09 Janeiro 2023
Embora tenha sido um dos primeiros artífices da resposta vaticana ao problema da violência sexual na Igreja, Bento XVI nunca captou a natureza sistêmica das disfunções ocorridas.
A opinião é da teóloga francesa Marie-Jo Thiel, professora emérita da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Estrasburgo. É autora, entre outros, de “L’Eglise catholique face aux abus sexuels sur mineurs” (Ed. Bayard).
O artigo foi publicado em Le Monde, 06-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A morte de Bento XVI abre caminho para a discussão sobre a sua herança para a Igreja e para o mundo. Figura intelectual reconhecida, deixou muitos escritos, decisões fortes, incluindo aquela, eminentemente moderna, da renúncia ao papado, e diversos posicionamentos, alguns dos quais pareceram ambíguos. Aqueles tomados no âmbito da crise ligada à violência sexual marcaram um ponto sem volta.
Em suas entrevistas com Peter Seewald, o próprio Bento XVI recorda as diretrizes do Vaticano que ele ajudou a implementar, primeiro como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (entre 1981 e 2005), depois como papa.
É preciso dizer que a posição de prefeito o colocou em uma posição privilegiada para a possibilidade de se dar conta da crise das violências sexuais. Mas ele nunca usou o adjetivo “sistêmico” e certamente nunca entendeu – assim como a maioria dos prelados da Cúria – as implicações de tal reconhecimento.
Na época, os casos de nível internacional se acumulavam sobre sua escrivaninha, e João Paulo II começou a falar do crime de pedofilia na “Carta aos bispos dos Estados Unidos”, depois na “Mensagem aos bispos irlandeses”. Mas o papa considerava, certamente como o prefeito, que se estava na presença de uma “crise da moral sexual profundamente arraigada, mas também de uma crise das relações humanas”.
E seria isso que o papa emérito defenderia claramente em uma carta publicada em abril de 2019 e na qual imputava o crime de pedofilia à revolução sexual de 1968 e às sucessivas evoluções da teologia pós-conciliar, sem enfrentar problemas estruturais.
Enquanto isso, a Congregação para a Doutrina da Fé – e, portanto, o cardeal Ratzinger, futuro Bento XVI – publicava os primeiros textos decisivos do magistério da Igreja sobre o assunto: o motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela e o documento De delictis gravioribus (2002), que adotam diversas medidas sobre os termos da prescrição, sobre a idade das vítimas e centralizam definitivamente na Congregação para a Doutrina da Fé os delitos particularmente graves, até então dispersos em vários dicastérios. Porém, o sigilo pontifício e o silêncio permanecem atuais!
Em 2010, Bento XVI atualizou esses dois textos, que ainda seriam seguidos por uma Carta circular da Doutrina da Fé (2011). Todos esses escritos certamente facilitam os procedimentos céleres e instituem uma colaboração jurídica com as autoridades nacionais, mas também permitem a possibilidade de não seguir o processo judicial para um padre culpado de agressões sexuais, procedendo com um decreto extrajudicial. Um ponto que ainda permanece problemático no direito canônico atual, pois reserva apenas ao bispo a decisão de seguir ou não o procedimento judicial.
O caso Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo, estuprador e abusador de crianças e adultos, permanece emblemático sobre a necessidade de implementar um dispositivo eficaz. Mas o período do fim do pontificado de João Paulo II foi desastroso a esse respeito.
Maciel enganou quatro papas sucessivos e permaneceu como “amigo” do papa até o fim, apesar do testemunho chocante de oito ex-legionários em 1997. Aos poucos, o cardeal Ratzinger descobriu a amplitude dos desvios, mas ele mesmo – devido às resistências na Cúria – teve que “ser paciente” até dezembro de 2004 (alguns meses antes da morte de João Paulo II) para finalmente iniciar uma investigação, que levaria, em 2006, a uma condenação por parte do Papa Bento XVI.
Esse caso, que lhe abriu os olhos sobre as novas comunidades (que fascinavam João Paulo II) e os numerosos casos de abuso que chegavam do mundo inteiro à Congregação para a Doutrina da Fé o convenceram definitivamente sobre a gravidade da situação, levando-o a encontrar as vítimas.
Bento XVI foi o primeiro papa a ouvi-las. Isso provavelmente lhe permitiu compreender melhor seus traumas e envolver o magistério em um processo que Francisco depois retomou e desenvolveu.
No entanto, Bento XVI não compreendeu completamente o caráter sistêmico das disfunções na Igreja, os vínculos das agressões sexuais e dos abusos de poder com a doutrina, a ética sexual e familiar, a teologia pastoral. Certamente, ele admitiu que houve “negligências” na seleção dos candidatos ao presbiterado. Mas isso não explica a atual extensão da crise.
Seria interessante examinar por que aquele brilhante teólogo não entendeu o peso do excesso de poder na crise dos abusos sexuais, ele que, no Concílio Vaticano II, era um dos promotores da reforma do ex-Santo Ofício, considerado conservador demais, e criticava o excesso de concentração de poderes no Vaticano.
Desde o início de seu pontificado, ele comparou a Igreja a uma “barca que vaza por todos os lados”. Mas como é que ele não conseguiu ver os sofrimentos causados pela disciplina eclesiástica (não à ordenação de mulheres, a autoridade episcopal, o celibato eclesiástico) ou pela moral sexual e familiar (não acolhimento aos divorciados recasados, às pessoas homossexuais, controle de natalidade e preservativos...)? Trata-se de âmbitos, todos eles, em que não houve reformas, mas enrijecimentos e posicionamentos sobre os quais não foi possível abrir um debate e que, pelo contrário, contribuíram com os abusos.
Vítima de um estilo de governo muito solitário, mal cercado e mal aconselhado, Bento XVI se sentia tributário da herança de João Paulo II. Sabia se servir dos conceitos e da doutrina, mas tinha uma visão restritiva da colegialidade, da sinodalidade, do papel dos fiéis leigos e, em parte, do trabalho dos teólogos, dos quais tolerava mal qualquer pesquisa fora do perímetro “oficial”. Mas uma cultura do debate (até mesmo universitário!) poderia ter lhe permitido compreender o que estava em jogo em todos aqueles problemas e começar a remediar a crise das violências sexuais.
O relatório publicado por um escritório de advocacia bávaro em janeiro de 2022, que apontava o dedo para as falhas de Joseph Ratzinger como arcebispo de Munique e Freising (1977-1982), o fez duvidar de seu modo de gerir tal crise? O futuro papa teria tomado – como todos os outros arcebispos da diocese – “más decisões” em quatro casos de padres agressores sexuais. Três semanas depois, em 8 de fevereiro, ele publicou uma carta de estilo muito pessoal, na qual pedia perdão pelos erros cometidos durante o pontificado.
Expressou também uma dor que se sentia sincera: “Em todos os meus encontros – sobretudo durante as numerosas viagens apostólicas – com as vítimas de abusos sexuais por parte de sacerdotes, observei nos olhos as consequências de uma tão grande culpa e aprendi a compreender que nós mesmos somos arrastados por esta tão grande culpa quando a negligenciamos ou não a enfrentamos com a necessária decisão e responsabilidade, como aconteceu e acontece com muita frequência”.
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“Bento XVI não entendeu o peso do excesso de poder na crise sexual.” Artigo de Marie-Jo Thiel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU