemplo, a vida das associações é extremamente forte, hoje, nas democracias. As pessoas envolvem-se. Pela vida nos hospitais, pelas mulheres, pelas crianças, pelos gatos…
Temos uma multiplicação das associações, que são formas de combate e de interesses para a causa coletiva. Mas já não passa pelos partidos políticos. Há muita gente que já não acredita neles. Eu não estou dizendo que eles têm razão. “Eu não voto”. “Mas porque é que não vota?” “Ah, porque isso não serve para nada”. Mas não quer dizer que essas pessoas não tenham ações. Podem envolver-se em outras formas de combate. Na França, há mais de um milhão de associações. Há cada vez mais pessoas que dão o seu tempo aos outros.
O hiperindividualismo não destruiu a ligação social, não destruiu o gosto em ajudar. Mas não de uma forma cristã, de sacrifício pessoal. As pessoas não querem sacrificar-se. Mas podemos fazer coisas pelos outros. Penso que causas não faltam, nem ações da parte das pessoas. O que é mais complicado é que temos dificuldades em encontrar meios para que o poder político saiba mobilizar a sociedade. Houve um corte entre os cidadãos e os líderes dos partidos políticos. É uma doença da democracia.
Não é desinteresse, é desconfiança. As pessoas já não confiam em nada, nos partidos, no governo, no parlamento, no presidente, nas instituições. Temos uma desconfiança e quase um ódio entre os cidadãos e os responsáveis. E é isso que alimenta o populismo. Aí há um problema. Mas as causas coletivas… Nunca houve tantas. Não estou preocupado com isso. Estou mais preocupado com a relação do cidadão com as elites. Porque tudo isso é depois tomado pelas fake news, e cria uma sociedade muito problemática. Uma sociedade na qual os cidadãos já não têm confiança nos dirigentes… Para onde é que vamos com isso? Isso é a porta aberta para os extremismos.
Seria possível existir uma democracia mais participativa que diminuísse a distância entre as elites políticas e os cidadãos?
Seria ótimo irmos por essa via. Temos que encontrar uma nova forma de escutar. Temos uma sensação na democracia de que os dirigentes não ouvem os cidadãos. Ora, temos que reduzir isso. Se não, vamos ter problemas. Devemos encontrar formas de participação. E reduzir as injustiças muito grandes, as desigualdades insuportáveis. Não é pelo dinheiro, é simbólico. Mas quando temos 1% da população que tem 30% ou 40% da riqueza, é exagerado.
Não estou dizendo que temos de acabar com a riqueza. Mas vivemos em uma sociedade e, francamente, não é justificado que haja uma diferença gigantesca. É difícil de gerir. E temos de melhorar a noção de justiça social. Temos de fazer um esforço suplementar na educação, porque toca aos pais, porque tem a ver com o futuro dos filhos. Temos de desenvolver a formação permanente e devemos desenvolver, sobretudo, no nosso ocidente, o serviço público. Que está travando um pouco o mercado. E serviços públicos que não sejam tão tecnocráticos.
Na França, temos, por exemplo, um sistema muito eficaz na via férrea. Muito bem, mas os investimentos são enormes para concretizar isso. Houve um endividamento enorme para financiar os caminhos de ferro. E o resultado é que quando vamos pegar um trem todos os dias para ir para o nosso trabalho a 30 km, o trem não funciona. Não há muitos. Então, você é obrigado a ir de carro. Penso que são tecnocratas, engenheiros, que acham isto dos trens modernos… É uma coisa boa, mas não pode ser só para quadros superiores que viajam de trens rápidos.
Então, e o povo? Ninguém se ocupa de nós? O resultado: o trem fica mais caro do que utilizar o carro. Está tudo doido? Nos anos 1970, pegava-se o trem e não era nada caro. Agora, pegamos um trem e é mais caro do que um avião na França. Então, mas por quê? Acho que fomos depressa demais. Temos de modernizar, mas também existe a vida das pessoas. É uma medida que não é má, mas cria uma distância com o poder. Dizem: “o poder não se preocupa com a nossa vida. Eles querem trens rápidos a 300 km por hora. Então, e eu?! Vou trabalhar e não tenho trens?”.
Claro, é compreensível.
Temos de ter isso em conta e não olhar simplesmente para o progresso. Uma sociedade tem que avançar ao seu ritmo. É bom modernizar, como haver trens rápidos entre Madrid e Lisboa, mas se querem TGV em todo o Portugal também já não vai haver pequenos trens… Isso não é em nada uma coisa boa.
Mencionou o ensino e os serviços públicos. Acredita que a sociedade deixou de valorizar os professores? Tem sido uma classe muito desgastada e tem havido muitos protestos, aqui, em Portugal.
Na França também. Houve uma degradação dos salários e na estima social. Podemos lembrar-nos do professor do primário antigamente… Era uma pessoa importante e respeitada. Agora?! Agora, já não há nenhum professor que seja respeitado. Isso não é nada bom, pois precisamos dos professores para que as crianças aprendam. Aprendem muito em função da relação com o professor. E todos os pais sabem disso. Uma criança pode ter resultados muito bons, e muito maus no ano seguinte. Muitas vezes, porque a relação com o professor não foi boa. E as crianças são sensíveis a isso. As consequências são enormes.
Penso que temos de repensar a educação. Porque somos sociedades de inteligência, de inovação, e isso é essencial. Temos de formar cidadãos sábios. Depois temos a Internet, mas não vai fazer com que os cidadãos sejam sábios. Vai informar aqueles que já são sábios. Mas para a maioria, eles já encontram aquilo que querem. Não abre os horizontes. Porque existem as falsas informações… Se permanecermos na nossa rede social, não vemos o resto. Contra isso, não vejo algo…
Só há duas coisas que poderão ajudar: a família e a educação. A família não tem muitas ações, mas a escola sim. Penso que se deve revalorizar as profissões do ensino. Devemos fazer um enorme trabalho de formação dos professores. E isso não é fácil. Porque os professores formam as crianças, mas quem forma os professores? E como? Isso é uma grande obra, mas é essencial. Se se põe muito dinheiro nos professores, mas eles não são bons, isso é perder dinheiro. Isto tem a ver com qualidade e julgo que não tivemos isso em conta.
Eu sou favorável a medidas extraordinárias. Porque é que há prêmios na área da economia, o prêmio do melhor filme ou da melhor série de televisão, o prêmio de campeão de futebol da Europa [bate com o punho na mesa], e qual é o reconhecimento que os professores têm? Como se não fossem nada? Mas o jogador parece que é a diva do século. Fico escandalizado. Os jogadores não mudam a vida das pessoas, os professores sim.
Também mencionou a questão das redes sociais e de muitas vezes as pessoas estarem presas em bolhas de informação, por lerem ou verem sempre opiniões de pessoas que pensam da mesma forma que elas, por isso são sempre visões semelhantes. Acredita que isto contribui para que haja menos espírito crítico dos cidadãos?
Não sei se é taxativo. Não sei se o espírito crítico desapareceu. A realidade é que existe agora mais espírito crítico. O espírito revolucionário OK, mas é outra coisa. Mas as pessoas são críticas, sobretudo. Criticam a escola, a televisão, os professores, as maçãs e as laranjas que comem, os preços de todas as coisas…
Mas, muitas vezes, podem ser críticas mais vazias e muitas vezes associadas, e aproveitadas, por movimentos populistas.
Bem, na França, o espírito crítico… Já não se pode fazer nada que vêm logo criticar. Eu não poria o problema assim. Eu não vejo o colapso do espírito crítico. Onde se deve trabalhar isso tem a ver com a escola. Nós não somos pré-capazes de desenvolver as paixões por outra coisa que não seja o consumo. E isso é muito chato. Não é que as pessoas já não tenham espírito crítico, elas têm. Mas a vida delas é comprar, viajar…
Acho que uma sociedade rica deve ser criativa. Claro que a escola deve desenvolver o espírito crítico, mas não é suficiente. A escola deve desenvolver o amor pela criatividade, pela expressão, por fazer coisas pessoais. Mas, infelizmente, consideramos isso uma coisa sem interesse. Não é falta de espírito crítico, é falta de paixão para se viver as coisas fortes fora do mercado. E aí a escola, o lugar da arte…
Nós devemos ensinar as crianças a ouvir música no Spotify, mas também podemos ensinar a que toquem em uma banda. É melhor, traz muito mais felicidade, que vai durar toda a sua vida. O Spotify, sim, é bom, OK, entretém, mas eu sou por uma escola que cria desejos. Não tenho a certeza de que estejamos conseguindo isto.
Falamos sobre vários problemas da sociedade capitalista, no geral. Acredita que a meritocracia existe plenamente em uma sociedade como França ou Portugal?
Já a temos. E ainda bem que há elites. O que seria bom é que essa elite não cultivasse um mito de cada um com a sua… Mas é necessário, como dizia há pouco, ter em conta a vida das pessoas. A meritocracia não me causa problemas. O que me transtorna é uma meritocracia obcecada pela modernização, que não escuta a sociedade. Olhe para o sistema de saúde, acho que vocês têm o mesmo problema. Há técnicos, com os seus computadores, fizeram cálculos e resultado? É que hoje, se quero agendar uma consulta com o oftalmologista, preciso de esperar seis meses. Não formamos médicos suficientes e a população está envelhecendo. Deveríamos ter feito o contrário. Mas, durante 30 anos, eles continuaram economizando. E agora é um desastre, não temos médicos.
A França é a sexta potência mundial e não há médicos. Uma meritocracia destas é nula. Podemos compreender, assim, que as pessoas se desinteressem. Não se pode fazer nada. Já não temos escolas, as pessoas estão a não sei quantos quilômetros de um médico… Têm de se encontrar soluções, mas agora também é tarde demais. São necessários 10 anos para formar um médico. Como é que vamos fazer? As pessoas vão começar a viver, mais ou menos, até aos 100 anos. Como é que vamos fazer com as pessoas idosas? Ninguém se preocupa com elas, é incrível.
Há uma cegueira da meritocracia. Mas não é nada contra as elites, nós precisamos de elites. Nomeadamente, científicas. Não se deve mandar para o diabo as elites técnicas e científicas, porque são elas que poderão ajudar com os grandes desafios. Como o que sucedeu com a Covid-19. Há pesquisadores magníficos que estão trabalhando. A diabolização das elites… Antes, pelo contrário, temos de as recompensar.
Já afirmou que o desafio climático é o desafio do século. Sente-se otimista em relação a este século?
Conheço, como toda a gente, os relatórios. E os resultados não são bons. Penso que a humanidade não vai desaparecer. Vamos, pouco a pouco, encontrar as soluções, mas os desastres… É um otimismo moderado. Porque na inteligência científica temos meios técnicos, mas depois temos de pôr mãos à obra, não é? Temos de colocá-los para funcionar.
O aquecimento do planeta vai acontecer, a Terra não vai desaparecer, mas há centenas de milhões de pessoas que vão ter condições horríveis e é esse o problema. Depende de como enxergamos a coisa. A vida humana vai continuar. Mas o preço será grande para muita gente. As ilhas, as regiões secas, como é que essas pessoas vão viver? Vão desaparecer. Vai haver centenas de milhões de migrantes. Como vamos fazer para receber esses migrantes?
Esta entrevista contou também com o trabalho da intérprete Anna da Palma.
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“Eu sou por uma escola que cria desejos”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU