31 Mai 2022
"A fronteira, sempre artificial, em vez de ser a linha compartilhada de comunidades políticas e linguísticas abertas, torna-se uma frente bélica. É o que acontece hoje na Ucrânia, onde centenas e milhares, definidos como 'heróis', sacrificam suas vidas por uma velha e indefensável ideia de 'pátria'”, escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana e professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado Il Fatto Quotidiano, 27-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Embora o cenário político internacional seja mais do que nunca sombrio e confuso, duas diferentes tendências estão se delineando na maneira de enfrentar esse novo conflito europeu. Por um lado, há quem o descreve como a guerra de Putin contra o mundo, recorrendo a antíteses consolidadas: loucura contra a razão, barbárie contra civilização, tirania contra democracia. O novo Genghis Khan, o Hitler de plantão, ameaça o progresso, semeia a destruição, provoca o apocalipse. Nesta visão, os ucranianos "se sacrificam por nós" constituindo um posto avançado do mundo, uma barreira indispensável, antes que a violência cega se espraie por toda parte. É uma forma de interpretar os eventos que, além de ser a-histórica, despolitiza o conflito, ignorando os motivos que o desencadearam. Isso não significa que essa tendência, defendida sobretudo pelos Estados Unidos, não persiga um objetivo ultrapolítico, que é o prolongamento da guerra, apresentada em sua inevitabilidade natural. Da ordem mundial de alguns meses atrás passamos assim a uma confusão cósmica, a um caos ilegível, onde todo mal, da recessão à carestia, parece fatal, sem remédio.
Do outro lado, há uma tendência oposta que tem como finalidade a delimitação espacial e temporal do conflito. Embora destinado a ficar no papel, o plano de paz italiano, rejeitado pela Rússia, tem, no entanto, um valor simbólico. E contém uma mensagem: existem quatro pontos em que as forças da diplomacia política deveriam intervir para romper uma cadeia de efeitos desastrosos. Pena que a Itália, ao enviar cada vez mais armas a uma das duas partes, esteja inviabilizando o plano ao se coibir a possibilidade de ser protagonista das negociações.
Além dessa esquizofrenia, resta a mensagem e a identificação dos pontos. O terceiro ponto, talvez o mais problemático, mas certamente o mais concreto, diz respeito à questão dos territórios e das fronteiras, em particular a Crimeia e o Donbass. Precisamente por isso é interessante do ponto de vista filosófico-político.
Não é por acaso que as duas expressões lançadas como advertência contra um eventual acordo sejam "soberania" e "integridade territorial". Draghi também as retomou afirmando: "Será a Ucrânia e não outros a decidir qual paz aceitar". Aqui reside um modelo de soberania há tempo posto em discussão. Como desapareceu a liberdade abstrata de um sujeito que se presume autônomo, porque só se é livre por meio dos outros e com os outros, assim é inconcebível no cenário atual a soberania de uma nação desvinculada das demais. A convivência com os povos mitiga e limita qualquer soberania – disso provém a própria ideia de Europa (a menos que queiramos cancelá-la).
Portanto, não pode ser só a Ucrânia a decidir que paz aceitar, uma vez que está em jogo o futuro de todos os povos europeus, para não falar dos mais fracos e dos mais expostos nos outros continentes.
A questão da "integridade territorial" é ainda mais controversa. A nação é uma forma singular de reagrupar a humanidade com base no nascimento. Uma nação não coincide com o Estado. Existem nações sem estado, como os curdos, e estados que contêm várias nações, como a Espanha. Dividir o território europeu em estados nacionais, especialmente no Leste, foi uma tarefa árdua e contraproducente. Pretender a homogeneidade étnica e o enraizamento no solo significa abrir a porta a vertentes ultranacionalistas. O separatismo – basta pensar no sul tirolês ou no catalão – é uma resposta a isso.
A fronteira, sempre artificial, em vez de ser a linha compartilhada de comunidades políticas e linguísticas abertas, torna-se uma frente bélica. É o que acontece hoje na Ucrânia, onde centenas e milhares, definidos como “heróis”, sacrificam suas vidas por uma velha e indefensável ideia de “pátria”.
No vastíssimo território ucraniano, onde existem muitas minorias, uma população russófona se perfila ao Leste, diferente do ponto de vista histórico, político e cultural. Após o emblemático capítulo da Crimeia, anexado pela Rússia após o referendo de 2014, foi certamente um erro de Kiev não conceder um status autônomo ao Donbass. Em ambos os casos, a independência oportuna ratificaria aquelas diferenças que não poderiam ser apagadas e talvez evitaria o conflito. Agora, as autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, reconhecidas pela Federação Russa, estão basicamente sendo engolidas pela invasão.
A Europa, que havia nascido para superar as nações e garantir a convivência entre os povos, assiste impotente a uma espécie de guerra civil fratricida. No entanto, é precisamente daqui que se pode recomeçar, por um lado, questionando radicalmente soberania e integridade territorial, por outro, visando os grandes objetivos políticos de paz e da convivência.
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O falso mito da Ucrânia soberana com fronteiras livres. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU