12 Janeiro 2023
Agora que Bento XVI está enterrado nas Grutas do Vaticano, uma era de confusão e ambiguidade está chegando ao fim. E não é por acaso que só agora Francisco recebeu para uma reunião D. Gänswein, terminando a punição de seu "exílio". Sim, foi uma época de confusão e ambiguidade porque em toda a história da Igreja Católica nunca existiu um “papa emérito”. Aqueles que renunciaram ou foram forçados a se aposentar mantiveram o título de cardeal no máximo (mas nem sempre). De qualquer forma, ele desapareceu completamente da cena pública.
O artigo é de Marco Politi, jornalista italiano especializado em assuntos do Vaticano, publicado por Il Fatto Quotidiano, 12-01-2022.
A ideia de conceder a si mesmo o status de pontífice emérito e manter o hábito papal branco foi invenção de Ratzinger, provavelmente incentivado por seu secretário Gänswein que já era contra sua renúncia. Teria sido melhor – e mais coerente com a humildade e a nobreza de Ratzinger – seguir o exemplo de Celestino V: despojar-se de todas as vestes pontifícias e vestir a túnica de monge.
Já sabemos que Francisco pretende eliminar o mal-entendido dos "dois papas": no futuro, falar-se-á apenas de um bispo emérito de Roma.
Mas, nesse ínterim, houve ambiguidade por uma década. Uma personalidade vestida de branco, aliás alojada dentro dos muros do Vaticano, atuou como um “segundo polo” silencioso no pontificado de Bergoglio.
É errado acreditar que sua presença tenha retido os conservadores. Nunca foi assim. Por uma razão muito simples: Ratzinger nunca quis se envolver nas manobras antifranciscanas da frente conservadora. Ele nunca quis ouvir aqueles que o procuravam para reclamar das propostas reformistas do Papa Francisco. Ele sempre enfatizou que "ele é o Papa... ele e ele sabe o que está fazendo".
Ao fazer isso, ele mostrou lealdade ao seu sucessor. Mas a história termina aqui. A frente conservadora-tradicionalista se mobilizou contra Francisco de uma forma nunca vista contra um pontífice nos últimos cem anos (afirma Andrea Riccardi). Petições foram lançadas contra Francisco, cardeais de alto nível questionaram publicamente suas posições teológicas, conferências convocadas a poucos passos do Vaticano falaram de suas "teses heréticas", um arcebispo-núncio exigiu perante a opinião pública mundial que Bergoglio deixou o papal trono!
Nesse sentido, a mera permanência no Vaticano de uma personalidade pontifícia era um ponto de referência para os opositores do reformismo bergogliano. Com efeito, nos últimos dias desejou-se esquecer que Ratzinger não foi apenas o teólogo e pensador que pregou o indispensável diálogo entre fé e razão. Este diálogo, que ele praticou antes de sua eleição com Jürgen Habermas ou Paolo Flores d'Arcais e continuou nos últimos anos no retiro de seu convento vaticano com Piergiorgio Odifreddi.
Por outro lado, em termos de governo, quando Bento XVI ocupava o trono de São Pedro, o pontífice alemão era o incansável promotor de uma guerra cultural com a modernidade em nome de “princípios inegociáveis”. Quem já viveu na Itália não pode esquecer a feroz oposição liderada pela Conferência Episcopal Italiana – com a expressa bênção de Ratzinger – contra o referendo sobre a fertilização heteróloga e o primeiro projeto de lei sobre as uniões civis (governo Prodi). Por meio de uma mobilização frenética de associações católicas e de políticos obedientes à hierarquia eclesiástica, o referendo foi sabotado e o projeto de lei do chamado Dico acabou derrubado.
Se nos Estados Unidos explodiu nos últimos anos o debate na conferência dos bispos americanos sobre a legitimidade ou não de dar a comunhão a políticos democráticos que defendem a lei do aborto, esse é um fenômeno produzido pelas guerras culturais favorecidas pela doutrina de Ratzinger.
Ainda hoje tudo o que se move entre os grupos de cardeais e bispos em manobras de ataque doutrinário a Francisco se baseia no legado do entrincheiramento teológico de Ratzinger e Wojtyla.
Assim, a guerra civil dentro da Igreja Católica continuará. O Papa Francisco se encontrou com Gaenswein, porque uma vez desaparecido Bento XVI, não faz mais sentido punir seu secretário pela intromissão sem precedentes que Ratzinger fez na atividade governamental de Bergoglio, escrevendo um livro com o cardeal Sarah para se opor à possibilidade de o papa reinante autorizar a experiência de padres casados na Amazônia.
As memórias de D. Gänswein sairá, haverá controvérsia, mas o grosso da batalha não é mais sobre o passado. É sobre o futuro. Em jogo está o próximo conclave que a feroz frente conservadora - fortalecida pelos temores dos moderados - pretende predeterminar.
A primeira etapa para ver o equilíbrio de poder dentro da Igreja Católica será o Sínodo Mundial a ser realizado em Roma em 2024. Lá veremos como os episcopados mais influentes se posicionam em relação aos grandes temas: a estrutura comunitária do catolicismo, a participação dos fiéis (com particular atenção ao papel das mulheres) e a missão da Igreja no século XXI.
Deve fazer-nos refletir que o ex-comandante militar e colaborador próximo do Cardeal Sodano (Secretário de Estado de João Paulo II) foi eleito como chefe de um dos episcopados mais importantes tanto no Concílio Vaticano II como em conclaves posteriores - os Estados Unidos: Arcebispo Timothy Broglio.
Um “Francisco II” absolutamente não deve emergir do conclave.
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A guerra dentro da Igreja continuará mesmo depois de Ratzinger: o que está em jogo é o conclave - Instituto Humanitas Unisinos - IHU