03 Mai 2022
Cultura do cancelamento, deriva moral: as obsessões do conservadorismo russo por trás do ataque à Ucrânia.
O comentário é de Kristina Stoeckl, professora de sociologia, e Dmitry Uzlaner, bolsista sênior de pós-doutorado, ambos da Universidade de Innsbruck (Áustria), em artigo publicado por Washington Post e reproduzido por Reset, 21-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nas últimas semanas, muitos analistas - especialmente aqueles que procuram encontrar uma justificativa lógica para a guerra russa na Ucrânia - defenderam que o Kremlin estava reagindo ao que havia considerado uma ameaça de intrusão da OTAN e à pressão da aliança ocidental na esfera de influência da Rússia.
Mesmo que fosse esse o caso, tais explicações perdem um ponto importante. As elites conservadoras russas atualmente no poder apoiaram a guerra porque veem o poder ocidental como decadente e em declínio. Essa imagem do Ocidente faz a Rússia se sentir forte e invencível.
Em seu sermão de 6 de março, cerca de duas semanas depois do início da guerra, o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa justificou a invasão da Ucrânia como necessária para a defesa dos cristãos ortodoxos contra os valores ocidentais e paradas de orgulho gay. Em 24 de março, durante um encontro com jovens artistas, o presidente russo Vladimir Putin protestou contra a cultura do cancelamento, argumentando que assim como J.K. Rowling havia sido criticada por sua oposição aos direitos dos transgêneros, o Ocidente estava agora "tentando apagar toda uma cultura de 1000 anos, o nosso povo ... agora os escritores e livros russos estão sendo cancelados".
A Rússia se apresenta como o país na vanguarda das guerras culturais globais, liderando a resistência aos valores liberais. O antiocidentalismo russo tem implicações religiosas: de acordo com sua própria narrativa, a Rússia está salvaguardando a verdadeira fé cristã, encarnada na Igreja Ortodoxa Oriental, das tentativas ocidentais de distorcê-la, no século XX com o marxismo e no século XXI com o liberalismo.
A Ucrânia desempenha um papel importante nesta história. Ela é retratada como parte do “mundo russo”, o berço da civilização russa, que por muitos séculos girou não em torno de Moscou, mas em Kiev, a capital da atual Ucrânia. A escolha da Ucrânia de se orientar para o Ocidente e conciliar uma identidade eslava ortodoxa com os valores democráticos liberais é, portanto, perigosa para essa visão de si russa.
As teses sobre as liberdades de gênero e a cultura do cancelamento que nos chegam hoje do Patriarca Kirill e Putin não são originais russas. Eles derivam da ideologia da direita cristã global, que os conservadores russos aprenderam na década de 1990.
Imediatamente após o fim da Guerra Fria, ativistas da direita cristã, principalmente dos Estados Unidos, invadiram a Rússia; entre eles estavam Focus on the Family, CoMission e o Congresso Mundial das Famílias. Desde a década de 1990, os conservadores russos defendem que a frustração de sua sociedade que está desmoronando é o resultado de dolorosas reformas socioeconômicas liberais. Sua tese combina elementos de um ethos social conservador soviético tardio, tradicionalismo ortodoxo russo e enormes influências transnacionais.
O discurso russo atual sobre os valores tradicionais é um híbrido de ideias da direita cristã, das guerras culturais globais e de nostalgia do grande passado soviético e do ainda maior passado imperial e ortodoxo cristão russo.
Esse tipo de conservadorismo cultural russo permaneceu marginal até 2010: começava nesse ano a migrar para o centro da vida política russa– decisivamente durante o terceiro mandato de Putin como presidente. Para Putin, o discurso de valores tradicionais era um bom pretexto para a repressão política – exemplificado no tratamento dado às Pussy Riot – e um escudo contra a crescente oposição exigindo mais liberdade.
Os valores tradicionais e a defesa do cristianismo eram bases idôneas para a nova missão política externa russa: tornar-se líderes de todos aqueles países e atores que não eram, não eram mais ou nunca quiseram ser "liberais".
No processo de "aprender" das guerras culturais globais, os conservadores russos não apenas definiram sua identidade nacional em relação ao conservadorismo cristão global, mas também adquiriram uma visão precisa de um Ocidente vazio do ponto de vista espiritual e em crise. Os conservadores cristãos que afluíram à Rússia transmitiam a imagem de um Ocidente incerto, fraco, destinado ao fracasso, porque já não tinha mais filhos, já não tinha mais valores e já nem sabia distinguir entre um homem e uma mulher. Como resultado, muitos conservadores cristãos estadunidenses e europeus olhavam para a Rússia com esperança.
A imagem que tinham os conservadores cristãos de um Ocidente em crise e destinado a fracassar começou a dominar as ideias das elites conservadoras russas no final dos anos 2000. Para as elites russas, no entanto, os parceiros conservadores ocidentais pertenciam a esse Ocidente fracassado: eles também eram fracos e arautos miseráveis de um Ocidente em declínio.
Essa descrição do Ocidente ajudou a criar um novo triunfalismo russo. As mídias russas se encheram de programas de televisão e "documentários" sobre "Gayropa" e "Sodoma". Programas que evocavam caricaturas de homens ocidentais fracos, "um pouco gays" e de mulheres que perderam sua feminilidade e competem com os homens em esferas das quais não conseguiriam nada de sério.
Muitas vezes, as mídias russas faziam notar a bizarrice de muitas democracias ocidentais que nomeavam mulheres como ministras da Defesa, como se isso fosse uma prova definitiva de que o Ocidente havia perdido sua capacidade de se defender. Nessa imagem coletiva de um Ocidente fraco, a Rússia se retratava (dentro e fora) como o país da força, o baluarte das famílias tradicionais: com homens fortes, mulheres férteis e crianças adequadamente protegidas da subversiva propaganda homossexual.
Uma imagem que não tem fundamento empírico, mas isso não importava. Assim, a Rússia era percebida internamente como o messias do mundo, uma força capaz de impedir que o mundo caísse no caos do mal, com a missão especial de salvar o mundo da depravação liberal. O sermão do patriarca em 6 de março expressava precisamente essa visão de mundo.
Fascinadas por essa visão lisonjeira da Rússia, as elites parecem ter superestimado a força da nação e subestimado a força da Ucrânia. O Kremlin também parece ter subestimado a força e a unidade do Ocidente coletivo, que não é tão corrupto e fraco quanto a Rússia imaginava. J.K. Rowling, que Putin havia citado como vítima da cultura do cancelamento ocidental, rejeitou explicitamente a caracterização de Putin e, em vez disso, o acusou de matar civis.
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O teorema do Ocidente “decadente” que levou Putin à guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU