15 Abril 2022
Em seu blog Come Se Non, 13-04-2022, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve: “Recebi do autor [o texto abaixo] e publico sem hesitação. As palavras razoáveis e cristãs precisam de coragem e contrastam com a aliança entre irracionalidade e incredulidade. Agradeço ao Pe. Severino”.
Severino Dianich é teólogo e padre italiano, cofundador e ex-presidente da Associação Teológica Italiana e professor da Faculdade Teológica de Florença.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Putin teve o despudor e o papa tem a coragem de citar o Evangelho. Coragem, porque tal é o clima que se criou a propósito da guerra na Ucrânia, promovido intencionalmente pela propaganda de ambas as partes, que é preciso coragem para citar o Evangelho. São raras as vozes dos próprios cristãos que ousam trazê-lo a campo.
Querendo justificar, de alguma forma, a constante censura das palavras de Jesus sobre o amor, seria possível dizer que, efetivamente, não é correto esmagar sobre um ditado evangélico desprovido de nuances, como geralmente é a linguagem de Jesus e dos evangelistas, a complexidade das situações e dos valores em jogo.
Além disso, as circunstâncias nas quais esses ditados foram proclamados não são as mesmas sobre as quais a consciência cristã é chamada hoje a se interrogar. Não sobre a agressão contra a Ucrânia, decidida pelo governo e pelo parlamento da Rússia, cuja iniquidade é evidente e cuja condenação é necessária, mas sim sobre a resposta armada da Ucrânia, apoiada pelo fornecimento de armamentos pelos países da Otan, sobre a qual é necessário voltar a se interrogar, todos os dias de novo, enquanto a guerra continua.
De fato, seria uma questão de política comum, não fosse o fato de que disso decorrem milhares e dezenas de milhares de mortes e de que ainda não há uma perspectiva concreta (além das mentiras oficiais) sobre o fim dessa tragédia.
Nesta situação, não há uma pessoa honesta, seja de fé cristã, seja de outras ou de nenhuma fé, que esteja isenta de colocar a sua consciência diante do mandamento “Não matarás!”, para se perguntar se as razões adotadas para se dispensar dessa obediência fundamental são válidas em si mesmas e são tão robustas a ponto de resistirem à investida das lágrimas das vítimas, dos mortos e dos vivos, que nos interrogam: “Por que vocês estão fazendo isso?”.
Além disso, quem professa e vive a fé cristã não pode deixar de tomar nas mãos os Evangelhos e os escritos dos Apóstolos e colocar a sua própria consciência de fé em comparação com o que neles está escrito.
Se é possível pensar que cada um dos ditos não se aplica à situação presente, sobre a linha de fundo de Jesus, do seu ensinamento e da sua vida vivida, não há dúvidas: São Paulo a sintetiza em pouquíssimas palavras: “Não paguem a ninguém o mal com o mal (...) Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem” [Rm 12,17.21]. Jesus absolutamente não é um resignado diante das imensas injustiças que são perpetradas no mundo: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada” [Mt 10,34]. É a espada da verdade, da qual ele tentara advertir Pilatos no seu diálogo extremo com o governador, e que, segundo a fantástica visão do Apocalipse, sai da sua boca para cortar na raiz a mentira da verdade: “Não pensem que eu vim trazer paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada. De fato, eu vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios familiares” (Mt 10,34-36).
Enquanto estava escrevendo estas linhas, eis que eclodiu a polêmica sobre o projeto do Papa Francisco de fazer com que a cruz seja levada, ao mesmo tempo, por uma família ucraniana e uma russa, durante a Via Sacra no Coliseu. Neste ponto, verdadeiramente, não restam mais caminhos alternativos: Evangelho sim ou Evangelho não!
Como se fosse possível, colocando diante dos olhos a cena da captura de Jesus, do processo, da condenação e do seu encaminhar-se rumo ao Calvário, aquilo que se faz na Via Sacra, desviar a própria meditação daquele seu “Guarde a espada na bainha” (Mt 26,52), imposto por Jesus, enquanto estavam lhe amarrando as mãos, a quem pretendia defendê-lo. A espada do ódio não deveria ser guardada na bainha nem mesmo meditando a Via Sacra e rezando?!
Eu não julgo os cristãos ucranianos esmagados sob as bombas dos russos, de quem eu entendo perfeitamente a perturbação diante do preceito evangélico do amor, a ser substituído pelo preceito antigo: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (Mt 5,43). Mas fingir que em Roma alguns cristãos russos e alguns cristãos ucranianos, ambos inculpáveis, não devem rezar juntos é mais uma loucura, que se soma à loucura da guerra.
Lembro-me do bom senso das pessoas que, durante a guerra mundial, enquanto sofriam as brutalidades dos alemães fanáticos das SS, educados à violência desde crianças, que sabiam distingui-los bem dos soldados regulares do exército, obrigados a combater apesar de si mesmos. Lembro-me, quando a guerra acabou, da minha admiração de menino de 12 anos quando via as pessoas entregando furtivamente uma fatia de pão ou uma maçã aos prisioneiros alemães submetidos aos trabalhos forçados em Fiume, limpando as ruas dos escombros dos bombardeios. Também naquela época, porém, quem fazia isso corria o risco de ser odiado como nazista.
A guerra, vista na sua repetição, também é entediante: sempre as mesmas coisas! Mas a maioria das pessoas sempre soube distinguir bem entre nazistas e alemães. Evidentemente, hoje, em Pisa, não sabem fazer isso os colegas de uma estudante russa do Ensino Médio, que na segunda-feira volta às aulas cheia de angústia, porque teme ser posta na mira, odiada e insultada.
Um dos efeitos mais destrutivos desta guerra insana é o aumento do ódio cego, incapaz daquele respeito e compaixão que até mesmo os russos dissidentes e os soldados mandados por Putin para o massacre na Ucrânia merecem. O ódio, como se sabe, rompe toda lógica, e é assim que se esperaria que o papa fosse papa, mas não como cristão, e que os cristãos rezassem ao seu Cristo, mas renegando o seu Evangelho.
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Um pouco de Evangelho, por favor! Artigo de Severino Dianich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU