04 Abril 2023
"A bússola estratégica do Brasil não é a guerra, nem deve ser a participação em guerras futuras de terceiros países, e é por isto que a hierarquização dos seus grandes objetivos nacionais e dos seus grandes eixos de investimento acaba sendo mais complexa do que no caso dos países que estão envolvidos com a guerra", escrevem José Luís Fiori e William Nozaki.
Fiori é professor emérito de Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo” e do laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/UFRJ. Fiori é pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP) e colaborador das revista Cadernos Cris-Fiocruz, Informe sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde.
Nozaki é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, com ênfase em Ciência Política, e mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com ênfase em História Econômica. Atualmente é doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, docente do curso de Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP, onde também coordena a Cátedra Celso Furtado.
A história do debate latino-americano do século XX, sobre a “questão do desenvolvimento” é bastante conhecida, assim como a história da ascensão e declínio das políticas desenvolvimentistas praticadas no período entre a Segunda Guerra Mundial e a “crise econômica americana”, que marca o fim do sistema de Bretton Woods, no início da década de 70.
Durante este período, a hegemonia das teses e “políticas desenvolvimentistas” foi sustentada pelos Estados Unidos e apoiada pelos países europeus, como resposta às teses econômicas socialistas que exerceram grande influência teórica e política em todo o mundo durante todo o período da Guerra Fria. Mas durante a década de 70, o fim do sistema de Bretton Woods e a derrota militar americana no Vietnã, somados à alta do preço do petróleo e das taxas de juros, provocaram em conjunto a primeira grande crise e recessão da economia mundial do pós-Segunda Guerra.
Alguns chegaram a falar numa “crise terminal da hegemonia americana”, mas foi exatamente esta crise que abriu as portas para uma mudança drástica na política externa, e, sobretudo, na política econômica dos Estados Unidos. Foi nesta década de 70 que os Estados Unidos deixaram para trás o seu projeto desenvolvimentista do pós-Guerra, e passaram a defender em todo mundo (menos nos Estados Unidos), sua nova estratégia neoliberal de desregulação e abertura dos mercados nacionais, privatização das empresas estatais, desmontagem das políticas de bem estar social, e globalização das grandes cadeias produtivas e dos mercados financeiros.
Essas reformas liberais deveriam ser acompanhadas pela adoção da mesma política macroeconômica ortodoxa em todos os países capitalistas tutelados pela política de juros do Banco Central americano e pelo sistema bancário e financeiro europeu (“free markets and sound money”).
O abandono completo do projeto de “estado desenvolvimentista” deu origem à aposta exclusiva na força motora dos “mercados globalizados”. Esta mesma estratégia foi adotada por quase todos os países capitalistas do “mundo ocidental”, e teve um impacto profundo nos países latino-americanos, com a redução ao mínimo do investimento público submetido à austeridade fiscal e à sanção instantânea dos agentes privados e públicos coordenados pelos “bancos centrais independentes” de cada país em particular.
Entretanto, nesta terceira década do século XXI, os Estados Unidos e seus satélites europeus, uma vez mais, estão deixando para trás esta estratégia econômica global, constrangidos pelos seus próprios fracassos, expressos na assimetria de desenvolvimento, na hiperconcentração de renda e riqueza, na explosão da miséria e do desemprego, nas instabilidades e crises financeiras, nas emergências climáticas e ambientais, na fragilização das democracias e no avanço da extrema-direita.
A todos esses problemas se somam ainda aos efeitos “desglobalizantes” da pandemia de COVID-19 e seu impacto disruptivo sobre as cadeias internacionais de produção e distribuição, por exemplo, de fármacos, fertilizantes e alimentos. Além disso, a Guerra entre Rússia e Ucrânia tem deixado impactos econômicos deletérios sobre o mercado internacional de energia e sobre as taxas de inflação do bloco euro-americano de países.
A crise que está em pleno curso não tem nenhuma perspectiva imediata de solução ou mudança de rumo, pelo contrário, tudo indica que deva se arrastar por um longo período, talvez por toda a década de 2020, com consequências econômicas e financeira que devem mudar o desenho geoeconômico do mundo projetando-se sobre toda a primeira metade do Século XXI.
Desta vez, portanto, a mudança da política econômica internacional dos Estados Unidos e dos demais países do G7 e seus satélites, e também da Rússia e demais economias nacionais do sistema mundial, está se dando por pressão dos fatos e sem nenhum tipo de defesa ideológica ou teorização econômica. Em todos os casos, os governos destes países voltaram a dar primazia econômica ao princípio da sua segurança e da sua defesa nacional, deixando de lado suas antigas crenças nas virtudes autônomas dos mercados.
No caso dos Estados Unidos, da Europa, da Rússia e da China, e de vários outros países envolvidos no confronto geopolítico e militar que está em curso, suas novas políticas econômicas estão cada vez mais submetidas aos desígnios estratégicos dos seus governos. Sem se submeter nem levar em conta a opinião da imprensa liberal e as críticas tradicionais dos economistas ortodoxos às políticas econômicas de corte “mercantilista”, “nacionalista” ou “protecionista”.
Ninguém dentro destes governos está preocupado neste momento com o fato de sua política econômica ser mais ou menos ortodoxa ou heterodoxa, e todos vão aderindo às
novas políticas através de decisões emergenciais que vão sendo tomadas a cada dia, como resposta ao desafio militar imediato, e à crise econômica e social que está se avolumando dentro dos principais países envolvidos na Guerra da Ucrânia.
Estes mesmos países vem tomando decisões e levando à frente políticas cada vez mais voltadas para as possíveis guerras futuras que estão ameaçando o seu. Na verdade, cada vez mais, a guerra está se transformando na bússola comum que vem orientando os principais investimentos públicos e privados destas grandes potências. Mas mesmo no caso dos países distantes da guerra, o que todos tem em comum neste momento é uma preocupação cada vez maior com o problema da sua segurança, seja ela industrial, tecnológica, alimentar, energética ou sanitária.
Ao que tudo indica, o sistema mundial hegemonizado pelo bloco euro-americano já se fragmentou e não há nenhuma perspectiva neste momento de que a nova “ordem multipolar” venha a ser consagrada por algum grande acordo diplomático, ou por algum grande Tratado de Paz. Da mesma forma, declina a passos largos a hegemonia do dólar dentro do sistema econômico eurasiano, abrindo portas para nascimento progressivo de um novo sistema econômico mundial plurimonetário.
Situado ao sul do continente americano, o Brasil também vem enfrentando o desafio de redefinir sua inserção internacional no meio deste tufão que está sacudindo os alicerces geopolíticos e econômicos do sistema internacional construído depois da Segunda Guerra, e, em particular, depois do fim da Guerra Fria.
O Brasil encontra-se neste momento sob a pressão simultânea da velha e da nova ordem em construção. Ou seja, encontra-se com um pé geográfico e militar no hemisfério ocidental, e o outro pé econômico e financeiro cada vez mais envolvido com a China e com o grupo do BRICS, sofrendo a pressão simultânea, geopolítica e financeira, dos dois lados deste mundo em transformação. Pressionado, o Brasil não tem como se desfazer, nem tem por que abrir mão neste momento, destas suas várias conexões e articulações mundiais.
Mas, ao mesmo tempo, o país não tem como avançar em meio a este nevoeiro se não for capaz de construir, por sua própria conta, a bússola que deve orientar seus investimentos públicos e seus acordos econômicos e tecnológicos com os grandes capitais privados, nacionais e internacionais que se proponham investir na economia brasileira.
A bússola estratégica do Brasil não é a guerra, nem deve ser a participação em guerras futuras de terceiros países, e é por isto que a hierarquização dos seus grandes objetivos nacionais e dos seus grandes eixos de investimento acaba sendo mais complexa do que no caso dos países que estão envolvidos com a guerra.
Esta discussão pode tomar tempo para amadurecer, mas é preciso começá-la imediatamente. E é com este objetivo que reunimos e colocamos sobre a mesa algumas ideias e propostas que não são novas, mas que podem ter sido esquecidas ou obscurecidas pelo fanatismo ultraliberal que tomou conta do debate sobre política econômica.
Nunca é demais lembrar, somos um país de território continental, de demografia populosa, de cultura diversa, e, portanto, com vocação para nos desenvolvermos geograficamente em múltiplas dimensões. A superação da pobreza e a construção da riqueza da nação dependem de construirmos a nossa própria bússola.
Os arcabouços fiscais e monetários são meros instrumentos para viabilizar onde queremos chegar, são meios e não fins em si mesmos. Saber o lugar que pretendemos atingir - sobretudo na atual conjuntura internacional de reativação do papel do Estado, do investimento e da segurança - exige que saibamos em que regiões, setores e projetos devemos apostar, começando por um mapeamento simultâneo das áreas, desafios e oportunidades em que as nossas vantagens comparativas e competitivas podem estar a serviço da reindustrialização. Ao Norte temos a Floresta Amazônica, área com potencial para desenvolvermos uma bioeconomia baseada em recursos naturais, biodiversidade e florestas, com um modelo intensivo em CT&I e mobilizador de redes de conhecimento produtivo, capaz de aproveitar as vantagens comparativas do bioma Amazônia e capaz de se articular ao sistema de provisão do SUS por meio de biofármacos e bioquímicos, itens em que nosso coeficiente de importação é altíssimo.
Ao Sul temos uma região historicamente estratégica, a Bacia do Prata, área propícia para a construção de uma infraestrutura capaz de fazer com que o país volte seus olhos para a América do Sul e para o Pacífico, num modelo que estimule a integração sulamericana e que facilite a conexão com os principais parceiros comerciais da região na Ásia, um projeto, por seu turno, que pode ser materializado na construção de infraestrutura bioceânica que liga o Atlântico ao Pacífico.
Ao Leste temos os olhos voltados para o Atlântico e a África negra, com potencial para o avanço de uma indústria offshore capaz de mobilizar recursos naturais estratégicos energéticos e minerários, orientada pela verticalização de cadeias produtivas que nos permitam alcançar autossuficiência em refino, gás e fertilizantes, os principais itens da nossa pauta importadora.
Ao Oeste temos o coração estratégico voltado para a integração nacional, que para se consolidar deve conter a expansão predatória e ilegal da fronteira agropecuária em favor do estímulo a novos sistemas agroalimentares mais inovadores e com compromissos socioambientais.
O país tem potencial para desbravar novas fronteiras associadas a recursos naturais estratégicos, com o do lítio e dos novos minerais energéticos, e a recursos industriais e tecnológicos, como a produção de semicondutores e circuitos integrados, fundamentais para todos os segmentos ligados à chamada Quarta Revolução Industrial.
Hierarquizar os objetivos e projetos dentro destas grandes áreas é um trabalho político que tomará tempo, porque não se trata de uma problema puramente técnico, ou mesmo econômico, e envolverá uma negociação permanente entre grupos de interesse que são extremamente heterogêneos e possuem um poder extremamente desigual.
Mas, mesmo assim, a definição destes objetivos e a construção desta “bússola” é uma tarefa urgente e incontornável. Sem ela, o país pode alcançar o pleno “equilíbrio fiscal” e se transformar em um barco encalhado à espera dos mercados e dos investimentos privados, quando em todo o resto do mundo os estados já estão atuando agressivamente, conscientes de que o capitalismo não opera - sobretudo nas suas horas de crise - como uma mera economia de mercado, mas funciona sim, como dizia o historiador francês Fernand Braudel, como um verdadeiro “antimercado”.
[1] Este texto reflete apenas e tão somente a opinião dos autores, e não necessariamente das instituições a que estão vinculados.
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De volta à questão do desenvolvimento e à necessidade de uma “bússola de investimentos”. Artigo de José Luís Fiori e William Nozaki - Instituto Humanitas Unisinos - IHU