03 Novembro 2022
"Vamos admitir, ficamos muito bons em chegar a compromissos com o evangelho. Sempre até aqui, até lá... compromissos. Dar de comer aos famintos sim, mas a questão da fome é complexa, e com certeza não sou eu que vou resolver! Ajudar os pobres, sim, mas então as injustiças devem ser tratadas de uma certa maneira e então é melhor esperar, também porque ao se comprometer se corre o risco de ser incomodados o tempo todo e talvez se perceba que se poderia ter feito melhor, melhor esperar um pouco. Estar perto dos doentes e dos presos, sim, mas nas primeiras páginas dos jornais e nas redes sociais há outros problemas mais urgentes e por que justamente eu me interessaria por eles? Acolher os migrantes sim, claro, mas é uma questão geral complicada, diz respeito à política... Não me misturo com essas coisas... Sempre os compromissos: 'sim, sim...', mas 'não, não'".
Às 11h da manhã desta quarta-feira, 02-11-2022, no Altar da Cátedra da Basílica do Vaticano, o Santo Padre Francisco presidiu a Santa Missa em sufrágio dos cardeais e bispos falecidos durante o ano. No final da celebração eucarística, de forma estritamente privada, há um momento de oração presidido pelo papa no Campo Santo Teutônico. Publicamos abaixo a homilia que o Papa proferiu após o anúncio do Evangelho.
As leituras que ouvimos despertam em nós, em mim, duas palavras: expectativa e surpresa.
Expectativa expressa o sentido da vida, porque vivemos na expectativa do encontro: o encontro com Deus, que é o motivo da nossa oração intercessora hoje, especialmente pelos Cardeais e Bispos falecidos no último ano, por quem oferecemos em sufrágio este Sacrifício eucarístico.
Todos nós vivemos na expectativa, na esperança de um dia ouvir aquelas palavras de Jesus dirigidas a nós: "Vinde, benditos de meu Pai" (Mt 25,34). Estamos na sala de espera do mundo para entrar no paraíso, para participar naquele "banquete para todos os povos" de que nos falou o profeta Isaías (cf. 25,6).
Ele diz algo que aquece nossos corações porque levará a cumprimento justamente as nossas maiores expectativas: o Senhor "aniquilará a morte para sempre" e "enxugará as lágrimas de todos os rostos" (v. 8). É lindo quando o Senhor vem enxugar as lágrimas! Mas é tão ruim quando esperamos que seja outra pessoa, e não o Senhor, que as enxugue. E pior ainda, não ter lágrimas. Então poderemos dizer: “Eis que este é o nosso Deus, a quem aguardávamos, e ele nos salvará; este é o Senhor, a quem aguardávamos; na sua salvação gozaremos e nos alegraremos.” (v. 9). Sim, vivemos na expectativa de receber bens tão grandes e belos que nem podemos imaginá-los, porque, como nos lembrou o apóstolo Paulo, "somos herdeiros de Deus, coerdeiros de Cristo" (Rm 8,17) e "esperamos viver para sempre, esperamos a redenção do nosso corpo” (cf. v. 23).
Irmãos e irmãs, alimentemos a expectativa do céu, exercitemo-nos no desejo do paraíso. Faz-nos bem hoje perguntar-nos se os nossos desejos têm alguma coisa a ver com o Céu. Porque corremos o risco de aspirar continuamente a coisas que passam, de confundir desejos com necessidades, de antepor as expectativas do mundo à expectativa de Deus. Mas perder de vista o que importa para correr atrás do vento seria o maior erro da vida. Olhamos para cima, porque estamos a caminho para o alto, enquanto as coisas aqui embaixo não irão lá em cima: as melhores carreiras, os maiores sucessos, os títulos e reconhecimentos mais prestigiosos, as riquezas acumuladas e os ganhos terrenos, tudo desvanecerá em um instante, tudo.
E toda expectativa reposta neles será desapontada para sempre. E, no entanto, quanto tempo, quanto esforço e energia gastamos nos preocupando e nos entristecendo por essas coisas, deixando a tensão em direção a casa se enfraqueça, perdendo de vista o significado do caminho, a meta da viagem, o infinito a que tendemos, a alegria pela qual respiramos! Perguntemo-nos: vivo o que digo no Credo: "Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que virá"? E como está minha espera? Consigo ir ao essencial ou me distraio com tantas coisas supérfluas? Cultivo a esperança ou vou em frente reclamando, porque dou muito valor a tantas coisas que não contam e que depois passarão?
Na expectativa do amanhã, o Evangelho de hoje nos ajuda. E aqui surge a segunda palavra que gostaria de compartilhar com vocês: surpresa. Porque a surpresa é grande toda vez que ouvimos o capítulo 25 de Mateus. É semelhante àquela dos protagonistas, que dizem: “Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?" (v. 37-39). Quando será? Assim se expressa a surpresa de todos, o espanto dos justos e a consternação dos injustos.
Quando será? Nós também o poderíamos dizer: esperaríamos que o juízo sobre a vida e sobre o mundo ocorresse sob a insígnia da justiça, perante um tribunal resolutivo que, examinando cada elemento, esclarecesse para sempre situações e intenções. Em vez disso, no tribunal divino, a única peça de mérito e acusação é a misericórdia para com os pobres e os descartados: "Tudo o que fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes", sentencia Jesus (v. 40). O Altíssimo parece estar nos pequeninos. Quem habita os céus está entre os mais insignificantes para o mundo. Que surpresa! Mas o juízo acontecerá assim porque será emitido por Jesus, o Deus de amor humilde, Aquele que, nascido e morto pobre, viveu como servo.
Sua medida é um amor que vai além de nossas medidas e seu parâmetro de juízo é a gratuidade. Então, para nos prepararmos, sabemos o que fazer: amar gratuitamente e a fundo perdido, sem esperar retorno, aqueles que se enquadram em sua lista de preferências, aqueles que não podem nos retribuir nada, aqueles que não nos atraem, aqueles que que servem os pequeninos.
Esta manhã recebi uma carta de um capelão de um orfanato, um capelão protestante luterano em um orfanato na Ucrânia. Crianças órfãs de guerra, crianças sozinhas, abandonadas. E dizia: “Este é o meu serviço: acompanhar esses descartados, porque perderam os pais, a guerra cruel os fez ficar sozinhos”. Este homem faz o que Jesus lhe pede: curar os pequeninos da tragédia. E quando li aquela carta, escrita com tanta dor, me emocionei, porque disse: "Senhor, vês que continuas a inspirar os verdadeiros valores do Reino".
Quando será? dirá este pastor quando encontrar o Senhor. Aquele "quando" maravilhado, que retorna quatro vezes nas perguntas que a humanidade dirige ao Senhor (cf. v. 37.38.39.44), chega tarde, apenas "quando o Filho do homem vier na sua glória" (v. 31). Irmãos, irmãs, não nos surpreendamos também. Tenhamos muito cuidado para não adoçar o sabor do Evangelho. Porque muitas vezes, por conveniência ou por comodidade, tendemos a atenuar a mensagem de Jesus, a diluir suas palavras.
Vamos admitir, ficamos muito bons em chegar a compromissos com o evangelho. Sempre até aqui, até lá... compromissos. Dar de comer aos famintos sim, mas a questão da fome é complexa, e com certeza não sou eu que vou resolver! Ajudar os pobres, sim, mas então as injustiças devem ser tratadas de uma certa maneira e então é melhor esperar, também porque ao se comprometer se corre o risco de ser incomodados o tempo todo e talvez se perceba que se poderia ter feito melhor, melhor esperar um pouco. Estar perto dos doentes e dos presos, sim, mas nas primeiras páginas dos jornais e nas redes sociais há outros problemas mais urgentes e por que justamente eu me interessaria por eles? Acolher os migrantes sim, claro, mas é uma questão geral complicada, diz respeito à política... Não me misturo com essas coisas... Sempre os compromissos: “sim, sim...”, mas “não, não”.
Esses são os compromissos que fazemos com o evangelho. Tudo "sim" mas, no final, tudo "não". E assim, à força de "mas" e "porém" - muitas vezes somos homens e mulheres de "mas" e "porém" - fazemos da vida um compromisso com o Evangelho. De simples discípulos do Mestre nos tornamos mestres de complexidade, que discutem muito e fazem pouco, que buscam respostas mais diante do computador do que diante do Crucifixo, na internet do que diante dos olhos dos irmãos e irmãs; cristãos que comentam, debatem e expõem teorias, mas não conhecem nem mesmo um pobre pelo nome, não visitam um doente há meses, nunca alimentaram ou vestiram alguém, nunca fizeram amizade com alguém necessitado, esquecendo que "o programa é um coração que vê” (Bento XVI, Deus caritas est, 31).
Quando será? - a grande surpresa: surpresa do lado justo e do lado injusto – Quando será? Perguntam-se surpresos tanto os justos quanto os injustos. A resposta é apenas uma: o quando é agora, hoje, na saída desta Eucaristia. Agora, hoje. Está em nossas mãos, em nossas obras de misericórdia: não em esclarecimentos e análises refinadas, não em justificativas individuais ou sociais. Em nossas mãos, e nós somos responsáveis.
Hoje o Senhor nos lembra que a morte chega para trazer a verdade sobre a vida e remove todas as atenuantes para a misericórdia. Irmãos, irmãs, não podemos dizer que não sabemos. Não podemos confundir a realidade da beleza com maquiagem feita artificialmente. O Evangelho explica como viver a expectativa: vamos ao encontro de Deus amando porque Ele é amor. E, no dia da nossa despedida, a surpresa será feliz se agora nos deixarmos surpreender pela presença de Deus, que nos espera entre os pobres e os feridos do mundo. Não tenhamos medo dessa surpresa: avancemos nas coisas que o Evangelho nos diz, para sermos julgados justos no final. Deus espera ser acariciado não com palavras, mas com fatos.
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“De simples discípulos do Mestre tornamo-nos mestres da complexidade, mas não conhecemos pelo nome nem um pobre, há meses que não visitamos um doente”, constata Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU