30 Mai 2022
Dada a morte na sexta-feira do cardeal italiano Angelo Sodano, que tinha 94 anos, o que muitas vezes é descrito como a “velha guarda” do Vaticano sofreu um golpe significativo. Sodano havia sido secretário de Estado de dois papas e ex-decano do Colégio dos Cardeais, e permaneceu enormemente influente na formação da cultura interna do Vaticano.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 29-05-2022.
Com a morte de Sodano, o novo capitão de facto da velha guarda torna-se indiscutivelmente o cardeal Giovanni Battista Re, de 88 anos, sucessor de Sodano como decano do Colégio Cardinalício e, como Sodano, um produto da Secretaria de Estado, tendo servido como um assessor do lendário cardeal Giovanni Benelli quando Benelli era o sostituto, ou chefe de gabinete, do papa Paulo VI.
A frase se refere a uma rede informal de funcionários de longa data, tanto clericais quanto leigos, e principalmente (embora não exclusivamente) associados à Secretaria de Estado, o departamento mais poderoso do Vaticano. Essa rede se vê como defensora dos pilares tradicionais da cultura vaticana, sobretudo a autonomia e a soberania, que muitas vezes se traduz em uma cautela instintiva em relação a estranhos – a velha guarda, por exemplo, geralmente prefere fazer negócios com alguém que é della famiglia, “um membro da família”, não importa quão impecáveis sejam as credenciais e a experiência de outra pessoa sem essas conexões.
Embora Sodano tenha sido um importante ponto de referência, seria um grave erro pensar que sua morte significa que a velha guarda está desanimada. Outra de suas características definidoras é sua capacidade quase sobrenatural de enfrentar ondas de tentativas de reformas, incluindo mudanças de pessoal.
Eles são mestres do que os italianos chamariam de una riforma gattopardesca, um romance do famoso escritor siciliano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, cuja linha-chave era: “Tudo deve mudar, para que tudo permaneça igual”.
Para os críticos, Sodano era quase a personificação viva do motivo pelo qual o poder da velha guarda deveria ser quebrado.
Ele tinha um estilo de governo um tanto imperial e muitas vezes foi acusado de construir impérios e perseguir uma agenda paralela, às vezes até em desacordo, com as prioridades dos papas a quem serviu. Às vezes se dizia de Sodano que sua desgraça nasceu fora do tempo, pois ele teria sido um secretário de Estado ideal durante a Renascença, quando cardeais de tal categoria eram realmente príncipes.
Quando Sodano foi embaixador papal no Chile durante a era Pinochet, de 1978 a 1988, ele adquiriu a reputação de um forte aliado do regime militar. Na verdade, Sodano era visto como um centro de poder rival do cardeal de Santiago, Raul Silva Henríquez, nomeado pelo Papa João XXIII que havia apoiado cautelosamente o presidente socialista Salvador Allende, morto em um golpe em 1973, e criticava Pinochet.
A maior crítica que Sodano enfrentou, no entanto, veio com a crise dos abusos sexuais clericais.
Durante grande parte da década de 1990 e início dos anos 2000, Sodano era conhecido como o melhor amigo no Vaticano do falecido padre mexicano Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo, que mais tarde foi investigado pela Congregação para a Doutrina da Fé por acusação de ampla gama de abuso sexual e má conduta. Sodano admirava Maciel por seu sucesso em gerar novas vocações e por sua forte fidelidade ao papa e tentava ajudá-lo sempre que surgiam rumores de má conduta.
Em 2005, Sodano usou uma reunião privada com a então secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, para solicitar que a Casa Branca obrigasse um juiz de Kentucky a descartar um processo de abuso sexual que nomeava o Vaticano como réu. Rice recusou o pedido, explicando que, no sistema americano, o poder executivo do governo não tem controle sobre o judiciário, embora a ação tenha sido posteriormente retirada, por outros motivos, pelo advogado que a abriu.
Em abril de 2010, Sodano novamente gerou polêmica quando usou uma saudação ao papa durante a liturgia do Domingo de Páscoa do Vaticano para rotular as críticas ao Papa Bento XVI sobre questões de abuso clerical como a “fofoca mesquinha do momento”. Como escrevi na época, Sodano conseguiu ofender simultaneamente dois eleitorados que normalmente ocupam planetas diferentes: sobreviventes de abuso clerical e tradicionalistas litúrgicos descontentes com a novidade da missa de Páscoa ser interrompida para o discurso de um cardeal.
Também em 2010, o cardeal austríaco Christoph Schönborn acusou Sodano de ter bloqueado uma investigação de acusações de abuso em 1995 contra o ex-arcebispo de Viena, Hans Hermann Groër. O espetáculo de um cardeal acusando publicamente outro de encobrimento levou a uma cúpula extraordinária em Roma, na qual Schönborn foi obrigado a reconhecer que o único juiz de um cardeal era o papa (isso foi antes de uma reforma do Papa Francisco, que permite que um cardeal seja indiciado e processado por atividade criminosa por um tribunal do Vaticano).
Sodano também enfrentou críticas por fornecer informações incompletas aos papas João Paulo II e Bento XVI sobre acusações de abuso sexual e má conduta contra o ex-cardeal e ex-padre Theodore McCarrick nos EUA.
Com certeza, Sodano também tem seus defensores.
Os fãs dizem que ele serviu lealmente a João Paulo II, apesar das fortes divergências com o pontífice polonês sobre a política tradicional do Vaticano de Ostpolitik, ou sobre o alcance e o diálogo com o mundo soviético; que ele ajudou a pavimentar o caminho para a reaproximação com a China, incluindo o controverso acordo fechado sob o Papa Francisco sobre a nomeação de bispos; e que, ainda que desajeitadamente, defendeu Bento XVI quando o pontífice estava sob ataque, ganhando assim crédito pela lealdade em um momento em que outros pareciam estar abandonando o barco.
No entanto, é impressionante que mesmo o “Vatican News”, o veículo oficial do Vaticano, e o Avvenire, o jornal dos bispos italianos, não publicaram homenagens, restringindo-se em grande parte a um breve resumo de sua carreira. O Papa Francisco, em um telegrama, disse apenas: “Lembro seu trabalho diligente ao lado de tantos de meus predecessores, que lhe confiaram importantes responsabilidades na diplomacia do Vaticano, até o delicado cargo de Secretário de Estado”.
Talvez, no final, a morte de Sodano realmente seja uma bênção para a velha guarda, pois remove um pára-raios. Mas seja o que for que se queira dizer sobre o cardeal Angelo Sodano, um dos titãs da Igreja Católica ao longo de mais de 50 anos, a frase de Shakespeare parece adequada: He was a man, take him for all in all, I shall not look upon his like again” (“Ele era um homem, por tudo em tudo, não verei mais algo assim novamente”, em tradução livre).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Com a morte de Sodano, a velha guarda do Vaticano está em baixa, mas dificilmente fora do jogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU