14 Outubro 2022
“O pontificado de Francisco está mostrando o quão importante foi a contribuição da teologia do Vaticano II para a transição de um catolicismo centrado na Europa para um global. Ao mesmo tempo, este momento da globalização da Igreja também mostra os limites do Vaticano II”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 10-10-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco disse algumas coisas interessantes sobre o Concílio Vaticano II nas últimas semanas. Em 11 de janeiro de 2021, em carta ao cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que acompanhava seu motu proprio permitindo o ministério do leitorado e do acolitado às mulheres, o papa descreveu sua decisão em termos do “horizonte de renovação traçado pelo Concílio Vaticano II” e “em conformidade com o Concílio Vaticano II”. Então vieram estas observações em seu discurso de 29 de janeiro de 2021 ao escritório catequético nacional da Conferência Episcopal Italiana:
“Este é o magistério: o Concílio é o magistério da Igreja. Ou você está com a Igreja e, portanto, segue o Concílio, e se não segue o Concílio ou o interpreta à sua maneira, como deseja, não está com a Igreja. Devemos ser exigentes e rigorosos neste ponto. O Concílio não deve ser negociado para ter mais desses... Não, o Concílio é como é. E esse problema que estamos vivendo, de seletividade em relação ao Concílio, vem se repetindo ao longo da história com outros Concílios.”
Tal como acontece com todos os outros ensinamentos de Francisco, essas declarações falam de maneira particularmente direta ao catolicismo dos EUA. Nos últimos meses, alguns bispos e clérigos tentaram avançar uma interpretação conservadora teologicamente defensável do Vaticano II, algo para contrariar as visões extremistas do arcebispo Carlo Maria Viganò e um grupo de quase cismáticos de mentalidade semelhante, que além de rejeitar o “magistério bergoliano” tomou uma posição difícil de distinguir da pura e simples rejeição dos ensinamentos do Concílio. Dom Robert Barron, bispo da Diocese de Winona-Rochester, EUA, por exemplo, falou dos ataques ao Vaticano II como uma “tendência perturbadora”, e Thomas Weinandy, ex-diretor-executivo do Secretariado de Doutrina e Práticas Pastorais da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos – USCCB, cobrou Viganò por desafiar a autenticidade do concílio.
Mas há mais do que interpretação teológica a considerar. A aliança do catolicismo americano conservador com o trumpismo também diz algo sobre a recepção do Vaticano II; o fascínio de alguns por uma liderança política quase cesariana é um sintoma do fracasso do Concílio neste país. No entanto, mesmo que isso seja mais evidente entre as vozes extremas do lado conservador do espectro, não é um problema exclusivamente conservador. Há fenômenos sistêmicos mais amplos em jogo, que nos últimos anos também expuseram falhas no lado liberal-progressista.
A primeira é uma “interrupção” na tradição acadêmica de examinar o Vaticano II. Estudar o Concílio requer fluência em latim e outras línguas, e um ecossistema intelectual no qual a teologia se baseia na conversa com a história da Igreja e a história da teologia, não apenas as ciências sociais. Ainda não há consenso sobre as traduções para o inglês, cuja última já tem mais de 25 anos (Austin Flannery, 1996; esta foi precedida pela editada pela do jesuíta Norman Tanner, em 1990, que sucedeu a de outro jesuíta, Walter Abbott, de 1966). Há estudos importantes sobre os EUA e o Vaticano II (como o que está sendo lançado por Joseph Chinnici), mas a última história estadunidense do Vaticano II é “O que aconteceu no Vaticano II”, de John O'Malley, publicada em 2008 durante o pontificado de Bento XVI (publicada em português em 2014).
Um fator relacionado é a ruptura da coexistência e colaboração que costumava caracterizar a “relação de trabalho” entre teólogos profissionais, leigos católicos e a Igreja institucional e hierárquica. Isso é resultado das perigosas tensões intracatólicas – eclesiais e políticas – que se desenvolveram neste país ao longo dos anos desde a publicação de comentários em vários volumes sobre os documentos do Vaticano II (em 1967, editado por Herbert Vorgrimler; em 1987, editado por René Latourelle; e no início dos anos 2000, a série “Rediscovering Vatican II”. Todos publicados pela editora Paulist).
Outros países não experimentaram isso no mesmo grau; nas últimas duas décadas, grandes redes de teólogos na Itália, Alemanha, Espanha e América Latina produziram volumes importantes de comentários sobre o Vaticano II. A falta de tal trabalho nos Estados Unidos tem consequências para os americanos que desejam estudar o Concílio. Parece haver mais espaço agora na academia teológica católica para a teologia pré e anti-Vaticano II de um lado, e uma teologia pós-Vaticano II com menos compromissos eclesiais discerníveis do outro lado. O próprio Vaticano II está preso em uma espécie de limbo intelectual e eclesial.
Outro fator: esta era de raiva global. Os escândalos sexuais e financeiros provocaram uma crise moral e legal, mas também teológica – e mais profunda do que a provocada pela fase anterior do escândalo de abuso sexual no início dos anos 2000. A raiva de uma instituição vista como indiferente (na melhor das hipóteses) em questões sociais importantes levou à ideia de que a Igreja perdeu todo o prestígio e, portanto, que o Vaticano II também; seus autores e líderes episcopais, as gerações de seus intérpretes desde então e toda uma tradição de estudos são vistos como irrelevantes. Há um sentimento de ressentimento, e não é apenas um reflexo de uma mentalidade anti-histórica. Em vez disso, surge da crença de que o Vaticano II não se envolveu com questões de gênero e raça de uma maneira tão radical quanto os tempos exigem e as leituras do Evangelho hoje exigem.
Os debates no Vaticano II, assim como o debate histórico e hermenêutico pós-conciliar, foram dominados por homens brancos. Apenas alguns exemplos: a teologia do Vaticano II ainda trabalha (embora com algumas limitações) contra o antissemitismo. Funciona menos eficazmente quando se trata do papel da mulher na Igreja ou da questão do abuso (sexual, de autoridade e de poder). O Vaticano II mostra as deficiências de uma teologia do início da década de 1960 – desenvolvida em um catolicismo pós-imperial primitivo que começava a entender o mundo pós-colonial. Agora, a ruptura da ordem global revelou a inadequação dessa teologia, bem como da eclesiologia, que era muito centrada nos bispos.
O quarto fator é a mudança nas percepções do ecumenismo e do diálogo inter-religioso entre o tempo do Concílio e agora, neste mundo pós-11 de setembro do século XXI. Passamos de uma narrativa de encontro para uma narrativa de confronto e conflito. Comparado com as décadas de 1960 e 1970, o catolicismo tem que se engajar com crenças mais assertivas (religiosa e politicamente) em todo o mundo, bem como com um secularismo mais assertivo.
Isso coincidiu com um aumento de convertidos que trazem um conjunto diferente de expectativas para sua compreensão da tradição da Igreja, que dá maior ênfase aos padres da Igreja, ao Catecismo e aos ensinamentos papais do que à tradição conciliar, incluindo o Vaticano II. E isso, por sua vez, introduz novas interpretações de períodos históricos: o Vaticano II foi realmente o início do diálogo com a cultura secular e com outras religiões? Ou o Vaticano II simplesmente perdeu as raízes do islamismo radical e político? O Vaticano II abraçou a descolonização ou realmente ajudou a prolongar a vida da teologia colonial?
Devo observar que as percepções sobre a relevância ou irrelevância do Vaticano II variam de lugar para lugar. Na América Latina, por exemplo, o Vaticano II ainda é altamente considerado, tanto na Igreja quanto no meio acadêmico; enquanto nos Estados Unidos a opinião é mais dividida. Mas isso só prova como o diálogo global no Concílio é impactado; as tumultuosas mudanças eclesiológicas e culturais influenciam substantivamente e substancialmente a abordagem do Vaticano II em todo o mundo. Aprendi isso em primeira mão trabalhando como membro de uma equipe global para um novo comentário intercontinental de doze volumes sobre o Vaticano II.
O que aconteceu nos últimos anos no nível institucional e intelectual levanta questões sobre o papel histórico do Vaticano II na Igreja global. Foi o início de uma nova história católica, ou um parêntese no maior parêntese pós-guerra da ordem liberal, que agora está em crise? Uma retórica que coloca o Vaticano II como o início da crise intelectual e moral do catolicismo (nostalgia do período pré-conciliar) é oposta à retórica do Vaticano II como o último suspiro da catolicidade (nostalgia da epopeia conciliar e do primeiro período pós-Concílio). O pontificado de Francisco está mostrando quão importante foi a contribuição da teologia do Vaticano II para a transição de um catolicismo centrado na Europa para um global. Ao mesmo tempo, este momento da globalização da Igreja também mostra os limites do Vaticano II.
É verdade que a oposição ao Papa Francisco está enraizada na oposição ao Vaticano II, especialmente nos Estados Unidos. Também é verdade que a variedade de posições em relação a Francisco e ao Vaticano II nos Estados Unidos nos ajuda a entender como os documentos do Concílio podem não ser capazes de servir à Igreja hoje – e talvez o que pode ser feito para melhorar a recepção e aplicação desses documentos. Mas parece haver limites para o que a recepção fiel do Vaticano II por Francisco pode realizar. E dada a divisão eclesial sobre o pontificado de Francisco, é difícil imaginar a convocação de outro Concílio tão cedo.
Talvez haja motivos para esperar que o Vaticano II possa encontrar nova vida nas expressões locais e nacionais da sinodalidade, dando um impulso de energia ao processo eclesial e, ao mesmo tempo, abordando algumas das lacunas deixadas pela teologia e os ensinamentos do Concílio. Mas resta saber se esse tipo de sinodalidade é a sinodalidade que o Papa Francisco tem em mente.
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Por que a recepção do Concílio Vaticano II ainda é um problema? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU