12 Outubro 2022
"A grande contribuição de Saramago para o diálogo interdisciplinar entre teologia e literatura não reside exclusivamente no que escreve sobre Deus. Diria que o aspecto mais significativo é a maneira como sua escrita ilumina o enigma humano", escreve José Tolentino Mendonça, cardeal português, bibliotecário e prefeito do Dicastério do Vaticano para a Cultura e a Educação[1], em artigo publicado por Lettura, 09-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Falando de José Saramago, começaria pela recuperação do que escreve Walter Benjamin sobre a “hora da legibilidade” de uma obra ou de um autor, que não coincide necessariamente com seu momento histórico original. Benjamin argumenta que a natureza histórica das imagens não apenas diz que elas pertencem a uma época específica, mas sobretudo que elas se tornam legíveis em uma época específica, em muitos casos diferente das circunstâncias de sua produção.
Eu, que sou um leitor entusiasta de Saramago - e naturalmente no centro do meu interesse está também a problematização do fato religioso que ele enseja - pergunto-me muitas vezes como será lido, desse ponto de vista, no futuro. A primeira recepção de Saramago, muito condicionada pelas suas tomadas de posição públicas, insistia naquela que parecia ser uma profissão explícita de ateísmo, e definia o projeto literário do Nobel português sobretudo como uma "antiteodiceia", como um claro processo de "desteologização", do fato judaico-cristão, como uma "antiépica" de Deus.
Por exemplo, o topos religioso e bíblico é continuamente convocado por ele - tomamos títulos como O Evangelho segundo Jesus Cristo ou Caim -, mas se quiséssemos pensar sua literatura como um locus theologicus, seria sempre ao contrário, transformando o vitral devoto em um quebra-cabeça corrosivo, através da crítica sistemática, da tomada de distância e da paródia.
O Evangelho segundo Jesus Cristo
Parênteses: esse ateísmo de Saramago está longe de ser classificado, pelo leitor religioso, tout court como desprovido de interesse, pois, como se recomenda na Constituição conciliar Gaudium et spes, os crentes são chamados a fazer um exame sério das causas da negação de Deus. Os questionamentos que Saramago coloca são duros, mas também o são as perguntas daquele questionador rebelde que é Jó, e o quase niilista Eclesiastes.
Caim
Em todo caso, não se pode deixar de ver como coexiste no autor uma espécie de subtexto espiritual clandestinamente operante que percorre toda a sua narrativa. Como evidencia a crítica recente - por exemplo, de Manuel Frias Martins a Piero Boitani entre outros -, há mais mistérios entre Saramago e Deus do que se possam ver. Se isso for verdade, podemos dizer que a crítica do escritor se exerce mais sobre as representações de Deus do que sobre o próprio Deus.
Como escreve uma poetisa portuguesa contemporânea, em determinadas situações “o iconoclasta / reconstrói o ícone”. E, no entanto, a grande contribuição de Saramago para o diálogo interdisciplinar entre teologia e literatura não reside exclusivamente no que escreve sobre Deus. Diria que o aspecto mais significativo é a maneira como sua escrita ilumina o enigma humano. “O que procuro mesmo saber - explicou o escritor - é o que é isso de sermos seres humanos. O que eu procuro saber é essa coisa tão simples e que não tem resposta: quem somos?”.
A qualidade e originalidade da reflexão antropológica que José Saramago coloca em prática é realmente assombrosa, e com o tempo irá revelar-se cada vez mais profícua. É aí que sua capacidade de escutar o inaudível provoca vertigens.
[1] O Cardeal José Tolentino de Mendonça (Machico, Portugal, 15 de dezembro de 1965) é prefeito do Dicastério do Vaticano para a Cultura e a Educação desde 26 de setembro, após a nomeação do Papa Francisco. Antes era Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana.
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Saramago. A sua espiritualidade clandestina questiona os crentes. Artigo de José Tolentino Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU