11 Novembro 2022
Normalmente, em nossas relações com o mundo dos animais, movemo-nos como um pêndulo entre dois extremos. Por um lado, nós os acariciamos como parceiros quase humanos, como verdadeiros companheiros de diálogo. Por outro, dispomos deles considerando-os em nome da utilidade que podem ter para nós.
O novo fascículo da revista internacional Concilium se centra precisamente nessa “relação ambivalente” entre animais humanos e animais não humanos: “Alguns animais são tratados como membros das nossas famílias: com eles, vivemos uma experiência de relação, neles reconhecemos inteligência, alegria, dor. Outros animais, em vez disso, são considerados pouco mais do que coisas, objetos desprovidos de sentido, dos quais é possível se servir para satisfazer as necessidades do ser humano”.
Os autores e as autoras analisam essa relação essencialmente antropocêntrica a partir de uma perspectiva filosófica, teológica e inter-religiosa. Para dar aos leitores um simples aperitivo do trabalho desenvolvido nessas páginas, escutemos a voz de Silvia Schroer, que em seu artigo (reproduzido aqui parcialmente) enfoca a presença dos animais nas Escrituras hebraicas.
Schroer é teóloga alemã, professora da Faculdade de Teologia da Universidade de Berna, na Alemanha, da qual é vice-reitora desde 2017.
O artigo foi publicado em Teologi@Internet, 01-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Antigo Testamento, o mundo animal é onipresente: nos contos, na poesia, nos textos legislativos. Nisso se espelha a sua importância no mundo real de Israel. Animais selvagens e animais de criação fazem parte da vida cotidiana, mas também estão presentes nas representações de Deus, nas metáforas, na filosofia ou na teologia dessa cultura da antiguidade.
Na época, todas as pessoas, mesmo aquelas que viviam em ambiente urbano, estavam constantemente em contato com os animais. Animais domésticos como ovelhas, cabras, bois e jumentos viviam muitas vezes lado a lado com os proprietários, fazendo parte, por assim dizer, da família.
Uma relação particularmente íntima com um animal doméstico, uma ovelha, como membro da família é descrita na parábola de Natã (2Sm 12,3). Os pequenos animais de jardim, em particular, serviam para o provimento e para a alimentação. Leite e lã, pele e carne ou gordura, até mesmo chifres, nada era deixado inutilizado, e muito pouco não era consumido.
O bem-estar dos animais e sua reprodução eram cuidados por todos, as famílias e as tribos. Os animais tinham que ser levados para as pastagens durante o dia e defendidos dos predadores, deviam ser ordenhados e tosquiados, precisavam de água suficiente e de um abrigo seguro para a noite.
O cuidado dos rebanhos marcava os dias e as estações, assim como as festas, por exemplo a da tosquia (1Sam 25), para as famílias camponesas. Não surpreende, portanto, o significado altamente simbólico da tarefa dos pastores: um rebanho sem pastores é sinônimo de abandono. No antigo Oriente Médio, divindades e soberanos são descritos ou representados como pastores dos animais e dos seres humanos.
Davi é tirado da custódia do rebanho para ser ungido rei (1Sam 16,11). A bênção para os animais do rebanho provém das deusas do gado miúdo (Dt 7,13). Nos salmos, Deus é descrito como o pastor dos orantes e das orantes (Sl 23; 79,13; 95,7; 100,3). Os profetas criticam os príncipes e os reis de Israel como pastores miseráveis (Ez 34,1-31), que abandonam seu rebanho, até que o próprio Deus o reúne e o guia novamente […].
Ao lado dos animais de criação, os animais selvagens também eram muito próximos dos seres humanos. Quem estava em viagem de um vilarejo a outro, ia à caça de uma gazela ou conduzia um rebanho de cabras até a colina mais próxima podia ser surpreendido por um leão, uma pantera ou um urso. Mesmo quem se encontrava abrigado dentro de casa gelava o sangue nas veias quando ouvia um leão rugir nos arredores (Am 3,8; Pr 22,13; 26,13). Nos campos e nas casas, serpentes ou escorpiões eram um perigo, mas também se temiam os gafanhotos, porque devoravam as colheitas.
Os animais selvagens eram observados com muita atenção e muitas vezes com admiração pelas suas capacidades sobre-humanas e pelo seu modo de vida. De várias maneiras, todo animal doméstico ou selvagem está presente no mundo do Antigo Testamento.
Muitos animais carregam consigo significados simbólicos ou míticos de tradições milenares ou seculares. A pomba como animal de companhia das deusas do amor e animal símbolo de seu templo tornou-se a imagem do amor erótico; o jumento como animal de carga pacífico tornou-se a contraimagem do poder imperial, ligado ao cavalo. O leão era o soberbo companheiro e animal símbolo dos reis, mas também representava o perigo e o caos que deviam ser mantidos sob controle. O touro tinha, ao lado de seu significado na vida cotidiana, uma ligação tradicional com os deuses que, segundo a crença, supervisionavam as condições meteorológicas. As serpentes e as esfinges, assim como os serafins e os querubins hebraicos, desempenhavam a tarefa de guardiões nos templos e um papel importante nas representações de Deus.
Mesmo que o mandato divino de “subjugar a terra” no tempo da redação dos textos bíblicos não era um passe-livre para a dominação despótica sobre o mundo animal, ocorreu exatamente isto: dominação e exploração até a destruição.
Poderíamos dizer que Gn 1,28 não foi o motor, mas nem mesmo o freio desse desenvolvimento. Hoje, nós estamos no fim, não no início, de uma história de submissão. E, ao mesmo tempo, nunca na história o conhecimento dos animais alcançou tal nível.
Desde os anos 1960, a pesquisa sobre o comportamento aproximou o ser humano e o animal muito mais do que se imaginaria. Hoje, já não se considera mais os comportamentos dos animais e os impulsos que os impelem a agir como ditados por simples “instintos”, como se fazia até poucas décadas atrás.
De muitos pontos de vista, o Homo sapiens não é mais tão único como se pensou durante muito tempo. Todos esses deslocamentos fundamentais tiveram repercussões tanto nos discursos filosóficos e teológicos quanto nos interesses da pesquisa científica sobre a antiguidade.
Hoje, as perguntas que dirigimos aos textos bíblicos também são diferentes das de um século atrás. O que seres humanos e animais têm em comum, o que os divide? Como a relação deles foi pensada originalmente – por Deus, desde a criação – e como se desenvolveu? Que responsabilidade os seres humanos têm pelos animais, se o ser humano é o parceiro superior na relação com o animal?
O primeiro relato da criação sublinha, apesar de todo o parentesco biológico pressuposto, as diferenças entre o ser humano e o animal terrestre. Somente os seres humanos, e não os animais terrestres, recebem a bênção para se multiplicar. Aos seres humanos, é confiada esta tarefa (Gn 1,28): “Sejam fecundos e multipliquem-se, encham a terra e tornem-na cultivável; reinem sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra”.
Aqui, assim como no Sl 8,7-94, não se fala de violência e exploração. No máximo, se poderia pensar em um reinado paternalista, responsável. Com o ato de “tornar cultivável”, funda-se o direito de caçar e matar os animais selvagens e, com o ato de “reinar” (domesticar, poderíamos dizer), funda-se o direito de utilizar os produtos e a força dos animais.
Após o dilúvio, acrescenta-se o direito ao consumo de carne (Gn 9,3), e desde então o ser humano semeia o terror no reino animal com sua dominação (9,2). No desenvolvimento do texto, a legitimação do predomínio sobre o mundo animal deriva da semelhança do ser humano com Deus, que não é atribuída aos animais.
Não é possível captar exatamente a causalidade desse conjunto, mas ela parece ter algo a ver com a “biologia”: os seres humanos se assemelham não só com os animais, mas também com Deus; eles são, segundo Sl 8,6, “pouco menos do que um deus”.
Embora o primeiro relato da criação não veja o ser humano como a coroação da criação – a conclusão que “coroa” a ação divina é, antes, o sábado (Gn 2,2s.) – desse modo se estabelece entre o ser humano e o animal uma hierarquia que deriva do parentesco entre Deus e o ser humano.
Contra o pano de fundo da história da religião, o tópos familiar a nós da “imagem e semelhança” do ser humano com Deus é em certo sentido surpreendente: tradicionalmente, no antigo Oriente e no alto Egito, as representações de Deus absolutamente não são antropomórfico-sociomórficas, mas muitas vezes teriomórficas (com a forma de animal). Leão, touro, serpente, abutre ou pomba: muitos traços dessa proximidade entre animal e divindade também são encontram em textos bíblicos. Mas, em seu conjunto, a tradição vetero-testamentária deixa em segundo plano a semelhança entre animal e Deus.
Não se pode negar o antropocentrismo de importantes textos bíblicos a respeito do mundo dos animais. Como se comportam as cristãs e os cristãos com o fato de que certamente, também por isso, o mundo dos animais não está expressamente tematizado na mensagem do reino de Deus de Jesus e da Igreja nascente?
O ser humano, como “prescreve” Gn 1,29 no início da Torá, é efetivamente a única criatura que pode reivindicar para si a semelhança com Deus? E, se sim, que direitos e deveres podem derivar hoje desse dado, contrariamente ao tempo da composição dos textos bíblicos?
Ao responder a essa enorme questão, devemos pelo menos considerar os textos menos antropocêntricos do Antigo Testamento.
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O Senhor dos animais? Teologia e mundo animal. Artigo de Silvia Schroer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU