01 Novembro 2022
Por outro lado, vimos nascer os nacionalismos, filhos da mesma história de contraposição. O nacionalismo deforma tudo. O nacionalismo desperta e fortalece outro nacionalismo.
O artigo é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 30-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para falar de Francisco e da paz eu gostaria de partir do nacionalismo como um desvio do conceito, em si bom, de nação: desvio que, em muitos anos de jornalismo internacional, me parece ter observado principalmente no Oriente.
Acostumados, como somos, a considerar o Islã o verdadeiro problema do mundo árabe, esquecemos um fato que considero histórico: o problema daquele mundo não é a religião, mas foi e é o nacionalismo.
A expedição napoleônica ao Egito, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, deparou-se com um problema insuperável, desde o seu primeiro dia nas costas egípcias: como difundir a mensagem da República Francesa, visto que a palavra república naquela língua nem existia?
Pensou-se então em usar o termo nação, mas mesmo aquele não existia. Assim, recorreu-se a um termo usado na linguagem corrente – millet – derivado do sentido de pertencimento a uma comunidade religiosa, embora aquele termo tendesse a indicar um ideal bastante diferente.
No Império Otomano, de fato, as comunidades religiosas viviam distintas e separadas, quase como estados por conta própria. O sultão, autoridade política suprema, garantia proteção a todas as minorias religiosas monoteístas. Nesse contexto, começou-se a falar no Oriente, impropriamente para nós, da nação cristã.
O conceito de nação, sobretudo graças à grande experiência do Levante e do Líbano em particular, poderia ter seguido um caminho diferente, o da unificação, que de fato pretenderia unir os diferentes crentes das realidades territoriais díspares em um único povo. Mas não aconteceu assim.
O colonialismo europeu empurrou para outro significado. As independências dos estados cristãos balcânicos ocorreram, por exemplo, pelo viés da solidez da fé, proclamada precisamente nas igrejas. Uma nação tinha que corresponder a um grupo étnico, a uma única "fé", para logo chegar a um partido único.
O genocídio armênio foi produto do desejo de fazer da Turquia um país composto por um único grupo étnico, os turcos, com uma só fé, o islamismo sunita, e um único líder: o Pai dos turcos. A ação genocida, iniciada por leigos como os Jovens Turcos, aproveitou-se do medo de que os cristãos fossem quintas colunas dos russos do czar que mirava seus territórios, como aliás as demais potências coloniais europeias.
Toda a experiência ocidental pré-colonial, portanto, manobrou os cristãos, agravando seu distanciamento dos cidadãos do mesmo país de diferente afiliação religiosa.
Da deriva nacionalista das nações, o cristianismo definiu uma peça fundamental com a teoria da sinfonia dos poderes, político e religioso. Essa sinfonia nada mais era do que a formalização, mesmo em âmbito cristão, de um fato no Oriente: o poder religioso está subordinado ao poder político, como entre os muçulmanos da época. Para explicar com nossa linguagem: em todos os lugares se tornaram cesaropapistas.
No mundo cristão oriental, o cesaropapismo foi particularmente interpretado pelo modelo russo, a começar pelo poder de salvação atribuído à Terceira Roma, na qual Moscou se identificava como a nova capital do cristianismo: uma capital que nunca teria caído como Bizâncio sob os golpes dos muçulmanos e que nunca terminaria tragicamente - por si só - com seu império, como a primeira Roma.
A teoria atual de Putin e Kirill do chamado Mundo Russo – Russkij Mir – baseia-se justamente naquele mundo que se considerava já ultrapassado. Aliás, a expressão Russkij Mir também significa paz russa, a paz imperial de Moscou, capital e patriarcado de todas as Rússias: um sexto das terras emersas do planeta.
Quando a revolução fez de Moscou a capital do império soviético, como extensão do Mundo Russo, o objetivo permaneceu o mesmo, embora ateu: o império de Moscou propunha a paz justa e revolucionária ao mundo inteiro, não mais aquela denominada Terceira Roma, mas Terceira Internacional.
Com Putin passou-se "só" do ateísmo de Estado ao fundamentalismo de Estado, com muita nostalgia da antiga União Soviética, a ser reproposta nas mesmas fronteiras, mas com aspectos marcadamente ortodoxos cristãos.
Por outro lado, vimos nascer os nacionalismos, filhos da mesma história de contraposição. O nacionalismo deforma tudo. O nacionalismo desperta e fortalece outro nacionalismo. O exemplo contemporâneo mais evidente, para mim, o vimos por ocasião da Via Sacra deste ano, quando Francisco propôs a uma mulher russa e a uma ucraniana que carregassem a cruz juntas na última estação.
O que negava a bondade daquela proposta, que mais tarde foi mesmo assim realizada? A teologia da Russky Mir, ou seja, a negação, do lado russo, de que existisse e existe uma nação ucraniana, como Putin afirmava e continua afirmando, argumentando que a Ucrânia é apenas parte da Grande Rússia.
Por outro lado, nos deparamos com um protesto ucraniano mais forte, uma vez que o nacionalismo ucraniano - que já existia e se fortaleceu - lamentou a equiparação feita por Francisco entre duas nações, autônomas e soberanas: entre dois povos, cada um com sua identidade cultural, como os próprios ucranianos diziam e dizem, por si só justamente.
A mesma teologia nacionalista também é encontrada no Ocidente, especialmente naqueles ambientes da direita estadunidense que sempre lembram a "nação abençoada por Deus", igualmente investida de uma missão messiânica ou algo do tipo.
Assim, agora foram recriadas as condições para que o mal absoluto possa ser visto de um lado: exatamente como do outro! Tudo isso se reproduz, mesmo em nível local. Os comunistas ou os ex-comunistas e os fundamentalistas eslavistas permaneceram enredados no mito da Terceira Roma ou Terceira Internacional. Os defensores da supremacia ocidental vivem no mito religioso da América abençoada por Deus.
No meio disso, muitas pessoas de boa-fé veem, unilateralmente, tanto nos Estados Unidos os poderosos que pretendem se impor em todos os lugares, quanto na Ucrânia o anteparo à lei da violência do urso forte: a Rússia. Enquanto nesse meio, na minha opinião, poderia ter se afirmado a ideia de que a defesa da liberdade e da soberania pode encontrar um caminho, mesmo com o uso moderado de armas, para obrigar o agressor, inquestionavelmente a Rússia, a negociar a paz.
Parece-me que o Papa Francisco continue a defender a visão do meio com uma insistência que é sistematicamente ocultada ou manipulada pelos extremismos opostos: de forma que ele é amigo de Putin para os ocidentalistas que gostariam de reduzi-lo a uma espécie de "coroinha de Biden" e, por outro lado, ele é afeito pelas velharias ideológicas sul-americanas que veem a OTAN como a causa de todos os males do mundo, para os orientalistas.
Para mim, isso é confirmado pelo fato de que Francisco, no Coliseu, encerrando o encontro da Comunidade de Santo Egídio pela paz, nunca ligou a única paz possível a uma única verdade. Prestemos atenção: o grito pela paz que brota da humanidade sofredora, para ele, é um só, mas os povos, cada um com suas razões, são múltiplos, sempre.
A paz de Francisco é definida como "humilhada por demasiadas violências", não apenas por uma. Humilhada, por quem? Francisco responde: “O grito pela paz é muitas vezes silenciado não apenas pela retórica da guerra, mas também pela indiferença”.
Não surpreende então o significado acrescentado logo a seguir: “(o grito da paz) não conhece fórmulas mágicas para sair dos conflitos, mas tem o sacrossanto direito de pedir a paz em nome dos sofrimentos padecidos, e merece para ser ouvido. Merece que todos, começando pelos governantes, parem para ouvir com seriedade e respeito. O grito da paz expressa a dor e o horror da guerra, mãe de todas as pobrezas”.
Em minha opinião, Francisco identifica, portanto, nos nacionalismos exasperados a degeneração dos problemas da paz, nas visões messiânicas, envoltas em misticismo, daqueles que acreditam conhecer o bem e o mal e saber extirpar o joio de trigo do campo. As ideologias nacionalistas, declinadas umas contra as outras, continuam a contaminar a todos: até nossos próprios pacifistas e belicistas.
Enquanto Francisco defende um só testemunho de fé - para aqueles que acreditam - ou seja, de profunda humanidade - para todos - mas no plural. O pluralismo é o fato surpreendente de Bergoglio, em sua capacidade instintiva de pensar uma Igreja verdadeiramente universal, "em saída" no mundo inteiro: uma Igreja que, neste momento histórico, não quer ser de forma alguma serva dos nacionalismos do Ocidente, mas nem mesmo cúmplice daqueles do Oriente.
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Francisco, paz, nacionalismo. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU