20 Dezembro 2022
"O filicídio é a face mais cruel do feminicídio. Inscreve a mulher, quando sobrevivente, no limbo entre a morte matada e a morte tentada. Um pouco morta, segue uma vida eternamente enlutada. Inclusive, com dores e dúvidas cruéis de se não foi sua culpa, se não deveria ter cedido e sido o objeto desejado do assassino", escreve José Carlos Sturza de Moraes, cientista Social, especialista em Ética e Educação em Direitos Humanos, mestre em Educação. Foi conselheiro tutelar de Porto Alegre (1995/2001) e conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2015/2016). É coordenador geral do Instituto Bem Cuidar (Aldeias Infantis SOS).
A morte matada e o consequente final da vida, pelo menos da vida corpórea, é tida usualmente como o ápice da violência possível contra uma pessoa. Mas nem sempre o é. A morte em vida, com a consequente mortificação diária da morte civil, da morte da maternidade ou da paternidade, entre tantas outras mortificações supliciais a que pessoas estão expostas, pode ser bem mais potente e dolorosa.
Dias atrás, impactado com o assassinato de quatro crianças, entre 3 e 11 anos de idade, em Alvorada (Rio Grande do Sul), pelo pai a título de vingança contra a ex-mulher, mãe das crianças, por esta o ter deixado, trouxe-me essa dolorosa constatação, a partir de comentários em uma reflexão breve que divulguei.
A abominável crueldade, o hediondo machismo, a ignomínia, a morte e tantas outras expressões do escárnio podem dizer da declaração do homem, réu-assassino confesso, que, para punir a mulher objetificada por ele, matou quatro crianças, expôs uma vez mais a face mais abjeta da violência contra mulheres e sua vinculação imbricada com a violência contra crianças e adolescentes: o filicídio. A morte de filhos/as por genitores/as.
Quatro braços em condições peculiares de desenvolvimento, titulares de direitos humanos, não abraçam mais. A Convenção Sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), a Constituição Federal (Brasil, 1990) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) não as conseguiram proteger. Agora elas só têm o colo frio do caixão. Não os colos carinhosos afetivos familiares a que tinham direito. Não outros colos que a vida os poderia legar.
À morte das crianças, segue a de uma mãe martirizada. À morte das crianças, seguem muitas mães martirizadas. Seguem avós sem voz. Seguem vidas com a dor da perplexidade, da incredulidade, do luto aberto e que nunca fecha. Segue o luto de quem foi atirada à beira e para dentro da loucura de um dos desesperos mais doídos.
Também o caso, infelizmente comum, atualiza a complexidade que é para uma mulher romper o ciclo de violências em que vive, quando o outro, por vezes a família dele e amigos/as, resolvem que ela deve ser dele até que a morte os separe ou que ele não a queira mais.
Por estas e tantas outras mortes de crianças e adolescentes por namorados, pais e padrastos, descontentes com a separação não dá para relativizar. Se é que em algum momento deu para se fazer relativizações, para longe das conjecturas, por vezes necessárias, da academia.
O problema não é de se dizer que as pessoas são livres, que os relacionamentos podem ser passageiros. Que o importante é que as pessoas sejam felizes. Que essas afirmações nada têm de sentença de morte da família. Até porque cada um/a deveria ter a sua, do jeito que entender melhor, se não há nesse jeito subjugação do/a outro/a, se não há violências.
O divórcio não veio para acabar com a família, mas apenas para possibilitar famílias sãs, não tóxicas. O problema é seguir dizendo que as relações devem ir até que a morte às separem. Pois, fora dos simbolismos e das crenças religiosas, que devem ser respeitadas enquanto tal e com o alcance que as pessoas livremente lhes conferem, até que a morte os/as separem tem sido mantra de homens que não aceitam que as mulheres não lhes pertencem. Não lhes pertencem mesquinhamente, enquanto objeto de cama e mesa, como um bem conquistado, como carro, casa etc. Não é o pertencimento da benquerença, da identificação e cumplicidade amorosas.
Até porque, quem não conhece casais que, quando o amor persevera e é uma coisa boa, todo mundo à volta só tem uma certeza: nem a morte os/as separa. Dos quais dizemos que vão se encontrar logo mais. Sendo, muitas vezes, até sepultados/as lado a lado.
Por isso, há de ser eterno - se terno - enquanto dure. Enquanto dure a ternura, a cumplicidade afetiva, a benquerença. Depois? Depois, se houve afeto e carinho, se foi uma relação não tóxica, vem a saudade. Essa dor da lembrança de coisa boa. Ou, ainda, depois vem a tristeza da dor do arrependimento de algo não tão bom, mas que não pode - nem deve - ser tão ruim, e, muito menos, violento.
O aumento do feminicídio, tentado ou consumado, deve ser sinal de alerta para todas as pessoas que se ocupam da proteção. Em briga de marido e mulher, de namorado e namorada, se essa briga ultrapassa o desentendimento normal entre as pessoas e descamba para ameaças, outras violências psicológicas e violências físicas, todas as pessoas podem e devem intervir.
Se envolve adolescentes é da órbita também de cuidados dos serviços e órgãos que cuidam da proteção da infância e juventude. Se envolve mulheres adultas, grávidas ou com filhos/as, é também da competência daqueles e daquelas que atuam em serviços e órgãos que cuidam da proteção da infância e juventude.
Agora, não é apenas do Estado e das sociedades civis organizadas o dever de pensar e agir em situações de violência. Nas famílias, desde a tenra idade, precisamos dar exemplos e não tolerar pequenas discriminações (esses preconceitos que viram ação e ferem). Quando maiores, menos ainda, de crianças e adolescentes se pode aceitar, em casa, discriminações e violências.
Inclusive, neste momento histórico em que há um aguçamento dos conflitos sociais, especialmente as famílias diretamente envolvidas em disputas políticas precisam (re) pensar seus parâmetros de conduta. Pois pode se estar gestando um infortúnio logo ali adiante.
Em todo o percurso da infância e da adolescência é possível e necessário que cuidemo-nos, (re) eduquemo-nos e eduquemos nossos filhos e filhas para serem pessoas boas, com benquerença. Que eduquemos para serem pessoas inteiras e não eternas metades que enxergam o outro, a outra, como prótese, como posse conquistada e de que não se abre mão. Amar não é isto. Amar pode ser coisa melhor.
A objetificação da mulher, por homens mimados, machistas, mal-educados, violentos... é próxima da objetifacação que esses mesmos homens fazem de suas crianças, no caso de Alvorada e de tantos outros. Como no caso ficcional da novela das nove da Rede Globo que, neste momento, atinge os lares brasileiros. Uma novela em que a criança é claramente objetificada pelo pai para punir a mãe que não lhe quer mais e ainda para certo servilismo para servir a travessia/mudança de classe de um homem-pai imaturo e maltratante - visto que separa o filho da mãe só por mágoa e vingança.
A sentença vil e arbitrária, patriarcal, de que se a mulher não me quer mais que pereça, é a mesma que sentenciou as crianças à morte, sentenciando uma mulher - entre tantas - à morte em vida.
Portanto, o filicídio é a face mais cruel do feminicídio. Inscreve a mulher, quando sobrevivente, no limbo entre a morte matada e a morte tentada. Um pouco morta, segue uma vida eternamente enlutada. Inclusive, com dores e dúvidas cruéis de se não foi sua culpa, se não deveria ter cedido e sido o objeto desejado do assassino.
Uma dúvida comum e indevida, visto que se sabe que o violador de direitos aumenta seu alcance quando não parado. E, de muitas formas, amplia para os filhos e filhas o que consegue com a mulher de subjugação, muitas vezes até sexual.
Finalmente, por derradeiro, é importante que os cursilhos de casais e ações semelhantes em todos os credos, atentem para a pregação da doutrina do amor e do bem-querer que, sinto muito dizer, não comunga e não pode comungar, com a noção de que o homem é a cabeça da família e que a mulher lhe deve obediência. E é nisso, entre outras coisas, que digo que não podemos relativizar. Pois, desculpem, a morte espreita e se abriga nestas relativizações.
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Filicídio, a face mais cruel do feminicídio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU