03 Outubro 2022
Para Ricardo Abramovay, professor da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP e especialista na temática ambiental, “a recente volta do Brasil ao mapa da fome exige que se definam quais devam ser as prioridades da produção agrícola” brasileira.
“Alegar a necessidade de produzir bioenergia para justificar o desmatamento é ainda mais atrasado do que o argumento de que é necessário devastar senão o mundo morre de fome. O desmatamento hoje no Brasil tem que ser imediatamente zerado, não dá para esperar até 2030 e esta conquista democrática depende de uma ação estatal contra o crime organizado que é seu principal vetor. Alegar a necessidade de alimentar o Brasil ou o mundo para legitimar o desmatamento é um disparate, já que seria possível aumentar a produção sem derrubar uma só árvore. Este disparate torna-se delírio, quando o argumento é a produção de energia”, aponta.
Filósofo, doutor em ciências humanas, Abramovay atualmente também é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Investigando questões nas áreas de sociologia e economia, se dedica há 40 anos às questões ambientais, sendo autor de vários livros na área, dentre eles o mais recente, Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, publicado em 2022.
A entrevista é de Leandro Magrini, publicada por ComCiência, 15-09-2022.
Desde a publicação de “Biocombustíveis – A energia da controvérsia”, em 2009, quais foram as principais mudanças em relação à utilização dos biocombustíveis no Brasil?
Quando o livro foi publicado, o plano governamental era utilizar principalmente a mamona como fonte de biodiesel. Isso não funcionou e hoje o biodiesel brasileiro vem fundamentalmente da soja. Quase 20% da produção brasileira de soja, hoje, é destinada a biodiesel. Ora, o aumento da produção de soja tem sido um vetor de desmatamento, sobretudo no Cerrado. Ao mesmo tempo em que a produção de soja no Cerrado cresce, as condições para as atividades agrícolas pioram. Estudo publicado na Global Change Biology mostra que a perda de vegetação responde por um aumento de 3,5ºC na temperatura do Cerrado nos últimos quinze anos. O primeiro paradoxo do biodiesel então é que se sua base for a soja (produzida, em grande parte a partir do desmatamento) sua expansão sacrifica os serviços ecossistêmicos dos quais o produto depende.
Além disso, a recente volta do Brasil ao mapa da fome exige que se definam quais devem ser as prioridades da produção agrícola. O caso da cana-de-açúcar é diferente, pois ela não é um vetor de desmatamento (ao menos não na intensidade da soja) e seu uso na produção de energia passa por um conjunto de mudanças tecnológicas, como o etanol de segunda geração, que permitem ao produto integrar o rol daquilo que os especialistas chamam de tecnologias renováveis modernas, o que não é o caso da soja. Essa concorrência entre energia e alimentação (que ocorre também para o uso do milho na produção de etanol) não estava no horizonte de quinze anos atrás. A matéria orgânica na obtenção de etanol, de biodiesel e na geração de eletricidade é importante, mas ela não tem futuro se disputar espaço e recursos com a produção alimentar.
Mas a principal mudança dos últimos quinze anos no campo dos biocombustíveis é a afirmação dos veículos elétricos como padrão global de mobilidade. Neste sentido, mesmo o etanol de cana-de-açúcar, por maior que seja sua contribuição para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, não é a tecnologia da mobilidade do século XXI. O motor a combustão interna tende a ser substituído de forma acelerada e generalizada pelos motores elétricos, o que traz transformações estruturais decisivas. Basta pensar na quantidade de oficinas e de postos de gasolina que vão desaparecer quando essa tecnologia se generalizar. Neste sentido, o trunfo representado pelo etanol para reduzir nossas emissões é, ao mesmo tempo, um obstáculo que atrasa a adaptação de nossa indústria automotiva ao que de mais avançado está acontecendo no mundo e que se refere ao processo de eletrificação, que atinge todos os setores da vida social.
O Relatório Especial do IPCC mostrou que não é possível restringir o aquecimento global se não retirarmos ativamente o gás carbônico da atmosfera. Uma das formas é a Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono, os BECCS, da sigla em inglês. O uso dos BECCS demanda ainda o desenvolvimento de tecnologias em larga escala que permitam que, ao queimar a biomassa para a produção de energia, o gás carbônico emitido seja capturado e armazenado. Como você avalia essa utilização?
O mais importante nesta expressão não é a bioenergia, e sim a captura de carbono. Que o crescimento de árvores e até de culturas agrícolas ou pastagens possa captar carbono, disso não há dúvida. Mas queimar esses materiais para a produção de energia e remover da atmosfera os gases de efeito estufa emitidos neste processo, é aí que as coisas se complicam. Claro que é fundamental avançar a pesquisa nesta direção como vêm fazendo organizações como o Research Center for Greenhouse Gas Innovation, com apoio da Fapesp e do setor privado. Um trabalho da Academia Norte-Americana de Ciências, Engenharia e Medicina calcula que se poderia armazenar em reservatórios geológicos e ecossistemas terrestres cerca de um quinto das emissões atuais. Mas até aqui, a contribuição efetiva deste tipo de captura de carbono e outras modalidades de geoengenharia no combate à crise climática é inteiramente experimental, para não dizer especulativa.
Os BECCS são a mais divulgada modalidade de tecnologias de emissão negativa (Negative-Emissions Technologies, ou NETs). Há dois problemas sérios com essas tecnologias. O primeiro é colocado explicitamente no relatório da Academia Norte-Americana de Ciências ao reconhecer o “risco moral” (moral hazard) de que o horizonte de largas emissões negativas no futuro reduza a urgência de cortá-las no curto prazo. Afinal, se o horizonte é de tecnologias BECCS funcionando, por que impor o sacrifício de acelerar a transição energética? Não é à toa que muitas pesquisas nesta área são financiadas por alguns dos mais importantes gigantes da produção de [combustíveis] fósseis. O segundo problema é de escala. Converter gás carbônico em pedra, por exemplo, é algo que as técnicas atuais já permitem fazer. Mas para cumprir o papel de manter a elevação da temperatura global média abaixo de 1,5ºC até o final deste século, comparado com o período anterior à Revolução Industrial, o tamanho da pedra teria que corresponder aproximadamente ao território da Venezuela com meio metro de profundidade. Onde enterrar esta pedra é algo que, até aqui, não está nos modelos.
Não é por outra razão que nas entrevistas que Elizabeth Kolbert realizou para escrever Sob um céu branco, ela caracterizou os cientistas que trabalham nesta direção como tecnofatalistas. Por mais apaixonantes que sejam os modelos com os quais trabalham, eles sabem perfeitamente que a captura de carbono nem de longe pode ser tomada como solução adequada para enfrentar a crise climática. E esta inadequação é ainda mais grave, caso as emissões não parem de subir, como está ocorrendo ainda nos dias de hoje. É uma espécie de solução desesperada baseada na ideia de que, tendo em vista a impossibilidade de reduzir as emissões, então a alternativa reside na geoengenharia.
Isso dito, a armazenagem de carbono nas regiões costeiras, no reflorestamento e até em pastagens são contribuições decisivas para combater a crise climática.
Como compatibilizar a diversificação da matriz energética com o aumento de fontes de energia renováveis como aquelas oriundas de biocombustíveis, sem aumentar ainda mais a pressão sobre os biomas? Segundo estudo recente do MapBiomas, o agronegócio foi responsável por 97% do desmatamento no país em 2021.
A diversificação de nossa matriz energética não virá fundamentalmente da biomassa. Claro que a cana-de-açúcar tem um potencial grande tanto para a mobilidade como para a geração de energia elétrica. Hoje, no Brasil, a biomassa responde por cerca de 9% de nossa capacidade de geração elétrica e a cana responde por três quartos deste total.
Mas o avanço da energia eólica e o potencial extraordinário da energia solar é que vão desenhar o futuro da energia renovável no Brasil, juntamente com o parque já instalado de hidroeletricidade, e cujo potencial de aumento é pequeno, tanto em função do horizonte de escassez de recursos hídricos como em virtude da agressão à floresta e aos povos que nela habitam trazida pela instalação das usinas hidrelétricas.
Alegar a necessidade de produzir bioenergia para justificar o desmatamento é ainda mais atrasado do que o argumento de que é necessário devastar senão o mundo morre de fome. O desmatamento hoje no Brasil tem que ser imediatamente zerado, não dá para esperar até 2030 e esta conquista democrática depende de uma ação estatal contra o crime organizado que é seu principal vetor. Alegar a necessidade de alimentar o Brasil ou o mundo para legitimar o desmatamento é um disparate, já que seria possível aumentar a produção sem derrubar uma só árvore. Este disparate torna-se delírio, quando o argumento é a produção de energia.
No início do milênio havia um conjunto de pesquisadores tentando provar que o etanol era o combustível da mobilidade do futuro e que o Brasil poderia ser um ator global neste produto. Mas a rota tecnológica predominante no mundo todo é a da supressão da mobilidade apoiada no motor a combustão interna. E com isso, ficou muito claro que esta suposta vocação do Brasil era ilusória.
É claro que em várias regiões interioranas, sobretudo na Amazônia, existe um potencial de aproveitamento de plantas oleaginosas para a produção de biocombustível. Mas imaginar que isso vai ser massificado a ponto de influir na matriz energética brasileira é perigoso, pois supõe a implantação de modelos produtivos incompatíveis com a floresta.
Recentemente você publicou dois livros cuja temática principal é assegurar a preservação da Amazônia de modo a se alcançar o desenvolvimento sustentável da floresta. Neste sentido, quais devem ser as medidas norteadores e quais os principais desafios?
A floresta tem que ser preservada. Desenvolvimento, como diz Amartya Sen [professor e economista indiano, ganhador de um prêmio Nobel de Economia], é o processo de ampliação permanente das liberdades substantivas dos seres humanos. É uma noção que se refere à vida social.
Preservar a floresta não garante desenvolvimento. A floresta, antes de ser uma utilidade, é um valor de natureza ético-normativa com o qual uma sociedade democrática deve estar comprometida. Mas a floresta é também um valor instrumental, por suas funções ecossistêmica. O desafio não só da Amazônia, mas das florestas tropicais da Bacia do Congo e da Ásia é promover desenvolvimento (no sentido de Amartya Sen) fortalecendo os tecidos ecossistêmicos que respondem pela floresta.
Em Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (2019), procurei desfazer alguns mitos como o que sustenta a necessidade de desmatar para ampliar a participação da agricultura brasileira em mercados globais. Em Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia (2022) mostro que a noção de infraestrutura está passando por transformações decisivas no mundo todo. Ela deixa de ser a “ossatura”, para se converter em inteligência do crescimento econômico. Ela sinaliza qual a composição material, energética e biótica do crescimento econômico. A Amazônia brasileira tem sido tratada até hoje como uma espécie de almoxarifado onde o país vai buscar energia, recursos minerais e agrícolas a baixo custo, com alta destruição da natureza e baixíssima valorização do trabalho. O resultado é que a Amazônia tem hoje os piores indicadores sociais do país. A urgência é de uma infraestrutura voltada para as pessoas e para suas atividades.
A infraestrutura na Amazônia pode ser abordada em cinco dimensões básicas. A primeira consiste em tratar a floresta como a mais importante infraestrutura da qual dispõem os brasileiros. É a que lhes fornece água, ar limpo, biodiversidade. É igualmente a infraestrutura básica da luta contra as mudanças climáticas. O carbono armazenado na Panamazônia corresponde às emissões globais de quase quinze anos. Se a floresta atingir o ponto de não retorno, em que ela passa a emitir gases de efeito estufa (o que, em alguns lugares já está acontecendo) isso põe a perder todo o esforço global na luta contra a crise climática.
A segunda dimensão é que a Amazônia precisa de uma infraestrutura voltada à economia do cuidado. Isso envolve saúde, educação e atenção especial às crianças e à população idosa. O projeto Amazônia 2030 mostra que a região não está aproveitando seu bônus demográfico, uma vez que a população jovem enfrenta o mercado de trabalho em condições muito mais precárias que no restante do Brasil.
A terceira dimensão envolve as atividades dos povos da floresta que hoje dependem de óleo diesel, que não têm energia elétrica estável, nem internet de qualidade. Com isso, a exploração dos produtos florestais torna-se precária gerando muito menos valor do que seu potencial. A quarta dimensão é imaterial e refere-se a marcas de qualidade e ao fortalecimento do empreendedorismo, sobretudo no interior. O Selo Origens Brasil é um exemplo, pois abre caminho à comercialização de produtos florestais de áreas protegidas.
Por fim, é preciso sempre ter em mente que dois terços da população da Amazônia vivem na sede dos municípios ou em regiões metropolitanas. As cidades precisam também de infraestruturas adequadas às condições específicas da Amazônia: asfalto em Belém custa cinco vezes mais caro que em São Paulo e derrete com o calor. A ideia de soluções baseadas na natureza tem que se tornar o vetor das infraestruturas para a Amazônia. Ao mesmo tempo, a implantação de atividades agrícolas nas regiões urbanas e periurbanas é também importante. E estas infraestruturas têm que respeitar as populações ribeirinhas e indígenas que vivem em muitas cidades da Amazônia.
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“Desmatamento é disparate que se torna delírio quando argumento é produção de energia”. Entrevista com Ricardo Abramovay - Instituto Humanitas Unisinos - IHU