03 Novembro 2022
"Pois bem, a raiz do clericalismo, na minha modesta opinião, está toda aqui: no momento em que e confere a um grupo separado e minoritário (e, além disso, composto apenas de homens celibatários) um papel sagrado e poderes que outros não têm (ou não possuem no mesmo grau), pedir a eles que exerçam tudo isso sem abusar de sua posição e sem se julgarem melhores ou diferentes do restante do povo de Deus é uma espécie de missão impossível, na qual apenas uma porcentagem muito reduzida de presbíteros (que realmente poderíamos definir "heroicos") pode ter alguma chance de sucesso", escreve Ricardo Larini, graduado em Física Matemática, com estudos teológicos na Comunidade de Bose, onde foi monge por 11 anos, e em Cambridge. É especializado na formação da identidade cristã no primeiro século e na história e teologia do diálogo ecumênico. Profissionalmente, trabalha com inteligência artificial aplicada à educação.
O artigo é publicado por Rocca, Nº 21, 01-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muitos reproduziram, na maioria das vezes sem comentá-las ou aprofundá-las, as palavras de condenação do clericalismo formuladas pelo papa durante a entrevista concedida a Fabio Fazio no programa Che tempo che fa. Naquela ocasião, Francisco chegou a defini-lo como "uma perversão da Igreja".
Mas o que realmente é o clericalismo, que a todos (incluindo padres, bispos e até papas!) parece incomodar, e como podemos realmente combatê-lo? De acordo com a definição de clericalismo no dicionário on-line Treccani, o termo, que deriva de "clerical", faria alusão à "atitude daqueles que apoiam a participação ativa e decisiva do clero e do laicato católico no governo do Estado, e daqueles que, participando da vida pública, subordinam suas escolhas políticas aos interesses da Igreja”.
Nessa acepção "leiga" do termo, o clericalismo tem um valor negativo seja por ser considerado um uso de parte da coisa pública, seja por se temer que a inspiração em valores divinos e não negociáveis da ação política por parte de alguns acabe deslegitimando as posições de qualquer um que não apoie tais valores.
Por outro lado, no entendimento católico (e cristão em geral), "clericalismo" designa a posição daqueles que tendem a reduzir a participação ativa dos leigos na igreja ou a reduzir a própria igreja ao que seus ministros ordenados pensam ou fazem, dividindo os fiéis em grupos ou "gêneros" que teriam intrinsecamente um valor diferente.
Como qualquer um que tenha estudado as origens cristãs sabe, o surgimento de um sacerdócio específico, de apenas alguns, não aconteceu da noite para o dia na igreja primitiva.
No Novo Testamento, a palavra sacerdócio refere-se unicamente a todo o povo de Deus. Da mesma forma, à medida em que a Igreja se desenvolveu tanto em lugares específico quanto como comunhão de comunidades espalhadas pelo mundo, surgiu a exigência de ministérios e de uma estruturação da autoridade. Um fato muito humano e razoável, facilmente explicável recorrendo às ciências sociais e sem incomodar o Espírito Santo.
O cristianismo, por vontade de Deus, segundo alguns, por rendição às estruturas "religiosas" intrínsecas aos seres humanos segundo outros, acabou, no entanto, por sacralizar seus ministros, tornando-os não apenas "vitalícios", mas em certa medida "separados", outros em relação a qualquer pessoa batizada sobre quem não foram "impostas" as mãos em um rito de consagração ou ordenação. O único "leigo" que, por sua vez, recebia uma consagração era o rei ou o imperador, a quem era assim reconhecido um ministério de governo no cerne da cristandade (que também inclui a igreja).
No final da Idade Média, com a divisão da cristandade ocidental em várias correntes e a secularização do poder político, as igrejas se viram tendo que definir melhor o papel de seus ministros ordenados. Com relação ao mundo externo, a Igreja Católica experimentou uma oposição polêmica que durou de fato, com poucos compromissos, até o Concílio Vaticano II, que em certa medida reconheceu a legitimidade do poder político e das democracias modernas.
No cristianismo, porém, à sacralização dos ministérios ordenados se acrescentou o reconhecimento apenas para eles da plenitude dos chamados três munera: ensinamento, santificação e governo. Isso, diga-se de passagem, ocorreu de maneira solene no catolicismo precisamente em um documento do Vaticano II, a Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, que primeiro define como essas funções cabem plenamente aos bispos (25- 27) para depois especificar como os presbíteros (28) participam de tais munera em comunhão com seu bispo.
Na Lumen Gentium baseou-se mais tarde o Código de Direito Canônico de 1983, em que no artigo 1009, parágrafo 3º, consta: “aqueles que são constituídos na ordem do episcopado ou do presbiterado recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça".
Bispos e padres, portanto, encontram-se no catolicismo tendo uma função sacra e uma plenitude de poder que nenhum outro membro da Igreja possui. Além disso, a tudo isso devem ser adicionados os elementos da exclusiva admissão dos homens (em termos leigos: "um patriarcado") a tal condição, e a obrigação do celibato que sanciona mais uma separação a priori "do mundo".
Pois bem, a raiz do clericalismo, na minha modesta opinião, está toda aqui: no momento em que e confere a um grupo separado e minoritário (e, além disso, composto apenas de homens celibatários) um papel sagrado e poderes que outros não têm (ou não possuem no mesmo grau), pedir a eles que exerçam tudo isso sem abusar de sua posição e sem se julgarem melhores ou diferentes do restante do povo de Deus é uma espécie de missão impossível, na qual apenas uma porcentagem muito reduzida de presbíteros (que realmente poderíamos definir "heroicos") pode ter alguma chance de sucesso.
Os amigos católicos me dirão: mas então seria preciso uma revolução dentro do catolicismo? Como mudar seriamente algo sem renunciar a permanecer fiel à confissão católica ou sem desajustar a doutrina? O debate está aberto, é claro.
Certamente qualquer passo que leve à redução da sacralização da autoridade eclesiástica ajudará a reduzir o clericalismo.
Sem tocar em tudo isso, será como lutar contra moinhos de vento.
A primeira coisa fundamental seria não conferir a uma única categoria de cristãos (padres e bispos) a plenitude de todas as três funções que atualmente lhes são reconhecidas.
Por exemplo, para permitir uma verdadeira sinodalidade, na qual todo crente tenha o direito real de participar das decisões na igreja, sem ser apenas um colaborador ou com uma função consultiva.
É tão elementar quanto vital.
Uma segunda mudança, relacionada à primeira, deveria consistir em reconhecer realmente na Igreja uma pluralidade de ministérios sem necessariamente vinculá-los ao sacramento da ordem.
A terceira coisa a fazer é mover-se na direção de uma dessacralização das figuras dos ministros ordenados, não vinculando automaticamente o acesso a tais posições à obrigação do celibato. Muitas igrejas cristãs fizeram isso há décadas (algumas até séculos), permitindo, entre outras coisas, que seus ministros sejam percebidos como mais próximos das pessoas e mais ricos em humanidade.
A quarta é, obviamente, quebrar o monopólio masculino nos ministérios, que no mínimo leva a valorizar apenas uma parte da sensibilidade humana, a masculina, e de fato contribui inexoravelmente para repropor em cada época estruturas patriarcais que sufocam as mulheres (e não só...).
Os quatro passos indicados, além de não contradizer de forma alguma o Novo Testamento (aliás, representando uma realização muito mais fiel dos ditames do Novo Testamento), são o que é pedido não tanto "pelo mundanismo" que se aninharia na igreja (admitido e não concedido que o mundo seja comparável ao mal ...), mas sim por uma porção já agora muito consistente de fiéis católicos de todas as partes da terra.
Outros passos poderiam ser indicados – como, por exemplo, o de não conferir ministérios "eternos" (que rima com "sagrados") a ninguém, para impedir, entre outras coisas, a criação de um sempre muito perigoso espírito de casta no clero –, mas certamente aqueles que destaquei respondem plenamente a todos os problemas fundamentais ligados à condenação universal (mas nem sempre muito ponderada ou sincera) do clericalismo.
É claro que cada uma dessas reformas também levaria a uma profunda revisão da formação dos futuros ministros da igreja. Esta mudança, que em aspectos como a eliminação das comunidades de formação residenciais e separadas do mundo, poderia começar imediatamente, mas sobre o que escreverei em outra oportunidade.
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As verdadeiras raízes do clericalismo. Artigo de Riccardo Larini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU